Marginal sem freio

Ciclistas colocam a vida em risco a 75km/h nas Marginais de SP, onde bikes são proibidas

Bruno Romano Colaboração para o UOL, em São Paulo Edson Lopes Jr/UOL

Um enorme enxame de bicicletas avança em altíssima velocidade. Suas rodas finas voam baixo pela pista produzindo um hipnotizante assovio em contato com o vento e o asfalto. A curiosa sinfonia se completa com o som vibrante dos dentes das suas correntes circulando em potência máxima. São duas centenas de bikes, que deslizam em bloco e abrem espaço em meio aos veículos.

A cena chama atenção nas vias expressas das marginais durante uma até então típica manhã de domingo paulistana. Do lado de dentro deste raro fenômeno, mãos suadas se apertam sobre os guidões e corpos tensionados dos pés a cabeça duelam entre si - pela vida e pelo pódio.

Durante as duas horas seguintes de ação, os ciclistas apertam o ritmo, completam movimentos arriscados e se revezam na liderança. Os corações pulsam a velozes 180 batidas por minuto. Para tudo acabar bem, é preciso percorrer com proeza um longo percurso de 100 km ininterruptos conectando trechos das marginais Pinheiros e Tietê. IMPORTANTE: as duas principais vias expressas da maior cidade do país não foram fechadas para a competição. E, em suas pistas, É PROIBIDO O TRÂNSITO DE BICICLETAS.

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"Você entra no meio de uma loucura, é um rachão mesmo! Sem 'mimimi'", resume Salomão Ferreira, 42, ciclista profissional paulista, que tem se destacado neste tipo de embate feroz. Ele é o atual campeão do Rachão do Milão.

Salomão e demais competidores cravaram uma velocidade média de 50 km/h na última edição da prova, realizada em dezembro de 2018. A marca é digna de competições referência na elite mundial do esporte, como as Grandes Voltas. Embalados no plano ou em trechos de rápida aceleração (os "ataques" na gíria ciclística), vários deles chegam a registrar até 75 km/h em seus velocímetros.

Respire fundo... Esse é só um aperitivo da prova mais underground, controversa e emocionante do ciclismo nacional.

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Competição fora-da-lei?

Segundo o Código Brasileiro de Trânsito (CBT), não é permitido circular de bicicleta em "vias de trânsito rápido ou rodovias, salvo onde houver acostamento ou faixas de rolamento próprias". Na descrição de vias de trânsito rápido apresentada dentro do próprio CBT enquadram-se apenas três locais na capital paulista: as marginais Pinheiros e Tietê e a Avenida 23 de Maio.

Para formalizar uma competição, neste caso, seria necessário fechar as rotas com planejamento prévio das autoridades de trânsito e segurança locais, além de arcar com custos altos de logística e procedimentos obrigatórios de entidades esportivas. Esse é um obstáculo comum no caminho do desenvolvimento da modalidade, defendem os apoiadores do Rachão, essa competição pirata que invade as marginais nas manhãs de alguns fins de semana.

O que não quer dizer que ser "ilegal" é uma premissa do evento. Na edição de dezembro de 2017, após conversa prévia entre ciclistas e órgãos da prefeitura, o Rachão contou com a maior parte do trajeto fechado pela Polícia Militar e apoio da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) nos cruzamentos. Em 2018, ano de troca de cargos políticos e do episódio da queda parcial de um viaduto na marginal na altura do Jaguaré, as tentativas de contato não prosperaram.

"Tivemos que partir para o 'plano C': chegar ao ponto combinado, largar e acelerar para a chegada. Sem olhar para trás", conta Roberto Zanata, sergipano radicado em São Paulo aficionado por ciclismo de estrada, que idealizou o Rachão em 2016 ao lado de amigos do pelotão. Mesmo sem nenhum regulamento ou registro oficial, Zanata dá a cara a bater quando o assunto é o Rachão.

