Playboy, não

O relato de um lutador sobre ter medo de perder pela primeira vez. E como isso o fez melhor

Demian Maia Especial para o UOL, em São Paulo Lucas Lima/UOL

Forjado na luta

A missão era dura. Luta contra o maior de todos os tempos, Anderson Silva em sua melhor fase. Valia o título do UFC.

Quando acaba o segundo round, eu sento e penso: "É questão de tempo para ele me nocautear". Não estou achando a distância, não acertei um golpe, não consigo clinchar e já estou com o olho fudido. Sinto medo pela primeira vez numa luta. Não é medo de apanhar ou me machucar. É medo de perder.

Começa o terceiro round.

O Anderson acerta um golpe e começa a andar. Tenho que fazer algo porque este jogo não está dando certo. Dou a testa, o lugar mais duro da cabeça. Se ele me acertar, acertou. Então parto pra cima. Finjo que vou tentar agarrar a perna dele, finto e jogo um cruzado na direção da cabeça.

Senti minha mão acertando o queixo tão perfeitamente que foi como se tivesse acertado uma parede. Pensei: Vai cair, vai cair, vai cair... Não caiu. No intervalo do terceiro para o quarto round, ouço a conversa do Anderson com o Edélson, o treinador de boxe dele.

Treinador: Anderson, tem que meter o jab de novo!
Anderson: Não dá! Não tô conseguindo achar a distância.

E eu assumo a postura de caça no octógono.

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Batendo onde dói

Todo mundo que vai lutar com o Anderson sabe que ele provoca. Na nossa luta, uma hora o cara falou: 'Bora playboy. Vamos sair na porrada'.

Playboy me incomodou muito.

Depois da luta, veio uma enxurrada de lembranças na minha cabeça. Quando criança, eu não tinha direito a extras e passava por baixo da catraca em dois ônibus no caminho para o treino para sobrar dinheiro para um pão na chapa com café. Comer antes de treinar nem deveria ser extra, mas, para mim, era.

Não posso falar que passei fome, mas passei perrengues. Quando fui morar sozinho, com outros moleques, às vezes, chegava em casa e só tinha um pouco de farofa na geladeira. Eu jogava pra dentro e fazia descer com um copo d'água. Não achava certo ir comer na casa da minha mãe, que certamente daria um jeito de me servir alguma coisa.

Também lembrei de estar com 15 anos, quando a gente foi despejado. Tive que ir morar com meus avós. Nem quarto tinha, dividia a sala com meu irmão. A localização também era complicada. Ficava nos Campos Elíseos, uma zona barra pesada do centro de São Paulo, perto de onde é a cracolândia. Minha mãe foi morar no apartamento de uma amiga. Por falta de dinheiro, eu fiquei separado da minha mãe.

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Não falo muito dessas coisas. Sou contra pagar de sofredor, mas foi uma vida de privações. Só que não nego que também tive oportunidades. Estudei em colégios bons. Minha mãe vendia roupas e tinha clientes diretoras de escolas particulares. Elas conseguiram bolsas para mim. Eram de 70% e minha mãe batalhou muito para pagar o que faltava. Depois, emendei a faculdade de jornalismo, enquanto eu trabalhava.

Foi assim que me tornei a primeira pessoa da família a ter diploma. Meu avô ficou órfão aos 14 anos e veio do interior procurar emprego em São Paulo. Casou com minha vó, que também não tinha nada. Meus avós maternos fugiram da Rússia por causa da revolução comunista e da 1ª Guerra. Viveram da roça no Brasil.

Meus pais e meus tios não fizeram faculdade. Meu diploma é o resultado do esforço de três gerações da minha família. E me irritou muito o estereótipo. Branco com faculdade é playboy. Tudo que eu não tive na vida foi moleza.

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Derrotado, mas respeitado

O Anderson me irritou, mas ganhou a luta nos pontos. Ainda assim, a repercussão foi muito ruim para ele e muito boa para mim. Depois de tomar um atraso nos dois primeiros rounds e meio, acertei um soco, mudei o panorama e fiz o melhor lutador de todos os tempos ficar rodando no octógono.

Falo isso porque tem uma história antes daquela luta, que aconteceu em 2010, e que as pessoas não sabem.

Estamos em 2004 e o Vitor Belfort já era uma estrela internacional. Ele muda para São Paulo e precisa de sparrings de várias modalidades. Especialista que sou em jiu-jitsu, comecei a treinar com o Vitor no chão. O Anderson era o sparring em pé.

Um dia, botaram um treino que tinha o Anderson, o Vitor, eu e o Lucas Lima. Sabe quem é o Lucas Lima? O marido da Sandy. Ele é faixa preta, moleque gente finíssima. Treinava sem quimono porque tinha medo de machucar o dedo e complicar a carreira.

O dono do chão

Uma vez, o Vitor não quis treinar em pé com o Anderson e falou: "Lucas, vem comigo. Anderson, vai com Demian". Primeiro treinamos boxe. Só valia jab com a mão da frente. Era o forte do Anderson e eu não tinha noção de boxe. Tomei tanto jab...

