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Ela derrubou um homem em luta polêmica e mudou sua carreira no MMA

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

22/10/2014 06h00

Sem regras, sem luvas, sem ringue. O Rio Heroes foi um evento de lutas clandestino realizado no Brasil que ficou marcado nos porões de um tempo em que o vale-tudo ainda não havia evoluído até chegar ao MMA. Entre as sangrentas disputas registradas por câmeras amadoras e mais tarde disponibilizadas na internet, uma em especial marcou época e ganhou um status de “lenda urbana”: um duelo entre homem e mulher. Ediane Gomes, a Índia, foi a protagonista da surpreendente vitória, em um combate polêmico, condenado por muitos, e que mudou sua carreira em muitos níveis.

Índia hoje é uma veterana de 36 anos, empregada da liga feminina Invicta, e já tentou deixar o assunto de lado e evitar reviver os seus momentos no Rio Heroes. Mas, a chance de falar deste combate, de uma história de vida em que chegou ao fundo do poço por conta das drogas e de seu renascimento por meio do esporte a fez mudar de ideia, na tentativa de com sua mensagem ajudar outras pessoas que lutam contra o vício.

A Ediane de 2007 é diferente da lutadora de hoje, que mora nos Estados Unidos e vive com mais conforto de sua profissão. À época, quando ela ficou frente a frente com um lutador de muay thai, a pernambucana de Garanhuns e radicada em São Paulo era uma jovem saída das ruas e do vício, buscando um dinheiro extra para se manter.

Mas como ela foi parar neste cenário tão improvável? Tudo começou quando ela trocou o jiu-jítsu pelo vale-tudo. Treinada na arte suave por Jorge Patino, o Macaco, um grande nome da modalidade à época, Índia apostou em trocar de esporte e sair na porrada. Nos treinos ela já encarava marmanjos maiores e mais fortes. Mas até aí nada de diferente de qualquer academia. O problema era a falta de rivais, de mulheres que aceitassem seus desafios. 

A chance de lutar o desconhecido Rio Heroes veio de um convite de última hora, depois de um combate ser cancelado. “Um amigo me chamou e eu nem sabia o que era. Achei que era uma brincadeira. Mas era real. O cara que fez o evento era um empresário de Miami e ganhamos em dólar, lembro como se fosse hoje, ofereceram US$ 250 para lutar e mais US$ 250 em caso de vitória”, relembra ela, que aceitou para garantir ao menos metade da grana em disputa.

No vídeo que ficou famoso na internet, um “árbitro” em que se lê “sem regras” na camiseta apresenta os lutadores. “Isso é realidade”, diz ele, antes de dar o sinal para o começo do confronto. Apesar de começar a luta acertando dois socos no rosto de seu rival, Índia ainda não estava convencida de que aquilo não era mais que uma sessão de sparring; foi ao sentir um chute potente em sua perna que ela “virou a chavinha”. Seu lado lutadora acordou.

“Aí entrou o espírito de sobrevivência, o espírito da rua que eu tinha. A vida sempre foi assim para mim e eu pensei: ‘não vou apanhar aqui, não. Ou ponho para baixo ou vou apanhar’”, conta a pernambucana. A partir daí, a luta se desenvolveu no chão com Índia tentando aproveitar sua técnica apurada no jiu-jítsu e até conseguindo golpear no ground and pound, montada no seu oponente. A luta ainda voltou a ficar em pé, mas ela novamente derrubou, trabalhou suas posições e encaixou uma chave de braço, para garantir seus US$ 500 após quatro minutos de ação.

“Eu não tinha obrigação de vencer um homem, não sou homem. Mas eu treinava muito jiu-jítsu, então dominei em baixo e consegui finalizar. Ele ainda me deu dois 'bate-estaca', podia ter quebrado minhas costas...”, detalha ela, que chegou a dar cabeçadas, cotoveladas e deixou o rosto de seu adversário bastante avariado.

Deixar aquele tatame com US$ 500 dólares em dinheiro e suas vestes com o sangue do rival foram um momento de festa para Índia, que nem sabia como gastar os dólares – uma amiga acabou ajudando, pegando as notas e a reembolsando em reais. O problema foi explicar em casa sua aparência e ao seu mestre, Macaco, que tinha lutado escondida. A bronca foi geral.

Repassar estes momentos trazem sentimentos mistos, até por conta do que sua ousadia causou em sua carreira. “Hoje não lutaria de novo. Porque para a minha carreira foi bom, mas, ao mesmo tempo, zoou um pouco também. Ninguém queria me enfrentar”, explica a lutadora, que só anos mais tarde tiraria este estigma de si.

O Rio Heroes à época, era considerado ainda em fase de testes, mas, quando foi descoberto, acabou sendo fechado. Ainda assim, ganhou fama com os vídeos disponibilizados na internet.

Primeira rival foi a cocaína

Antes de virar lutadora, Ediane teve uma infância complicada, errática. Nascida em Garanhuns, ela acabou sendo entregue pela mãe a uma tia para ser criada em São Paulo. A pernambucana vivia na região do Capão Redondo, e a rua virou seu habitat, já que ela evitava ficar em casa.