"Tem vários pontos falhos, vamos falar a verdade... Mas as críticas são melhores do que os elogios. Vendo o pessoal 'socando o pau' em mim nos últimos anos, eu abri os olhos: antes eu só via os caras na bike, eu não enxergava os perigos reais. Isso tem ajudado ao Rachão evoluir", diz.

"Ninguém ali faz questão de ser uma prova ilegal, pelo contrário", agrega Samuel Ferraz, ciclista, treinador e autor dos canais de YouTube SamucaZarref e Powerlink Bike no YouTube, que competiu nos rachões Tarja Preta e Faixa de Gaza, "filhos" do Milão. "Se houver apoio, ótimo. E o que acho nobre é justamente isso: se não houver, ok também, o evento vai rolar".

Contatadas pelo UOL, a CET e a Secretaria Municipal de Transportes (SMT) de São Paulo não quiseram se manifestar sobre o assunto, alegando que não há nenhum pedido de autorização para o Rachão em 2019.

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Pedal marginal

Criado de forma informal em 2016, sem responsabilidade de empresas e financiado pelos próprios ciclistas desde então, o Rachão tem atraído os atletas brasileiros. No fim de 2018, 213 ciclistas largaram e chegaram nas imediações do muro do Jockey Club de São Paulo, próximo a ponte Cidade Jardim, na Marginal Pinheiros. Para uma prova não-oficial, chamou atenção a presença de competidores de 15 diferentes estados do país.

Além da adrenalina e da chance de se testar contra cenários e adversários intimidadores, há um atrativo e tanto: a premiação em dinheiro. Entregue sempre no ato. O formato é o mais simples possível. Paga-se pela inscrição e o valor é revertido em prêmio. A entrada não passa dos R$ 50. O campeão leva em torno de R$ 1.000 - daí o nome.

"Tem que tirar o chapéu para o Rachão, que tem levantado essa bandeira competitiva. A única frustração de correr a prova é ver como estamos mesmo carentes de eventos", atesta Evandro Portela, 42, ciclista curitibano com passagem por equipes brasileiras de elite e experiência em provas na Europa, que também detém um recorde mundial de velocidade sobre uma bicicleta (202 km/h) no "vácuo" de um veículo motorizado.

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Os filhos do Rachão

No último mês de março, Portela venceu uma edição especial da competição, o Rachão 'Tarja Preta', que contou com cerca de 200 inscritos para percorrer o mesmo trajeto de 100 km sobre as marginais de São Paulo. O interesse pelo "Tarja Preta" estimulou mais uma versão recente da prova, exatamente nos mesmos moldes, realizada no fim de maio: o Rachão 'Faixa de Gaza' - são as imagens desse evento que ilustram esta reportagem.

Para apimentar as competições, entusiastas pintam com rolo e tinta branca alguns trechos do asfalto das Marginais sinalizando as "metas" do trajeto - uma divisão comum em provas de ciclismo de estrada que serve para referência e/ou pontuação por tempo. Quem alcança primeiro estas faixas transversais ganha prêmios. Cruzar a terceira faixa da edição de março do Tarja Preta, por exemplo, pintada no meio da ponte do Cebolão, rendia ao atleta mais rápido até ali um bônus de R$ 1.180 e óculos profissional de ciclismo.

Em domingos de rachões, ciclistas, curiosos e voluntários se espremem na beira do muro do Jockey, no canto extremo direito da faixa dos carros. Aguardando o fim da segunda e última volta do percurso, eles celebram a chegada dos competidores em alta velocidade no sprint final.

No Rachão Faixa de Gaza, quem se deu melhor em mais uma disputa apertada foi João Gaspar, o "Canibal", 28, ciclista de elite sul-mato-grossense, com passagem em equipes de elite de estrada e montain bike no Brasil e Equador, além da seleção nacional. A premiação dos atletas rola logo depois, ali perto, em uma praça pública, com troféus e prêmios em dinheiro.

