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Não é só Ronda. MMA feminino surgiu do zero no UFC e já divide holofotes

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

08/10/2015 06h01

Entre tantas conquistas do UFC e de seu presidente, Dana White, uma frase infeliz vai martelar sua cabeça para sempre. Em 2011, ele afirmou categoricamente: “nunca veremos uma mulher no UFC”. Quatro anos depois, e veja só: Ronda Rousey é a maior estrela do evento, arrastando consigo uma nova leva de lutadoras talentosas, midiáticas e, em boa parte dos casos, até mais sedentas por vencer que os homens.

Tudo mudou para elas, e muito do que o UFC era há quatro anos também já não é o mesmo. As mulheres, pasme, Dana White, viraram salvação - como mostramos a seguir e no especial sobre MMA feminino "Do Desdém ao Topo".

De um evento liderado pelos seus astros Anderson Silva, Jon Jones e Georges St-Pierre, o UFC passou por uma reconstrução total em sua imagem em 2015. Ronda Rousey e Conor McGregor assumiram o protagonismo, agora dividido entre gêneros. E não é preciso ir muito longe para mostrar o impacto do fenômeno Ronda Rousey, que virou uma Mike Tyson do MMA feminino.

A ex-judoca é a responsável pela maior venda de pay-per-views desde Anderson x Weidman 2, em 2013. Foram 900 mil pacotes vendidos no UFC 190, longe dos 1,6 milhão do recorde da franquia, mas um número elevado na atual realidade - em que a pirataria por streamings é grande. E não é só para o público dos EUA que o apelo de Ronda é enorme.

No Brasil, ela conquistou a torcida e deu 13 pontos no ibope para a Rede Globo, audiência que só perdeu para a transmissão de Anderson Silva x Nick Diaz no começo ano. O UFC 190, com seus 34 segundos do início ao nocaute na brasileira Bethe Correia, ainda garantiu oito dos dez temas mais comentados no Twitter, alcance gigante no Facebook e mensagens de gente como Larry King e Will Smith, algo que mostra como a lutadora passou de uma ídolo do nicho do MMA para uma estrela mainstream, uma conhecida do grande público.

Números do sucesso

O sucesso de Ronda é explicado por todo o seu conjunto da obra. A norte-americana tem uma história de superação que passa por um nascimento complicado, que dificultou o aprendizado da fala e o suicídio do pai. Foi medalhista olímpica de judô, mas abandonou tudo, virou garçonete e chegou a dormir em seu carro antes de mudar de carreira e partir para o MMA.

Ninguém acreditava nela. A reação de sua mãe - campeã mundial de judô - ao ouvir a proposta de Ronda e de seu técnico foi essa: “Eu não estou discutindo a capacidade de Ronda como atleta. Eu estou questionando o ‘ela vai ser uma grande estrela e ganhar muito dinheiro’”. Assim, a contragosto, a matriarca durona deu um ano para Ronda tentar convencê-la do contrário, senão a faria ir cursar uma faculdade ou arranjar um trabalho. E foi no MMA que Ronda Rousey virou uma destruidora de rivais, obrigando todos a darem o braço a torcer - suas rivais que o digam.

O sucesso de Ronda começou no Strikeforce e obrigou Dana White e seus companheiros a se mexerem. Quando o UFC comprou o evento rival, seu plantel ficou à disposição. Ronda já tinha feito tanto barulho e era tão arrasadora, que eles se viram obrigados a apostar no MMA feminino. A norte-americana foi anunciada como primeira lutadora e campeã pelo evento em novembro de 2012 e desde lá defendeu o cinturão seis vezes, apesar de ter permanecido no octógono menos de 18 minutos, somadas todas as lutas.

Os resultados a colocaram como terceira melhor lutadora do ranking peso por peso, que conta todos do plantel do Ultimate, independentemente de sua categoria.

