Sonhos interrompidos

Preso desde junho, massagista do Santos é acusado de usar entrada no clube para abusar sexualmente de menores

Pedro Lopes Do UOL, em São Paulo Arte/UOL

No último dia 17 de junho, uma investigação conduzida pela Polícia Civil de São Paulo resultou na prisão preventiva do técnico de enfermagem Clóvis Aparecido Vesco. Massagista do departamento de futebol do Santos, Vesco é acusado pelo Ministério Público de atrair dois menores de idade ao seu apartamento na Baixada entre 2016 e 2018 e estuprá-los, utilizando o sonho de acesso ao futebol profissional para seduzir os meninos e suas famílias.

Foi a mãe de um dos menores que deu, em dezembro de 2018, início às investigações. A família reside no interior de São Paulo, e havia permitido que o filho de 14 anos viajasse para Santos com Vesco. Conhecido dos pais, o massagista, segundo o inquérito, prometeu ao garoto apresentá-lo aos jogadores do elenco profissional do clube alvinegro.

Na volta, após apresentar comportamento estranho, o menor relatou ter sido dopado e estuprado. Passando-se pelo filho, a mãe utilizou o celular do rapaz para produzir provas contra Vesco. A investigação levou a Polícia ao apartamento do técnico de enfermagem. Ali, constatou que ele vivia desde 2016 com um segundo garoto, também menor de idade e com quem não tem qualquer relação de parentesco. Foram apreendidas conversas de celular entre o acusado e o segundo jovem, drogas soníferas e uma pomada anestésica de uso local. Dois processos foram instaurados, e, em um deles, a prisão preventiva foi decretada.

A defesa de Clóvis Vesco nas ações nega as acusações e afirma a inocência do massagista. O acusado já teve dois defensores no caso: na semana passada, o advogado Eduardo Leite Filho, deixou a ação, e foi substituído por Antônio Ferreira de Souza Júnior. À reportagem, o representante atual afirma que não pode comentar detalhes dos processos, que transcorrem sob sigilo, mas sustenta que provará a inocência de seu cliente. A linha de defesa do seu antecessor já vinha negando a existência de qualquer crime de natureza sexual.

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Mãe desconfia que há algo errado

A três semanas do Natal, no dia 6 de dezembro do ano passado, P., de 13 anos de idade, voltou para a casa no interior paulista após passar um final de semana em Santos. Com o sonho de jogar futebol profissionalmente, o menor tinha viajado a convite de Vesco, conhecido da família, com a promessa de conhecer os jogadores do Santos e talvez conseguir um teste no clube. O comportamento no retorno, entretanto, segundo depoimento da mãe, não era de alguém que se aproximou dos ídolos: em silêncio, o garoto evitava sair do quarto, não conversava e nem mesmo ligava o videogame.

Após seis dias agindo de forma considerada estranha, foi questionado pela mãe e narrou uma história estarrecedora. Vesco o teria dopado e estuprado durante a estadia em seu apartamento. No relato à mãe, depois corroborado em depoimento à polícia, P. diz que sentiu sonolência ao beber um suco de caixinha e adormeceu, acordando com o massagista nu, dividindo o mesmo colchão e se esfregando em seu corpo. Ele contou à polícia que, ao acordar atordoado, perguntou o que havia acontecido e teria sido informado pelo massagista de que tinha sido penetrado. Ainda sonolento, teria voltado a dormir, e sido levado de volta para casa no dia seguinte, como se nada tivesse ocorrido.

Meses depois, ao cumprir mandado de busca e apreensão, a polícia encontraria no apartamento de Vesco comprimidos do sonífero maleato de midazolam, conhecido como Dormonid e vendido sob retenção de receita médica, além de lidocaína, uma pomada anestésica de uso local. A defesa de Vesco nega que ele tenha cometido qualquer abuso, e afirma que os medicamentos eram para uso seu e de familiares.

