Espelho da América

Tensão racial, inovação e influência presidencial. Liga mais popular do país, NFL traduz o espírito dos EUA

Bruno Freitas Do UOL, em São Paulo Arte/UOL

É uma tradição quase patriótica, como o Dia da Independência em 4 de Julho. Os Estados Unidos vão parar neste domingo (20h, na ESPN) quando New England Patriots e Los Angeles Rams decidirão o Super Bowl 53 em Atlanta. Assim, mais uma vez, o futebol americano terá uma festa à altura de sua importância no coração do povo local.

Nenhum esporte traduz melhor o que é ser americano do que o jogo da bola oval. Cultura, contradições sociais, militarismo, vanguarda tecnológica e mistura com o debate político geralmente estão no cardápio da NFL.  

O jogo baseado em conquista de território dialoga intimamente com a própria história americana, que marchou do Leste ao Oeste até virar uma super nação. Mas os ruídos na política oficial para minorias, por exemplo, mesmo numa liga em que 70% dos jogadores são negros, entregam um DNA de conservadorismo que ainda dita como as regras funcionam.

Arte/UOL
Reprodução

O jogo dos presidentes

Uma pesquisa recentemente divulgada pelo Instituto Gallup indicou que o futebol americano é, de longe, o esporte favorito dos cidadãos dos Estados Unidos, com 37% da preferência. Basquete (11%) e beisebol (9%) vêm a seguir. Desde 1971, a NFL é a liga mais adorada da nação.

Este é um retrato de fanatismo que também costuma aparecer na Casa Branca. Em muitos momentos da história recente, o futebol americano influenciou presidentes - ou vice-versa.  Em 1906, Theodore Roosevelt ajudou pessoalmente a impor mudanças para deixar o jogo menos violento.

Dwight Eisenhower jogou futebol americano pela Academia Militar dos EUA. Gerald Ford integrou o time da Universidade de Michigan. Fanático pelo esporte, John Kennedy tentou atuar em nível universitário, mas seu físico não ajudou. Porém, anos mais tarde manteve a rotina de brincar com bola oval nos jardins da Casa Branca.

Richard Nixon também jogou em âmbito universitário, mas sua principal colaboração ao esporte talvez tenha sido a amizade com o técnico George Allen, ex-comandante do Washington Redskins. Dizem que é lenda urbana, mas tem gente que jura que, enquanto era presidente americano, Nixon teria desenvolvido uma jogada que ajudou o time da capital a vencer uma partida contra o San Francisco 49ers.

Mike McCarn/AP

O gesto que dividiu a NFL e o país

Como no Brasil, o hino nacional está presente nos eventos esportivos dos EUA. Mas a cultura por lá é totalmente diferente: a terra da bola oval trata este momento como sagrado, com doses quase religiosas de patriotismo. Imagine, então, o furor que um jogador importante da NFL causou ao peitar a tradição.

Colin Kaepernick conquistou o status de ídolo da liga na temporada 2013, quando liderou o San Francisco 49ers até o Super Bowl - o campeão daquele ano foi o Baltimore Ravens, de Joe Flacco. Três anos depois, em meio a um cenário acalorado de debate social, o quarterback ressurgiu com cabelo afro e balançou a NFL. O jogador passou a ajoelhar durante a execução do hino nacional antes das partidas, em forma de protesto contra a brutalidade das forças policiais americanas contra os negros do país.

Alguns jogadores seguiram Kaepernick, para desconforto da NFL. O protesto em meio ao hino conhecido como "The Star-Spangled Banner" tomou a sociedade e invadiu a campanha eleitoral de 2016. O então candidato do Partido Republicano Donald Trump soube usar com habilidade a polêmica para mexer com os brios do cidadão médio, obviamente criticando o gesto "antipatriótico" da estrela dos 49ers.

Trump acabou eleito, enquanto a carreira esportiva de Kaepernick praticamente acabou. O contrato do lançador com os 49ers acabou na temporada 2016 e, desde então, Colin virou uma espécie de "persona non grata" da liga. Mesmo com apelo de estrelas do esporte e virando garoto-propaganda da Nike, o jogador não conseguiu atuar. Tempos depois, processou a NFL por "conluio" para mantê-lo fora de atividade.

Opinião

O UOL conversou com o Reverendo Stephen A. Green, ativista que, em 2017, liderou uma série de manifestações pelos EUA em apoio a Colin Kaepernick, e com Paulo Mancha, comentarista dos canais ESPN no Brasil

Reunimos pessoas do chão, de várias comunidades pela América, pessoas frustradas com o tratamento que a NFL estava dando a Kaepernick, diminuindo a sua voz. A NFL é um espelho da sociedade americana, ainda mais com um presidente tirânico no poder. Como a América, a liga tem sufocado a voz dos jogadores negros para manter os privilégios dos opressores

Stephen A. Green, líder do grupo de direitos civis The People's Consortium

Ano passado, das 50 maiores audiências da TV americana, 34 foram jogos de futebol americano. A NFL é um grande veículo para expor qualquer ideia. E ele fez isso em relação à igualdade social. É um assunto polêmico. Ele acabou perdendo o emprego, mas, como comentarista, devo dizer que perdeu também porque não vinha jogando bem. Mas claro que o episódio influenciou

Paulo Mancha, comentarista de futebol americano nos canais ESPN

Dustin Bradford/Getty Images

Agora é "lei": todos precisam ficar de pé

Em 2018, a direção da NFL anunciou que iria punir jogadores que não respeitassem a execução do hino nacional. De acordo com as normas divulgadas, aqueles que quiserem podem se dirigir aos vestiários no momento do hino. 