Para o novo diretor-geral do UFC no Brasil, a chance de trabalhar com Ronda em seu primeiro grande evento foi uma oportunidade de ousar e tentar ir além do público regular do MMA. “Esse foi o primeiro evento em que pude idealizar junto ao UFC. E a chave é pensar fora da caixa. Então, espalhamos a imagem delas por todo o Rio de Janeiro, investimos na experiência de quem vai ao ginásio, que tem diversas atividades interativas e além de tudo eles viram a Ronda Rousey, que já é uma figura maior, já é uma celebridade, uma atriz que luta”, afirmou ele.

Muito além de Ronda

Ronda não foi nem de perto a primeira mulher no MMA. Combates femininos começaram a ser disputados no Japão, ainda na década de 1990 e com a criação de eventos femininos. Essas ligas fracassaram, mas atraíram a atenção de organizações antes só masculinas, que abriram espaço para duelos entre mulheres. A primeira grande estrela foi Gina Carano, hoje aposentada e vivendo como atriz, com papéis de destaque em Hollywood. Em 2009, ela fez uma badalada luta com Cris Cyborg, em que a brasileira conseguiu um nocaute ainda no segundo round, e virou a segunda grande potência do MMA feminino. O combate atraiu quase 900 mil telespectadores nos EUA, número expressivo naquele momento.

Mas, tudo o que abordamos traz uma questão fundamental: e se Ronda parasse de lutar hoje, o que seria do MMA feminino? É bastante claro que a campeã tem um papel fundamental em tudo o que o UFC viveu nos últimos tempos. Ídolos como Anderson Silva, GSP e Ronda - ou Michael Jordan, Muhammad Ali, Pelé e Ayrton Senna - são raros. E não é exagero colocá-la nesse patamar em sua modalidade.

Pela velocidade com que o fenômeno Ronda surgiu, o resto do MMA feminino corre atrás de sua líder para equiparar qualidade técnica e fama. Mas o UFC mostra que seu investimento vai bem além de Ronda.

Para se ter uma ideia da importância das garotas, de janeiro a setembro de 2015, elas estiveram presentes em 24 de 32 eventos realizados (75%). Destes eventos, 45% tiveram duas ou mais lutas entre mulheres. E não pense que elas estão relegadas ao card preliminar. Dos 35 combates femininos disputados até aqui, 19 deles foram no card principal, mais da metade. Muitos foram usados em horários nobres, como o fechamento do card preliminar ou a abertura do principal, posições sempre usadas para angariar mais audiência para o Ultimate.

Decker vê uma tendência de as mulheres dividirem cada vez mais o protagonismo com os homens. Até por isso ele mexeu seus pauzinhos no UFC 190, para ajudar o público brasileiro a se aproximar com uma possível nova estrela.

“Fiz questão de colocar a Claudia (Gadelha) no card. Foi uma coisa que lutei bastante, porque fazia sentido para o público que veria a Ronda conhecer a Claudia. O UFC 190 mostrou que, com certeza, poderemos ter outros eventos deste tipo no Brasil, mesmo com a Ronda enfrentando estrangeiras, por que não? Ela tem potencial para encher um estádio”, aposta o diretor-geral, que não a vê como invencível e não se preocupa com isso. “Ela está num degrau acima, mas não existe lutador imbatível. Uma hora uma mão entra, e aí...”.

Além de Ronda, nomes fortes da organização brotam aos poucos. Miesha Tate, de quem Ronda tomou o cinturão no Strikeforce, é sempre garantia de atrair o público - em parte por sua beleza. Próxima rival da campeã, Holly Holm ainda parece um pouco “verde”, mas, como ex-campeã mundial de boxe em três categorias, vai dar muito o que falar até lá, assim como Amanda Nunes e a campeã do TUF Julianna Peña - o primeiro reality show do UFC com mulheres foi realizado em 2013.

E há todas as possibilidades da divisão palha. A atual campeã, a polonesa Joanna Jedrzejczyk é carismática, midiática e venceu seus combates de forma arrasadora, já virando uma potencial estrela, principalmente em relação ao mercado europeu. A bela Paige VanZant só tem 21 anos e sete lutas, mas já ganhou até patrocínio individual da Reebok. E Claudia Gadelha só não disputa o cinturão das palhas agora por ter se lesionado em seu último combate.

