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De batom e maquiagem, brasileira enfrenta "olhares tortos" no skate

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

16/04/2016 06h00

A calça legging é quase um uniforme feminino nas academias. Mas a escolha do modelito rendeu duras críticas à skatista brasileira Leticia Bufoni na etapa de Austin, Estados Unidos, do X Games do ano passado. As outras competidoras viram mais um motivo para acusar a atleta de querer usar o esporte para valorizar seu lado sex symbol.

O episódio é exemplo de duas visões diferentes da modalidade. As skatistas mais antigas se vestem com calças e camisetas largas e muitas têm cabelos curtos. Imitam o jeito dos homens que praticam o esporte. O look foi este até Leticia, 23 anos, adotar roupas justas, unhas pintadas, maquiagem e colocar silicone. Foi o passaporte para os convites de sessões de fotos.

"Falam que eu estou fazendo o skate feminino virar um símbolo sexual. Mas eu acho que não é isso. Eu faço o que eu gosto, o que eu quero".

O irônico é que quando começou no skate, aos 9 anos, em São Paulo, Letícia sofria críticas em um cenário oposto ao atual. A garota era chamada de Maria João e sapatão pelas vizinhas porque vestia roupas dois números acima do manequim. Ela entendia o significado das palavras, mas afirma que não se importava. Sentimento diferente do pai que se incomodava bastante e via no apelido mais um motivo para filha esquecer o "esporte de maloqueiro", como ele chamava o skate.

Mesmo com ele quebrando um shape, peça de madeira que serve como base no skate, em certa ocasião, a carreira deslanchou e Leticia mora nos Estados Unidos há 10 anos. A atleta tem três medalhas de ouro nos X Games e o título da primeira Liga Mundial de Skate Street, ocorrida ano passado.

Além de vencer adversárias na pista, a atleta, acostumada com ofensas que vinham de fora do esporte, passou a ter de superar críticas dentro do skate. Se antes era chamada de Maria João por usar roupas largas, passou a despertar a ira de outras competidoras por mudar completamente o visual.

Ela recorda que recebeu muitos olhares atravessados na etapa em Austin do X Games. Era a primeira vez que uma mulher competia com uma roupa colada ao corpo. No Brasil também houve reações adversas. "As meninas começaram: onde você vai com esta calça? Horrível! Até hoje a galera fala 'a menina da calça legging'".

A americana Vanessa Torres, representante da velha guarda do esporte, foi dura em uma entrevista ao site Jenkem. Disse que Leticia não tem percepção da imagem sexy a qual está sendo associada e que é a única atleta a ter uma agente. Na avaliação dela, o empresário só está atrás de lucro.

Revolução no skate feminino

Leticia diz que sempre foi uma pessoa "de boa" e não liga para estes comentários. A intenção, inclusive, é investir no estilo e transformar o skate feminino. Daqui uma década, a brasileira espera ver mais competidoras seguindo seu modo de vestir e ser considerada uma embaixadora do esporte.

"Acho que estou trabalhando certinho para com 30, 35 anos olhar para trás e ver que ajudei o skate feminino, que esse é meu foco principal. Ajudar que a gente tenha mais patrocínios, visibilidade, mais eventos. Quero olhar para trás e ver meninas femininas andando de skate".

Leticia não esconde que a mudança no look abriu muitas portas. Ela foi a primeira representante da modalidade a participar do Body Issue, um tradicional ensaio fotográfico da revista da ESPN americana. Em junho de 2014, a atleta fez outra mudança que ajudou a ganhar visibilidade.

Trocou Volcom e Osiris Shoes, marcas de skate, pela Nike. A empresa tem trabalhado a imagem de Leticia. Um logotipo com o nome dela foi preparado e a brasileira usava um tênis com ele na passagem pelo país na quarta-feira. "Estou com a Nike me expondo deste jeito e tô percebendo que está fazendo um impacto".

Ela sonha em ter uma linha de produtos, mas sabe que é bem difícil. Coisa para gigantes do esporte como Cristiano Ronaldo, Lebron James e Roger Federer. Mas há avanços e ela já assina algumas peças de skate como rodas e trucks (eixos).

A atleta estrela ainda o "Leticia Lest’s Go", programa do Off, canal de TV a cabo. Trata-se de um reality sobre a vida dela que vai para segunda temporada neste ano.



Amadurecimento e novo visual

Leticia ainda faz sucesso nas redes sociais e as fotos chegam a dezena de milhares de curtidas. Mas há uma consequência indesejada e alguns leitores dão zoom em partes do corpo e publicam a imagem nos comentários.

"Faz pouco tempo que começou. Eles dão um crop na minha bunda, no peito. Acho engraçado, dou risada. Meu pai não gosta, fica meio assim, cuidando. Mas tudo que eu faço passa pela minha família, passa pelos meus empresários".

A skatista diz que há algum tempo já está acostumada a escutar alguns termos tidos como mais grosseiros, como "gostosa" por exemplo, mas esse tipo de expressão passou a ser mais usado depois que colocou silicone. Ela garante que não foi para chamar atenção e que esta parte do corpo incomodava. Também explica que o novo visual precisou de maturação.


"Foi coisa de 2, 3 anos. Acho que comecei a virar mais feminina quando com 17, 18 anos comecei a namorar e a sair".

A brasileira conta que aos poucos foi se preocupando com a aparência e um dia estava dropando de unhas pintadas, maquiagem e várias tatuagens. A transição ganhou reforço de meninas mais velhas com quem passou a conviver. As irmãs também tiveram participação e já na adolescência faziam Leticia usar rosa e chuquinha no cabelo.

O resultado é aplaudido por muitos, mas as críticas também continuam. A brasileira está certa que é possível conciliar o skate com fotos, comerciais e programa de televisão. Até o momento as concorrentes não podem falar nada. Leticia é campeã da Liga Mundial de Skate Street.

“Tenho mais cicatrizes do que tatuagens”, resume para mostrar que mantém o foco.