Enquanto isso, uma ambulância contratada como apoio e um furgão militar batizado de "vassourão" (ou "cata osso", como também é chamado) varre toda a extensão do percurso. Eles resgatam quem não suporta o ritmo e checam se aqueles que sofreram uma queda ainda precisam de ajuda.

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Pedra na sapatilha: entidades esportivas são contra

Apesar de ter virado objeto de desejo dos ciclistas da elite nacional, o Rachão tem gerado desconforto nos bastidores. Clubes, federações e organizadores de outras provas no país questionam o evento. Algumas, inclusive, incentivam boicote. A principal polêmica gira em torno dos perigos de acidentes com veículos e a forma como são compartilhadas as vias. Para evitar problemas, alguns atletas de destaque competem descaracterizados, sem uniformes das equipes que os pagam. Outros preferem não participam de todas as edições da prova. Mas contrariados: o desejo era colocar a bicicleta para rodar.

"O Rachão está certo ou errado? Bom, você pode ver de várias maneiras. O fato é que ele traduz exatamente nosso momento atual do esporte", diz Celso Anderson, 49, ciclista e comentarista da modalidade na ESPN. "Existe uma demanda crescente por eventos competitivos, embalada pelo uso da bike ligada a esporte e qualidade de vida, mas infelizmente as autoridades não entram em sintonia com esta necessidade", completa. Celso participou da edição 2017 do Rachão do Milão e repetiu a dose em 2018, quando conquistou o vice-campeonato.

Para Samuca, o Rachão não é exatamente protesto. "É mais simples do que isso: são ciclistas que tem na sua essência uma ligação especial com o esporte vivendo um momento competitivo", afirma. "Ninguém está ali querendo tomar espaço, fazendo arruaça, nem mesmo tem ideia de colocar outros em risco com atitudes agressivas".

Ao mesmo tempo, o incômodo gerado pela existência do Rachão e o "chacoalhão" que ele sugere no ciclismo é visto pelos seus competidores como uma forma para alavancar mudanças na modalidade. "A própria escolha das equipes pelo 'boicote' em vez do incentivo mostra o quão importante o Rachão se tornou. Ele realmente coloca o ciclista como protagonista, e isso incomoda", arremata Samuca.

Responsável pelo aval de competições oficiais dentro do Estado de São Paulo, a Federação Paulista de Ciclismo não respondeu às solicitações de entrevista do UOL. A Confederação Brasileira de Ciclismo prefere não comentar o assunto. Por meio de sua assessoria, defende como um possível caminho para melhora do cenário competitivo nacional uma mesa redonda com atletas, dirigentes e organizadores de competições oficiais. E acrescenta: "incluir ao debate um evento não-oficial e pessoas que jamais estiveram ao lado de dentro da organização legal e oficial do esporte já anula qualquer tipo de evolução e desenvolvimento".

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"É só pra quem é"

Ainda que não tenha restrições de idade e nenhum tipo de seletiva prévia - nem mesmo controle de doping ou impedimento de atletas banidos - o Rachão é bem seletivo por natureza. Esqueça a ideia de "venha pedalar com a gente na Marginal". Na linguagem dos ciclistas, a prova é "só pra quem é", como brinca Zanata junto de outros competidores, referindo-se à enorme exigência física e tática de uma competição longa decidida normalmente em um sprint final - sem falar nos infindáveis desafios do percurso.

Em outras palavras, quem está ali sabe bem o que está fazendo. Da mesma forma que apenas alguns surfistas entram em mares gigantes com fundo raso cheio de corais afiados, "bater guidão" nas marginais em alta velocidade não é para qualquer um.

Este arriscado cardume urbano tem atraído nomes fortes do esporte por aqui. É o caso de Francisco Chamorro, tetracampeão da Copa América e vencedor do Rachão inaugural de 2016, de Luis Amorim, pentacampeão brasileiro de ciclismo contrarrelógio, de Verinaldo Vandeira e Jean Carlo Coloca, que já lideraram o ranking nacional de estrada, e de Maurílio Alves "Pavarotti", com título paulista de montanha e um ouro na Volta do ABC na bagagem, dentre outros.