“Eu estava numa situação de conviver com outra família. O marido da minha tia bebia pra caramba, batia nela, então eu ficava numa situação de ir fazer outra coisa para não enlouquecer. Algumas pessoas se drogam porque gostam, porque acham bonito, outros porque se veem numa situação tão ruim que é um escape, para esquecer dos problemas. Eu estou em casa, vejo o cara bebendo, minha tia sofrendo... Ia fazer o que?”, relata Índia.

A garota chegou a morar com outras famílias e por um bom tempo simplesmente ficou na rua, algumas vezes recorrendo a trabalhos simples como limpar vidros e engraxar sapatos para conseguir algum dinheiro.

Foi só quando dois empresários a conheceram que sua vida mudou. Índia já tinha tentado treinar caratê, mas não se deu bem. Na época, o jiu-jítsu era uma coisa mais elitista, então foi só ao ganhar uma bolsa que ela começou a treinar na academia de Macaco. A ajuda dos empresários foi o passo decisivo para ela sair do buraco, passando inclusive por uma clínica de reabilitação.

“Não fosse por eles, eu estaria num caixão, ou presa como meus amiguinhos de infância. Teria morrido, mesmo, porque quando me encontraram eu estava no auge do vício, estava para morrer. Eu consumia cocaína, muita, e crack. Essas coisas... Cheguei no fundo do poço. Mas lembro que na época morreu o Ryan Gracie. Eu estava muito louca, mas não queria morrer como ele. Queria ser alguém. Isso me incentivava, e então esses empresários apareceram”, diz a lutadora, citando o polêmico lutador, que morreu em uma cela, pouco depois de ser preso por um roubo de carro.

Índia já tinha a bolsa para treinar jiu-jítsu, passou a contar com uma assistência para alimentação e ganhou um lugar para morar. “O que mais eu precisava? Fui lutar, fui correr atrás. Era hora de abraçar, eu não podia negar essa oportunidade para a minha vida... E hoje sou quem sou hoje. Eu saí da merda. Falo para todo mundo: quando você quer sair do buraco, você consegue, é ter força de vontade. Hoje posso ajudar a mudar a vida de outras pessoas”, completa.

A Índia do MMA: luta com Ronda, mudança para os EUA e Invicta

Foi só com este passo decisivo para fora das drogas e da “zoeira” na rua que Ediane Gomes entrou de fato no mundo das lutas, primeiro com conquistas no jiu-jítsu e depois partindo para o vale-tudo. É claro que o episódio do Rio Heroes afetou toda a sua jornada. Ao competir contra um homem e vencer, ela deixou todas as suas possíveis rivais ressabiadas e, na verdade, acovardadas de enfrentá-la.

Índia - Divulgação - Divulgação
Ediane Gomes já é veterana de 36 anos. Ela começou no jiu-jítsu e depois migrou para o MMA, totalizando 10 vitórias e três derrotas
Imagem: Divulgação

Assim, uma solução foi se mudar para os Estados Unidos. Com ajuda do empresário Alex Davis, ela se instalou na Flórida, onde mora e treina com a American Top Team (ATT) há quatro anos. Por lá, a mesma dificuldade na busca por oponentes começou a acontecer, para desespero da pernambucana.

“Eu achei que não ia rolar, quando a luta caia, várias vezes eu queria ir embora, voltar para o Brasil... Eu chorava pra caramba. Mas o que ia fazer no Brasil? Lutar jiu-jítsu não dá dinheiro, então não ia ter o foco, ia ficar na zoeira, na balada, não ia adiantar em nada. Mesmo sofrendo eu precisava ficar.”

Foi quando pintou um combate com a hoje megaestrela Ronda Rousey que tudo mudou. Medalhista olímpica no judô, a loira precisava de uma adversária para estrear no MMA. O combate aconteceu em março de 2011. Índia foi chamada de última hora, teve de cortar o peso em uma semana, e Ronda venceu por finalização no primeiro round, com sua hoje famosa chave de braço.

O revés não foi tão amargo. Ronda provou que Índia não era invencível e permitiu que outras garotas aceitassem enfrentá-la. Depois desse combate, foram quatro vitórias seguidas, sendo duas dela sob contrato com a organização de MMA feminino Invicta. No seu compromisso mais recente, no mesmo evento, ela foi finalizada por Tonya Evinger.

Índia agora aguarda uma nova chance para voltar a triunfar e espera lutar em dezembro. A peso galo sabe que uma boa sequência de triunfos pode chamar a atenção do UFC, mas isso não é o mais importante. “Eu sempre peguei luta de última hora, hoje tenho tempo, posso me programar, fazer dieta. Eu só quero lutar. E falo isso para a dona (do Invicta), ela gosta de trabalhar comigo”,  garante Índia, que hoje consegue falar abertamente de tudo o que passou e ainda olhar com esperança para um futuro do jeito que ela gosta de ver: livre.