Prova dessa aposta com “all-in” no MMA feminino está no card que o UFC montou para a edição 193, em novembro, na Austrália. O evento teria Robbie Lawler defendendo o cinturão dos meio-médios, mas uma lesão o tirou de ação. O detalhe é que a organização precisava de um combate à altura para sua estreia em um estádio de futebol. Com a expectativa de lotar a arena e bater seu recorde de público, o Ultimate “apelou”: escalou Ronda Rousey e ainda a campeã peso palha Joanna, no primeiro card da história do UFC com duas disputas de cinturão das categorias femininas.

Jessica Andrade - Jefferson Bernardes/Inovafoto - Jefferson Bernardes/Inovafoto
Jéssica Andrade saiu da roça, onde guiava tratores e chegou ao UFC
Imagem: Jefferson Bernardes/Inovafoto

O início é complicado

Para as lutadoras desta geração sonharem chegar onde a campeã está, o caminho é árduo. As brasileiras que o digam. Jéssica Andrade, por exemplo, já lutou sem ganhar um centavo. “Lutei muitas vezes de graça. Minha primeira luta só valia o troféu. Aqui no Brasil, sempre foram as piores bolsas, nunca pagaram bem. Só quando fui para os eventos maiores, como o Bitetti Combat, que melhorou”, analisa ela.

Jéssica, que saiu da roça, onde dirigia trator, para tentar a sorte no MMA, ainda vê dificuldades na parte de patrocínios, mas tem uma situação mais confortável após a chegada ao UFC. “De patrocínio sempre teve preconceito e ainda hoje ainda existe. Muitos empresários não patrocinam porque é mulher. Sempre fomos meio excluídas, mas acho que está mudando e vamos conseguir ficar bem. Agora, com o UFC, conquistei muitas coisas, já tenho meu carro, minha moto, videogame, TV no quarto... E estou investindo numa academia com meu mestre.”

Amanda Nunes, que está próxima de uma disputa de cinturão contra Ronda e tem quatro vitórias e uma derrota no Ultimate, teve mais sorte. Desde o começo, esteve em organizações grandes e logo passou a lutar nos Estados Unidos. Além disso, teve apoio da família, uma preocupação a menos para desenvolver seu jogo.

“As mulheres ganharam o respeito pelo show que temos dado lá dentro. Hoje sou a número 4 do mundo, e vejo que as pessoas querem ver as mulheres nos melhores eventos. Se coloca luta (feminina), todo mundo quer ver”, defende ela.

Outro lado: salário

Há um outro lado para esta história, que reflete também um problema da atual sociedade no aspecto financeiro. As mulheres ainda ganham muito menos que os homens, na média. Claro que o fato de elas estarem a menos tempo no plantel e serem em menor número ainda reflete nisso, mas é algo que o UFC precisa se atentar, para buscar um papel mais justo, dada a importância delas.

Conor e a grana - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Conor McGregor posa com pilha de dinheiro para imitar capa clássica de Ali
Imagem: Reprodução/Instagram

Curiosamente, nos dados divulgados nos últimos tempos, não é Ronda Rousey quem tem o maior salário da franquia. Ela leva US$ 70 mil por luta e dobra o valor em caso de vitória - os dados são da sua penúltima luta, já que seu combate no UFC 190, no Rio, não teve o valor oficializado. Cat Zingano, que já foi desafiante ao título, leva R$ 100 mil como bolsa e também pode receber o dobro quando triunfa.

Segundo a Culinary Workers - uma instituição arquirrival do UFC que impede a organização de legalizar o MMA em Nova York e promover eventos por lá - mulheres receberam, em média, US$ 37.476 por luta, contra US$ 61.691 dos homens, isto é, 40% a menos que eles, entre novembro de 2012 e janeiro de 2015.

Mesmo que o valor destinado a Ronda não seja dos mais altos - campeões como Jon Jones, Anderson Silva e Chris Weidman podem receber cerca de US$ 600 mil -, Ronda Rousey conseguiu entrar na lista da revista Forbes das 10 esportistas mais bem pagas do mundo deste ano, somando bolsas, percentuais advindos de venda de pay-per-views, patrocínios e o quanto ganha como atriz de Hollywood.