A presença de profissionais e ex-profissionais dá o tom do pelotão. Ainda assim, o evento começa a atrair um novo perfil de atletas. "O que mais me motiva a participar do Rachão é o alto nível competitivo e o respeito que existe ali dentro", fala Terence "Teco" Guimarães, 45, economista que divide sua energia entre o mercado financeiro e os duros treinamentos de um dedicado ciclista amador.

"Obviamente você precisa de habilidade para pedalar em um pelotão em alta velocidade. Mas, apesar da tensão e da disputa acirrada, há uma ética entre os ciclistas que predomina o tempo todo", acrescenta Teco.

Dentro de um pelotão que não separa idade, histórico e origem, como é o caso do Rachão, existe até uma brincadeira comparando estilos e gerações: os ciclistas "raiz" e os "nutella". É uma alusão ao uso excessivo de tecnologia, artefatos de treino, equipamentos e nutrição por parte do segundo grupo. O fato é que ciclistas "nutella" têm buscado seu espaço. "Antes, eles nem passavam perto. Alguns até criticavam. Agora, querem se desafiar", observa Zanata.

"Tira os carros, tira os carros, tira!"

A voz (e o quase dono) do Rachão

Mesmo "sem lei e sem dono", o Rachão tem assinatura própria. Roberto Zanata, 38, é uma mistura de diretor de prova, cinegrafista oficial e locutor. As transmissões dos Rachões rolam ao vivo na sua página no Facebook. Sua voz, junto de seu jeitão extrovertido e cheio de energia, dão vida ao evento. Que começou, aliás, meio ao acaso.

Há três anos, Zanata precisou passar por uma cirurgia na mão, fruto de um acidente, o que lhe custou alguns meses longe dos pedais. Inquieto, ele decidiu que iria dar uma força mesmo assim para seus companheiros de ciclismo de domingo (que já pedalavam frequentemente pelas marginais). Sem pensar duas vezes, sacou seu celular para fora do banco de passageiro do carro de um amigo e começou a filmar e narrar o que estava a sua frente. Nascia ali o embrião do Rachão.

A repercussão foi rápida entre os amigos, que começaram a pedir mais vídeos e narrações. Percebendo que aquilo era mais do que uma brincadeira, Zanata decidiu transformar os treinos em provas. No fim do mesmo ano, em 2016, lá estava ele dando a largada da primeira edição.

Natural de Aracaju (SE), Zanata se mudou para São Paulo em 1998. Alucinado por ciclismo de estrada, ele não vive disso. É dono de uma oficina mecânica automotiva na zona sul da capital. Sua história pessoal no ciclismo começa na década de 1990 e passa por provas como a Copa Norte Nordeste e corridas defendendo a seleção sergipana. Mas a carreira foi curta.

"Ou você come ou pedala. Ou paga aluguel ou arca com custos da bicicleta. A vida foi assim para mim e para muitos outros neste meio", recorda. Após um período de mais de 10 anos afastado do esporte, retomou o ciclismo buscando um resgate da juventude e uma melhor qualidade de vida.

Não demorou a se integrar com a turma que daria o embalo necessário para toda a história do Rachão. E ele logo se deparou novamente com a dura realidade do esporte. "Está todo mundo cansado de tanto esforço para ganhar uma medalha e 'um tapinha' nas costas", provoca Zanata, que tirou do próprio bolso os R$ 1.000 de premiação do Rachão inaugural em 2016. Era o empurrão que faltava.