Além de levar o relato do filho à polícia, a mãe de P. decidiu adotar uma estratégia para produzir provas do suposto crime. Ela pegou o celular do filho e, se passando por ele, iniciou conversas com Vesco, indicando que gostaria de repetir o encontro. O UOL Esporte teve acesso à troca de mensagens, entregue posteriormente às autoridades. Seu conteúdo é explícito.

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Troca de mensagens

Ao trocar mensagens com Vesco utilizando o celular de P., a mãe do menor buscou confirmar o abuso que teria ocorrido nove dias antes, e fingiu buscar um segundo encontro, desta vez consensual e sem o uso de qualquer droga. Desconfiado, o massagista pede diversas vezes, ao longo das dezenas de mensagens trocadas, fotos para que o garoto prove sua identidade, sendo atendidos pela interlocutora. Também insiste para que as conversas sejam periodicamente apagadas.

Os diálogos, mantidos pelo aplicativo WhatsApp e reproduzidos ao longo da reportagem, mostram Vesco confirmando relação sexual no final de semana onde teria ocorrido o estupro, e questionando P. se ele realmente teria interesse em repetir o ato. "Vc gosta também, se não fica sem graça", e "acordado vai ser melhor, você ajuda a colocar". "Se você não quiser, não fico chateado".

Em uma passagem, o massagista aparece instruindo P. sobre como praticar sexo oral, com instruções explícitas, de forma gráfica. No mesmo diálogo, promete ser cuidadoso durante o ato sexual, mas avisa que quer ir até o final - as conversas se estendem por mais de um dia, com a mãe do menor dizendo que está apagando os registros.

O segundo menor, J., que vivia com Vesco e também é apontado pelo MP-SP como vítima de abuso, aparece nas conversas. "Sem comentários perto do J.", diz o técnico de enfermagem em uma mensagem. "O J. vai levar um amigo, seremos só eu e vc na barraca", diz, em outra.

A defesa do massagista registrada nos autos do processo diz que Vesco percebeu, no início dos diálogos, que estaria conversando com alguém se passando pelo menor. Diante disso, teria confirmado os atos sexuais apenas por ironia, por ter considerado absurdo o teor da conversa.

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Outro caso veio à tona

A troca de mensagens foi entendida como suficiente pelo Ministério Público para um pedido de prisão preventiva, mas ele acabou negado pela Justiça, que considerou que Vesco deveria ter possibilidade de se defender antes de ser encarcerado. Sem a prisão, houve no primeiro semestre uma busca e apreensão no apartamento do técnico de enfermagem.

Durante esse procedimento foram encontradas as drogas - sonífero e anestésico -, e a Polícia Civil constatou a presença de J. no apartamento de Vesco. O menor vivia pelo menos desde 2016 com o massagista, sem grau de parentesco e sem guarda formal. Duas conversas registradas em celulares, entre o massagista e o garoto, chamaram a atenção dos investigadores. Em uma delas, J. pedia autorização para sair com amigos, o que gerava um diálogo suspeito.

"Ah, por favor, você vai ganhar o que quer de novo", diz o menor. "Não dessa forma", diz Vesco. "Acordado", diz o menor, e Vesco insiste "não dessa forma. Como sempre foi". "Duas vezes por mês?", questiona o garoto. Em outra troca de mensagens, Vesco avisa J. da denúncia feita por P. "A coisa deu merda. A mãe do P. me denunciou". "Calma, você não sabe o que é ainda", responde o jovem.

Assim como no caso de P., o MP-SP pediu também no processo envolvendo J. a prisão preventiva de Vesco. Desta vez, foi atendido pela Justiça. O órgão trabalha com a tese de que J. foi submetido a abusos sexuais continuados do massagista entre 2016 e 2017, quando tinha 13 anos.

A defesa de Vesco sustentou no inquérito que o técnico de enfermagem cuida de J. há anos, como uma espécie de pai adotivo, a pedido da própria família do garoto, mas nunca realizou os trâmites legais para se tornar guardião. Pouco depois da prisão, J. e sua mãe redigiram uma declaração negando qualquer tipo de relação sexual entre o garoto e Vesco - a reportagem não teve acesso ao documento.