"Nós queremos que as pessoas fiquem de pé para nos certificarmos que eles tratem este momento de modo respeitoso. É algo que achamos que devemos (ao país). Nós fomos sensíveis ao garantir o poder de escolha aos jogadores, mas acreditamos que o momento (do hino) é importante e vamos nos concentrar nele", declarou, à época, Roger Goodell, comissário da NFL, cargo máximo dentro da liga.

Você tem que ficar orgulhosamente de pé para o hino nacional ou então não deveria jogar, não deveria estar lá. Talvez não devesse estar no país

Donald Trump, presidente dos EUA, após a decisão da NFL de punir protestos durante o hino nacional

Jim Rogash/Getty Images

Regra de diversidade da NFL não impacta realidade

Existe uma data no calendário informal da NFL chamado de "Segunda Negra" (Black Monday). O evento não está ligado a questões raciais. Na verdade, é o dia seguinte ao término da temporada regular, antes dos playoffs, quando vários técnicos são demitidos. No entanto, neste ano sua conotação ganhou outros contornos.

Quatro técnicos negros (Marvin Lewis/Cincinatti Bengals, Vance Joseph/Denver Broncos, Steven Wilks/Arizona Cardinals e Todd Bowles/New York Jets) foram demitidos no encerramento da temporada. Outro profissional negro fora desligado ainda com o campeonato em andamento: Hue Jackson, do Cleveland Browns. Três brancos também perderam o emprego - Dirk Koetter/Tampa Bay Buccaneers, Adam Gase/Miami Dolphins e Mike McCarthy/Green Bay Packers. Com essas mudanças, a NFL agora apresenta só três comandantes representantes de minorias raciais, sendo dois negros (Mike Tomlin/Pittsburgh Steelers e Antony Lynn/LA Chargers) e um latino (Ron Rivera/Carolina Panthers).  

Assim, a política de diversidade enfrenta questionamentos. Desde 2003 a liga adota a "Regra Rooney", que estimula as equipes a considerarem candidatos de minorias para técnico e executivo. Os times ainda precisam documentar quem entrevistaram.

Desde que a norma foi estabelecida, técnicos ligados a grupos raciais minoritários conseguiram mais sucesso em posições de orientação de defesa, enquanto os brancos continuam com a preferência para funções estratégicas de ataque.

Grant Halverson/Getty Images

Avaliação de quarterback: negros no físico, brancos com inteligência

Recentemente, o Washington Post preparou um estudo com base em relatórios de 175 olheiros que atuam para times da NFL. Eram avaliações de quarterbacks feitas entre 2008 e 2016. O jornal chegou à conclusão de que brancos geralmente são elogiados pela "inteligência", "liderança" e "entendimento do jogo", enquanto os principais atributos listados dos negros são "muita força física" e "excelente corpo".

Posição de destaque do jogo, comumente relacionada à figura de um general em campo de batalha, o quarterback é o protótipo do herói americano. São os brancos que preenchem a relação dos maiores lançadores da história da liga, com raras exceções de sucesso entre negros, como Warren Moon - único lançador negro no hall da fama do Pro Football da NFL.

Mesmo os negros que vêm sendo bem-sucedidos neste papel nos últimos anos lidam com uma avaliação que pode não ser a mais justa. Cam Newton (Carolina Panthers) e Russell Wilson (Seattle Seahawks), por exemplo, são quarterbacks constantemente vistos como "running backs (ou corredores) que eventualmente passam a bola".

No domingo, os dois quarterbacks (Tom Brady/New England Patriots e Jared Goff/LA Rams) são brancos.

Ronald Martinez/Getty Images

O exemplo da NBA: cultura negra e liberdade nas mídias sociais

Apesar de ser a liga mais rica e popular entre americanos, a NFL perde a concorrência com a NBA em um quesito: é muito mais "cool". Também dominado por atletas negros, o campeonato de basquete estrategicamente permitiu que estes jogadores ditassem a moda comportamental a partir dos anos 80 - principalmente associados à cultura do hip-hop. O resultado foi uma expansão global da marca.

A média de valor de um time da NFL é de US$ 2,5 bilhões, contra US$ 1,3 de uma equipe da NBA. As estrelas do basquete, porém, são muito mais populares (e rentáveis) na era das mídias sociais.

Somando Facebook, Instagram e Twitter, os times da NBA têm média superior a sete milhões de seguidores, contra 4,6 milhões das equipes de futebol americano. Em 2016, a revista Forbes listou os dez atletas mais influentes na internet em todo o planeta. Quatro deles eram da badalada liga de basquete. Nenhum da NFL.