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Ciclismo resistência

O percurso que levou a criação do Rachão já tem muitos quilômetros rodados. Esta legião itinerante que atravessa gerações recebe hoje o nome de Pelotão do Jockey, ou simplesmente PJ, um tradicional grupo de ciclistas mais rodados que gira forte todo domingo de manhã pelas marginais. Acumulando diferentes nomes e formações durante a história - entre eles Pelotão Marginal, Elite, dos Veteranos, da USP, dos Velhos - o encontro tem registros desde o começo da década de 1950.

Mais do que um pedal entre amigos, o PJ acaba sendo um treino de luxo para muita gente. Ele atende a uma necessidade básica dos atletas de vivenciarem treinamentos de altíssima intensidade com mais frequência. Em muitos momentos, o ritmo e a dinâmica do pelotão simulam situações reais de prova. Como a trupe é bem calejada, tudo acontece de forma natural. Nas usuais duas voltas de quase 50 km pelas marginais, não é raro um pega ou um racha começar do nada.

Por essas e outras, o PJ guarda certa mística entre muitos apaixonados pelo esporte, inclusive para quem é de fora de São Paulo. Em meio a este caldeirão de amizades e disputas dentro do universo competitivo do ciclismo de estrada, o movimento segue como um símbolo de resistência - acompanhado de boas doses de inconformismo e transgressão.

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"Esse é meu tipo de ciclismo"

Relato de Salomão Ferreira, ciclista profissional paulista, atual campeão do Rachão do Milão

"O ciclismo sempre foi minha válvula de escape, desde moleque. Nasci na Casa Verde, zona norte de São Paulo, mas mudei para Guarulhos bem pequeno. Comecei cedo na área de metalúrgica e hoje tenho uma empresa própria. Trabalho no mínimo 10 horas por dia. E não está nada fácil tocar. O ciclismo já chegou a me dar dinheiro, mas não muito (e nem sempre). É bem complicado se sustentar só como atleta, ainda mais cuidando da família com três filhos.

Comecei a pedalar tarde como profissional, já com 20 anos. Lá atrás era outro estilo, mais bruto. Uma época em que você fazia força até cair pro lado de tanto esforço. Para mim, o Rachão traz essa essência. Por isso, vencer a competição é algo muito especial. E melhor ainda é ter feito isso ao lado do meu filho Alisson, de 21 anos. Ele me deu muito apoio na prova e me ajudou a embalar no final. Pedalamos juntos na equipe SRT, e grande parte do meu esforço hoje é pensando no futuro dele e dos meus filhos mais novos, de 13 e 9 anos.

Uma pena que, nos últimos anos, o ciclismo regrediu demais em organização de provas. Andou na contramão do crescimento da massa que hoje pratica e simpatiza com o esporte. Vejo os rachões dando uma vida para essa pegada de competição. O que a gente precisa mesmo é de uma revolução. E o Rachão é o começo dela."

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"É como uma luta sem luvas"

"É sem enredo e script. Baixou a bandeira, acelera e não para pra dar entrevista! Eu mesmo não garanto nada!", diz Zanata sobre a dinâmica vigente do Rachão. Por mais que a maioria dos participantes diz não ver problema algum no fato de a prova um dia se tornar legalizada, ninguém nega que há um tempero especial no formato atual. "É como uma luta sem luvas", descreve o próprio criador.

Quando você está lá, não pensa mais em nada. Tudo exige atenção. O primeiro pensamento é sobreviver, como em qualquer prova, com trânsito fechado ou não. A mais de 60 km/h, eu sei que vou me machucar se cair. Pedalar numa marginal é sempre perigoso. Quando junta mais gente o perigo aumenta.

