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"Família Gracie deve discutir machismo", diz filha de fundador do jiu-jitsu

Reila Gracie, autora de biografia sobre Carlos Gracie, seu pai e fundador do jiu-jitsu brasileiro Imagem: Arquivo pessoal

De Reila Gracie*

no Rio

31/08/2019 04h00

Na série "Vozes no Tatame" da última quarta-feira, a ex-atleta Karina Gracie relatou os episódios de violência que viveu enquanto praticava jiu-jitsu, esporte criado por sua família. Hoje Reila Gracie, filha do fundador do jiu-jitsu brasileiro Carlos Gracie, comenta o texto da sobrinha.

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Mexe com as minhas emoções ler o relato de mulheres denunciando os abusos e agressões que sofreram, ainda mais uma prima que vi nascer e acompanhei parte de sua infância. Nada justifica a violência contra as mulheres e acho que elas devem denunciar sempre para que os agressores sejam penalizados. Só lamento que ela tenha demorado tanto.

Sei que nessas horas o apoio familiar é importante e me pergunto onde a mãe e o pai dela estavam e como se portaram nas ocasiões descritas. A falta de apoio e ausência dos pais dificulta muito a vida das pessoas. O relato da Karina também denuncia esse problema, muito recorrente na história das mulheres e cada vez mais presente nas famílias contemporâneas.

Acho que ela mistura um pouco as denúncias, mas fica claro que o ponto principal das suas acusações se direciona contra o machismo e atribui a origem desse mal a nossa família. Em parte ela tem razão, porque o machismo de fato está incutido em muitos membros da família Gracie. É ruim, destrutivo, obsoleto e não deve ser cultivado e propagado. Mas responsabilizar a família pelas agressões que sofreu dos maridos e por ações desrespeitosas cometidas por alunos fora das academias é um exagero.

Esse assunto não pode ser abordado no meio de ressentimentos e passionalidades de origem conjugal. Dá um caráter sensacionalista à denúncia, que a desvia do objetivo a ser alcançado.

Convivi mais com a Karina quando ela era criança e seus pais viviam juntos. Ela regula de idade com a minha filha mais velha e de tempos em tempos nos encontrávamos nos campeonatos e nas reuniões de família na casa do tio Hélio Gracie. Sempre foi muito carinhosa com todos. Não posso dizer que acompanhava sua vida de perto, tanto que não conheci seus dois maridos e não tinha ideia que ela havia passado por essas situações até ler seu relato.

Na última eleição presidencial passamos a fazer parte do grupo familiar que se opôs à associação do nome Gracie à campanha de Jair Bolsonaro. Desde então mantemos contato pelo WhatsApp, o que tem me aproximado muito de sobrinhos e sobrinhas-netas com quem eu não convivia, e descobri que são pessoas incríveis.

Nunca esqueci de uma frase que o tio Hélio dizia com frequência quando eu era criança: "Mulher a gente doma como as éguas, com freio e espora". Ele criava cavalos e gostava de fazer essas comparações. Como eu tinha o exemplo do meu pai, Carlos, irmão mais velho de Hélio, declamando as quadras poéticas que escrevia com declarações de amor para a minha mãe, essa comparação com as éguas soava para mim como uma fala folclórica, meio exibicionista, e não me afetava.

Com o tempo fui constatando que o efeito na maioria dos meus irmãos e primos foi outro. Para eles as falas do tio Hélio soavam como uma afirmação de poder sobre as mulheres. Ele nunca escondeu ou tentou disfarçar a sua forma de pensar e proferia muitos clichês relacionados aos homens machistas. Vi que a fala dele teve um poder de alcance inimaginável e reverberou no jiu-jitsu através de muitos membros da minha família e de alunos.

Tio Hélio achava que mulheres eram seres inferiores e que vieram ao mundo para procriar e servir. Ele estabelecia as regras na sua casa e suas mulheres aceitavam e repassavam esse modelo para filhos e filhas. Todas as suas esposas viveram em concordância e ele nunca levantou a mão para agredir nenhuma delas. Era um homem prático e direto, sem muitos recursos intelectuais porque não desenvolveu o hábito de ler: seu irmão Carlos o auxiliava quando o assunto fugia da sua compreensão e competência.

Quanto mais inseguro o homem, mais reativo ele se coloca em relação à liberdade feminina. Quando a mulher não aceita o lugar que lhe foi reservado, ela é vista como uma ameaça. Propagar essa mentalidade resulta num desserviço ao esporte e à sociedade em geral. Certamente tio Hélio não tinha essa consciência porque nasceu em 1913 e reproduzia os conceitos predominantes de sua época. Mas no século 21 não há mais espaço para discursos misóginos que descriminam ou incitam violências contra as mulheres. O universo do jiu-jitsu não pode ficar associado a esse atraso.