Acaba este treino e vamos fazer chão. Lembro de ser tão fácil, mas tão fácil, que eu montava nele e nem batia. Estava muito desnivelado. Voltando para 2010, eu acreditava que podia ganhar. Sabia até o caminho.

Minha preparação priorizou o boxe. Fiz um camp em Salvador com o técnico do Minotauro. Foi um erro estratégico. Eu fui lutar no campo do inimigo, onde o Anderson era forte. No meio da luta, mudei de tática. Dei a testa e resolvi jogar cortando. Balança o tronco para um lado, balança para o outro lado, que nem o Tyson.

Pedagogia do sofrimento

A partir deste momento, ele entendeu que podia me acertar, mas se errasse eu estaria dentro dele e colocaria para baixo. O Anderson sabia que cair no chão seria o fim. Ele começou a fugir. Me provocava, mas não ia para cima. A torcida ficou louca, vaiou muito.

É difícil para quem é de fora entender. A pessoa, quando briga, é movida por uma emoção que é raiva. Mas quando você luta, é outra coisa. O lutador é movido por vontade de ganhar e por não querer perder.

A novidade desta vez foi este medo de perder, algo que nunca vivi no meio da luta antes. Era uma vulnerabilidade que eu não conhecia. Ao mesmo tempo, eu reverti o quadro. Aprendi uma lição. Mesmo quando você está vulnerável, tem a capacidade de dar a volta por cima. Senti isso na pele.

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Aprendizado vai da luta ao hospital

Estas situações extremas do esporte de alto rendimento ensinam coisas que servem para vida. Antes de uma luta do UFC em 2014, eu machuquei o ombro. Tomei uma injeção para continuar treinando. O buraco da agulha pode ter sido a porta de entrada para um problema muito maior.

No dia seguinte, tive o primeiro sinal. Acordei com uma dor insuportável, febre e tremendo. O ombro doía como nunca. Diagnosticaram uma infecção. Dois dias de internação com medicação intravenosa. Recebi alta, mas precisei voltar ao hospital.

Cheguei ainda pior. Uma ressonância apontou ostiomielite, que é quando a bactéria chega no osso. Meu médico pessoal falou que não tratar bem podia custar minha carreira. Cancelei a luta e fiquei internado.

Medo de morrer

Foram cinco dias no hospital e me liberaram cheio de restrições. Havia um cateter no lado direito do meu corpo que entrava pela veia cava e ia até o coração. Duas vezes por dia um enfermeiro ia na minha casa aplicar antibiótico. Eu estava indo bem quando comecei a ter febre. Era a terceira semana de tratamento.

Isto me assustou. Nem o cateter estava dando conta. Meu medo era o remédio parar de fazer efeito, virar infecção generalizada e levar à morte. Eu tinha febre de seis em seis horas. Fizeram uma cultura de bactéria e apontou que não havia nada.

A esta altura, tinha mudado de médico e ele achava que era vírus. Focou em controlar a febre enquanto esperava os resultados dos exames que confirmariam o diagnóstico. Mas a cultura de vírus demora dias e, neste período, entrou em cena o doutor Google. Naquela merda de querer saber o que é, eu e minha mulher começamos a pesquisar na internet e achamos que descobrimos o problema.

Demian: Doutor Vladimir, eu acho que é leucemia.
Doutor Vladimir: Não pode ser. Seus marcadores estão bons.
Demian: Mas eu vi os sintomas e acho que eles batem. Estou preocupado.
Doutor Vladimir: Certeza que não é. Mas para você tirar isto da cabeça vou fazer um petscan, que é um exame que scaneia seu corpo usando medicina nuclear.

Eu entrei na máquina com medo. Pelo vidro, eu via as pessoas e ficava fazendo análises das expressões. Qualquer coisa que falavam entre si eu já achava que estavam dizendo: "fodeu, esse não dura muito".

No quarto, contaram que não era leucemia ou qualquer tipo de câncer. Terminei os três meses de antibiótico e nunca tive mais nada.

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Um Demian mais zen

Pela primeira vez desde os 12 anos, fiquei sem treinar por 90 dias. Comi muita besteira, balas, chocolates, doces e bati em 94 quilos - nessa época eu já competia nos 77 quilos. Estes meses de jogar tudo para o alto me deram uma forma diferente de ver as coisas.

Eu havia lido um livro muito tempo atrás chamado "A arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen". O cara se concentra, mira, procura a perfeição e acerta perto do alvo, mas nunca no alvo. O mestre fala que é preciso fazer mais relaxado. Finalmente eu entendi o significado.

Sempre fui obsessivo, mas ser bitolado atrapalha seu desempenho. Tem um ponto ótimo entre dedicação e relaxamento e encontrá-lo é a chave do sucesso. Muitas vezes o cara vira um workaholic, passa do limite e atrapalha a própria carreira.