Celso Anderson, ciclista e comentarista da modalidade

Mas a sensação de risco com os carros, vista de dentro, não existe. E quanto mais gente, mais competitivo fica. Os ânimos se exaltam e isso nos motiva. Você está ali exatamente por isso. Quer ´bater guidão´ com seu amigo do lado e ver quem leva a melhor

Celso Anderson, ciclista e comentarista da modalidade

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É uma experiência incrível. É tenso. E não há espaço para falhas. Você pedala rápido por duas horas sem parar com mais de 200 ciclistas a centímetros de distância uns dos outros. Para os apaixonados por adrenalina é um prato cheio. Ali, todo mundo pedala em alto nível e tem chances iguais de ganhar. Realmente vence o melhor. De todas as provas que já fiz, o Rachão é a que mais se aproxima de uma corrida profissional

Terence Guimarães, ciclista amador e economista

Ninguém abaixa a cabeça. Todo mundo acelera. Esse é o ciclismo que a gente gosta de correr. Vira uma performance de verdade que chega a andar até mais do que uma corrida ´normal´. Quem é mais novo sofre

Evandro Portela, ciclista e recordista mundial de velocidade

Hoje tudo ficou muito moderno e robotizado (além de mais caro). O Rachão é o ciclismo raiz, mais ´brabo´. De quem come banana com pedra. Ele consegue trazer para fora tudo isso junto, dos instintos que temos guardado

Evandro Portela, ciclista e recordista mundial de velocidade

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Riscos reais

Na Grande São Paulo, o risco de um encontro de bikes com carros, carretas e caminhões é real. E, como mostram os índices, crescente. As estatísticas mais atualizadas de acidentes fatais com ciclistas na região são assustadoras. Só no primeiro trimestre de 2018 foram 86 mortes, segundo dados do Infosiga, o sistema de informações gerenciais de acidentes de trânsito do Estado de São Paulo. Destas, 77 aconteceram na região metropolitana - a grande maioria se deu por choque com veículos ou atropelamento. No comparativo com o ano anterior, 2017, houve um aumento de 18 %.

Por outro lado, tombos e quedas frutos da disputa por espaço em uma competição, com prejuízos físicos leves a gravíssimos, fazem parte da carreira de ciclistas profissionais. "A essência do ciclismo de estrada é velocidade, e o perigo é inerente, mesmo com todos os cuidados tomados. A maior parte dos acidentes acontece entre os próprios ciclistas, pela ação deles mesmo, principalmente quando se juntam em maior volume", diz Samuca. "É claro que um acidente me preocupa, apesar de ninguém se livrar disso no ciclismo", observa Zanata. Até hoje, nenhum caso grave foi registrado no evento.

Na realidade da rotina de quem treina frequentemente em estradas no Brasil, os riscos se agravam com a exposição e a imprudência. "Um atleta pedalando na estrada é visto muitas vezes como um desocupado, usando um espaço que não é dele. Infelizmente, é uma cultura, uma rejeição de parte da sociedade. Temos muito a lutar e a fazer para mudar isso", relata Salomão.

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Onde esse pelotão vai parar?

Apostando no formato atual, com ou sem oficialização, atletas e apoiadores têm buscado patrocinadores para manter o Rachão vivo. Além disso, articulam a participação de ciclistas de elite sul-americanos e há plano de lançar um pelotão feminino neste ano.

Por uma via paralela, novos rachões ganham força de norte a sul do Brasil, em cidades como Campinas (SP) e Salvador (BA). Os rachas têm sido feitos com base nos mesmos moldes: pelos atletas e para os atletas, sem depender do poder público ou das entidades esportivas.

"O poder público foi eleito para ter trabalho. Eles que arrumem um jeito de fazer isso acontecer de forma legal", diz Celso Anderson. "É melhor usar energia para canalizar isso e aprimorar a estrutura do que lutar contra", fala Samuca, antes de completar: "Essa deveria ser a ordem natural das coisas: atender a uma necessidade social e a utilização dos espaços públicos, explorando outras vertentes da cidade em esporte, saúde e diversão".

Com o aspecto quase político que o uso da bike tem ganhado, principalmente em grandes cidades, este caldeirão tem tudo para esquentar. Se para os críticos a ideia ainda soa absurda, para os defensores do Rachão, não existe passo atrás. Nem mão no freio. As bikes continuarão acelerando neste caminho incerto e imprevisível.

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