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Especialistas analisam o caso

O comportamento de Clóvis Vesco nas duas acusações tem elementos comuns a casos de abuso, segundo relatado por profissionais da saúde. Especialista em psicologia da infância do adolescente, psicologia forense e transgressões de alto risco, a professora Giovana Veloso da Rocha vê indícios de gravidade nos relatos das supostas vítimas e do Ministério Público - proximidade com as famílias em ambos os casos, promessa de recompensas e agressão sexual sem o emprego de violência direta.

"Isso é modus operandi. A maioria dos agressores são intrafamiliares ou conhecidos da família, vizinhos, professores. Motoristas de van também", explica a psicóloga.

Segundo a especialista, os casos relatados mostram que Vesco possui habilidades sociais sofisticadas, o que enquadrariam os abusos, caso comprovados, em uma categoria de maior gravidade em relação a estupros cometidos mediante violência física.

"Eu vi poucas coisas sobre, não quero ser leviana, mas algumas coisas aumentam o risco, a gravidade. O fato de ser menos instrumental a violência, e mais sofisticada, com proximidade com família. Essas variáveis de risco, a literatura mostra um perfil sempre muito parecido. Nos Estados Unidos, há estudos com milhares de presos", explica.

"Nesse caso, diminui a violência instrumental. É mais perigoso, tem habilidades sociais. Os que não têm essas habilidades machucam, batem. Os que têm habilidades sociais, fica muito difícil, porque a comunidade nesse caso, sem os sinais claros de violência, muitas vezes não apoia".

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Defesa cita impotência e diabetes

Clóvis Vesco alega inocência total nos dois processos nos quais é acusado. Sua linha de defesa até agora questiona os diálogos, cita problemas de saúde que o impediriam de praticar qualquer tipo de estupro e se baseia no apoio de um dos menores tratados como vítima pelo Ministério Público.

Isso se soma à versão já relatada de que Vesco seria um guardião informal do garoto, com aval da família, e de que o próprio menor desmente ter sofrido abuso.

No caso de P., que relatou ter sido vítima de estupro no final do ano passado, a defesa adotada, além de atribuir as conversas citadas na reportagem a uma ironia, cita que o técnico de enfermagem, que tem 63 anos de idade, sofre de diabetes. Uma declaração médica anexada aos autos atesta que Vesco sofre de impotência sexual em decorrência de diabetes, e, em virtude disso, seria clinicamente incapaz de cometer o ato de estupro. A declaração recomenda tratamento com remédios por via oral.

Vesco substituiu seu defensor no início desta semana - Antônio Ferreira de Souza Júnior assumiu o caso. Em contato com a reportagem, o novo advogado confirmou ser o novo representante de Vesco, e afirmou não poder comentar detalhes das ações, que tramitam em segredo de justiça. "Apenas posso afirmar que meu cliente é inocente e vamos provar isso na justiça", disse.

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Santos não comenta o caso

Procurado pela reportagem, o Santos disse que não pode comentar o caso, já que todas as investigações correm sob sigilo de Justiça. Vesco foi massagista do clube durante nove anos - declaração anexada aos autos diz que ele sempre trabalhou com atletas profissionais, sem contato com menores de 17 anos. Pessoas ligadas à direção santista afirmam que o clube já demitiu o técnico de enfermagem - seus representantes, entretanto, ainda não receberam a carta de demissão.

Nenhuma das duas ações contra Vesco foi julgada: o processo relativo a P. está em fase de produção de provas, e testemunhas de acusação e defesa ainda devem ser arroladas pela Justiça. Vesco está preso pelo caso envolvendo o menor J., que também segue com produção de provas.

A defesa do massagista já ingressou com pedido de habeas corpus pela soltura. Em análise liminar, a liberdade foi negada. O pedido ainda será julgado definitivamente, mas a data não havia sido marcada até a publicação da reportagem.

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