Eu prestei muita atenção a este momento de recuperação. A luta com o Anderson havia me ensinado que temos uma capacidade imensa de superação na vulnerabilidade. É nessas viradas que a gente se torna uma pessoa melhor.

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Epifanias

Eu percebo estas coisas porque estou com 41 anos e vivi metade da minha vida no ambiente de desconforto e provação extrema do esporte de alto rendimento. De vez em quando, a gente passa por momentos de clarividência e faz algumas descobertas.

As circunstâncias destas revelações podem decepcionar. Muita gente imagina que é igual aos filmes e que as epifanias surgem em momentos decisivos de grandes eventos esportivos. Não é assim. Muitas vezes acontece no meio de um treino, durante uma atividade do cotidiano.

Muita gente também não percebe que é preciso alimentar estas descobertas. É comum haver revelações em situações de doenças. Acontece com todo mundo, não só atleta. Antes da bactéria, eu colocava a luta em primeiro lugar. Se fosse campeão, podia morrer no dia seguinte que ia feliz.

A partir deste episódio, percebi que a luta está na minha personalidade, mas não é a coisa mais importante da vida. O que eu mais desejava naquela hora era não sair da vida dos meus filhos. Tem muita gente que passa por momentos complicados de saúde e descobre o que importa. Mas as semanas vão passando e depois de um tempo ela não lembra mais do que aprendeu. Volta a viver para o trabalho e outras coisas que não são sua prioridade.

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Sofrimento controlado é bom

Mas amor paterno absoluto não significa tirar todas as cascas de banana do caminho dos filhos. Eu não me preocupo que a Pietra e o Lorenzo sofram um pouquinho. Acredito que sofrimento controlado é uma evolução para qualquer um. Por exemplo, quando preciso viajar e meus filhos sentem minha falta não é um peso para mim.

Se eles não tiverem uma frustraçãozinha, vão virar pessoas ansiosas, mimadas e depressivas por falta de desafios e excesso de conforto. Eles precisam aprender a lidar com a adversidade. Eu falo isso porque, quando criança, passava sufoco e queria acabar com isso quando virasse adulto.

Sempre achei que teria sucesso profissional. A surpresa foi o reconhecimento pessoal. Houve um campeonato com meu nome e cento e poucas pessoas se inscreveram. Viajo o mundo e loto salas de palestras com gente falando que foi influenciada por mim. Hoje, eu dou mais valor a ser reconhecido do que continuar ganhando dinheiro. Claro que é fácil falar isso depois de conquistar a estabilidade financeira, mas é o que penso.

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Futuro em aberto

Eu também penso a toda hora o que vai ser daqui para frente. Fiz uma luta em fevereiro e ganhei. Tenho contrato para mais duas participações no UFC e, lutando bem, eles devem oferecer renovação. Hoje, não sei se é isso que desejo. Acho que posso me aposentar porque consegui este nível de influência com as pessoas.

Tenho academias filiadas aqui e fora do Brasil, digo não a muito convite para seminário e tenho projeto de podcasts de entrevistas que nada tem a ver com o MMA. No alto rendimento, você só consegue se dedicar 100% às lutas. E vai saber se mais velho eu terei disposição de pegar avião para outro país, bater três dias no Brasil e viajar de novo para fora. Já estou com 41 anos.

Também posso parar porque lido melhor com as duas derrotas que sofri lutando pelo título do UFC - esta para o Anderson que contei e outra para Tyron Woodley, em 2017. Não que eu não imagine fazer duas boas lutas neste contrato que me resta, renovar e ter outra chance de cinturão.

Mas dois dos três melhores momentos da minha carreira não foram no MMA, e sim no jiu-jitsu: a vitória na Copa do Mundo sobre o Jacaré; e a vitória em Abuh Dhabi no ADCC. Quando eu comecei a lutar, com 19 anos, o jiu-jitsu era um meio para atingir um fim, ser campeão de MMA. Com o tempo, a coisa mudou. O UFC virou um meio para eu desenvolver meu jiu-jitsu.

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Melhor artista de sua geração

Esta serenidade com a possibilidade de aposentadoria é consequência de senso de dever cumprido. Eu encaro as artes marciais como uma forma de arte. O jiu-jitsu é uma maneira de você expressar sua personalidade e como reagir aos acontecimentos.

Vou te dar um exemplo. Foram tantos anos dando aula que olho um aluno e é impressionante a quantidade de coisas que descubro somente pela maneira como ele luta. Percebo se é tímido ou expansivo; toca o foda-se ou é conservador; é racional ou emotivo. O humano está por trás de tudo. O UFC é uma consequência de tudo que vivi.

Neste sentido, acho que sou um artista de sucesso. Em 2017, recebi um prêmio da família Gracie, os criadores do jiu-jitsu brasileiro, como quem melhor adaptou esta arte marcial para o MMA moderno. Dentro do meu nicho, sou o melhor artista da minha época.

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