Para mim as diferenças entre homens e mulheres sempre estiveram relacionadas à liberdade, aos direitos e aos deveres. Nunca aceitei tratamento desigual por ter nascido mulher. Entender as diferenças entre meu pai e o tio Hélio, e suas respectivas mulheres, foi fundamental para definir as minhas escolhas e nortear o meu caminho.

Carlos, meu pai, era um estudioso espiritualista que vivia em outra esfera. Ele acreditava na reencarnação e enxergava a vida como um dos estágios do processo de evolução espiritual. Olhava para o tio Hélio e para todos por esse prisma e se colocava como um exemplo a ser seguido para quem se interessasse em observá-lo.

Não julgava ninguém e raramente repreendia algum familiar. Em relação a suas mulheres, sempre as deixava totalmente livres e à vontade e conseguia a concordância delas com doçura e suavidade. Nascido em 1902, era um homem de sua época e não exigia das mulheres uma atividade profissional fora do lar. Como um bom naturalista, fazia parte do seu projeto ter muitos filhos.

Muito jovem comecei a me interessar pela atuação das mulheres para entender as diferentes formas de se colocarem perante a vida e o valor que lhes era atribuído. Descobri nos livros mulheres incríveis como Izadora Duncan, Lú Andreas Salomé e a nossa Chiquinha Gonzaga, que revolucionaram as artes e o comportamento feminino em pleno século 19. E depois comecei a perceber que o aspecto mais nocivo do machismo se manifesta quando as mulheres, inconscientemente ou não, se convencem que são inferiores e se tornam tão ou mais machistas que seus algozes.

Quando se nasce num ambiente em que os homens figuram como provedores e cabe a eles a responsabilidade de dar continuidade ao projeto profissional familiar, automaticamente o lugar que as mulheres ocupam se torna secundário e sem grande importância, fazendo com que elas possam ser substituídas facilmente. Essa desqualificação e exclusão recai sobre elas como um fator extremamente depreciativo comprometendo gravemente sua autoestima. Sem expectativas de investimento, incentivo efetivo e voz a participação de mulheres Gracie no jiu-jitsu se torna muito mais difícil dentro e fora da família.

Quando minhas filhas eram adolescentes eu não achava as academias preparadas para recebê-las e nem meus irmãos demonstraram interesse em investir na formação delas de forma diferenciada. Vejo que a Karina, do jeito dela, demonstra muito ressentimento por essa desatenção familiar e decidiu falar e cobrar.

O ambiente da luta sempre foi um "clube do bolinha" e ainda hoje é assim em muitas academias, o que significa que barreiras ainda precisam ser superadas para acolher devidamente as mulheres. A começar pela reeducação dos professores, porque são eles os responsáveis pelo ambiente de respeito que se estabelece sobre o tatame. As aulas são mistas e os professores precisam estar preparados para lidar com as diferenças de gênero. A inserção das mulheres no esporte é relativamente recente e fico feliz que essas questões estejam começando a ser debatidas com mais transparência.

Essa conquista de espaços tidos como masculinos faz parte da história das mulheres e fomentar o debate é extremante necessário para acelerar o processo de inclusão feminina no jiu-jitsu.

A primeira na família Gracie que conseguiu ser campeã e se profissionalizar foi a Kyra, e acho que ela pode assumir de fato um lugar de liderança para abrir portas e facilitar a inclusão de outras Gracie nesse projeto profissional familiar. Os campeões sempre investiram e prestigiaram as gerações mais novas e isso gerou muitos lutadores e professores na família Gracie. Ninguém melhor do que a Kyra para fazer o mesmo pelas mulheres de sua família.

Toda família tem brigas e desavenças, e a minha não é diferente. Como sou uma mulher que defende incondicionalmente a liberdade, as brigas com meus irmãos não foram poucas, algumas até corporais. Nunca me calei ou me posicionei de forma passiva. Sempre contei com o apoio e a proteção do meu pai, por isso tive forças para enfrentar a vida e escrever a sua biografia. Realizar essa obra foi um gesto de agradecimento por ele ter me prestigiado e me apoiado ao longo da vida.

Se o legado filosófico de Carlos Gracie for assimilado pelos professores e incluído na formação dos alunos certamente isso refletirá no ambiente das academias, porque meu pai tinha uma mente aberta e agregou ao jiu-jitsu conceitos espirituais e comportamentais que dignificam e engrandecem o ser humano, independente do gênero.

Jiu-jitsu significa "arte suave" e, sob a ótica brutal do machismo, nenhuma mulher se sente devidamente acolhida e estimulada a desenvolver o seu potencial esportivo. A energia desprendida para suportar a discriminação e o desrespeito certamente afeta o desempenho de qualquer atleta. Grandes talentos já foram perdidos por esse atavismo retrógrado demodê. Muitos avanços já foram realizados e é preciso continuar. Quem anda para trás é caranguejo.

Admiro a coragem da Karina e acho que, do seu jeito, é o que ela tenta dizer com o seu relato.

* Reila Gracie é editora de arte e autora de "Carlos Gracie - O Criador de uma Dinastia" (Record)

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