Alguns detalhes ajudam a explicar a superioridade em seguidores e likes. A NBA permite que seus atletas façam transmissões ao vivo em suas contas de mídias sociais. Já a NFL distribuiu um comunicado recentemente proibindo as equipes da liga de publicarem vídeos ou GIFs de partidas.

NFL combate até sinais de gangues

Enquanto o hip-hop domina festividades da NBA como o Jogo das Estrelas (All-Star Game), a NFL adota linha dura contra padrões de comportamento "das ruas". A liga de futebol americano chegou a instaurar uma comissão interna para analisar comemorações de jogadores que pudessem estar relacionadas com gangues violentas, investigando "quaisquer incidentes que ameaçassem a segurança da liga".

Na NFL você tem um monte de brancos donos de times e eles têm aquela mentalidade escravocrata. É tipo assim: "É meu time. Você faz o que eu digo"

LeBron James, maior ídolo da NBA hoje

Na NFL, se trata do que você pode fazer por mim esse domingo, ou essa segunda ou essa quinta-feira. E se você não fizer, nós vamos adiante

LeBron James, estrela do LA Lakers

Wesley Hitt/Getty Images

Ligação íntima com universo militar

A essência esportiva do futebol americano tem tudo a ver com o universo militar, desde conquista de território, estratégias e presença de um "general de ataque" (quarterback). Mas, em um país em que o militarismo é parte inseparável da identidade nacional, a relação da NFL com os quartéis é bem mais íntima.

Registros oficiais do governo indicaram recentemente que equipes da NFL receberam milhões de dólares do Departamento de Defesa. Em 2015, foram US$ 6 milhões destinados especialmente a cerimônias pré-jogo e execução do hino nacional. Só as apresentações com bandeiras nacionais que cobrem o campo custam em torno de US$ 10 mil ao contribuinte americano.

Em um caso específico, quatro caças F-18 voaram sobre o estádio do Dallas Cowboys antes do Super Bowl de 2011. O show custou US$ 450 mil ao governo. Detalhe: a arena tem um teto e a apresentação foi exibida aos torcedores apenas por telão.

Em troca, alguns times oferecem benefícios especiais aos militares. O New York Jets, por exemplo, tem um setor de seu estádio chamado de "heróis da casa", com assentos permanentes para membros das forças armadas e familiares. Já em novembro, a NFL promove um mês de homenagem ao militarismo. As equipes têm uma partida como mandante para saudar os defensores do país.

David Eulitt/Getty Images

De mãos dadas com a inovação 

Apesar do perfil conservador em algumas questões, a NFL está na vanguarda em outros temas como tecnologia. Os torcedores que acompanham a liga já são beneficiados com o que há de mais avançado, tanto em possibilidades dentro do estádio quanto para quem está em casa.

Em campo, desde 1994 a NFL permite que técnicos se comuniquem com seus quarterbacks em campo usando tecnologia - o mais comum é o uso de microfones nos capacetes. Isso tornou o jogo mais ágil e estratégico. A comunicação da arbitragem com os torcedores no estádio também é vanguarda pura com assinatura da liga.

A NFL também supera outros esportes com relação ao big data, no aproveitamento de estatísticas para melhorar o desempenho em campo. As informações circulam hoje praticamente em tempo real. Técnicos e orientadores de defesa, ataque ou times especiais recebem em seus tablets, 30 segundos após cada jogada, estatísticas e insigths sobre o desempenho dos atletas. Outra revolução de uma modalidade acostumada a sair na frente.

"A análise por replay, que hoje a gente chama de VAR no futebol, apareceu na NFL em 1986, há mais de 30 anos. Foi colocado de lado um tempo e finalmente retomado em 1999. O sistema não é perfeito, mas conseguiu deixar o jogo mais justo. Se o futebol da Fifa pudesse se apoiar nessa experiência seria bom, para não começar do zero, para queimar etapas"
Paulo Mancha, comentarista dos canais ESPN no Brasil.

Audiência da NFL explode no Brasil

  • Audiência

    A ESPN conseguiu 30% a mais no comparativo com a temporada anterior no público alvo do canal (homens com 18 a 49 anos com TV paga).

  • Público jovem

    O crescimento de audiência nesta fatia é ainda maior. 48% maior no comparativo com 2017/18 (homens entre 18 e 24 anos com TV paga).

  • Mulheres

    Mais de 1 milhão de mulheres com TV paga acompanharam as transmissões ao vivo, um crescimento de 18% no acumulo da temporada atual.

  • Playoffs

    O canal teve a maior audiência da história nessa fase. Os jogos de playoffs registraram crescimento de 14% de audiência em relação a 2018.

A audiência tem sido exponencial no Brasil a cada ano. Sem falar dos números, falo pelo meu feeling, pelo contato que tenho com as pessoas nas ruas e nas redes sociais. Minha voz aparece nas transmissões por três horas, mas meu rosto aparece só uns 15 minutos por semana. Mesmo assim eu sou reconhecido em restaurante, em padaria, todos os dias

Paulo Mancha, comentarista dos canais ESPN no Brasil

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