Show do milhão

Times investem pesado em salários de jogadores e abrem dúvida: a gente tem dinheiro pra tudo isso?

Bruno Grossi, Diego Salgado e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Arte/UOL

Os principais clubes do Brasil tentam se adequar ao mercado. Para conseguir competir com rivais e contratar jogadores de renome é preciso investir pesado. Assim, salários na casa de R$ 1 milhão têm se tornado comuns. Mas essas altas cifras estão dentro da realidade do país? Quais impactos os clubes podem sofrer diante de tanto dinheiro gasto e da dificuldade de gerar receitas?

Quando dirigentes comentam essas negociações suntuosas, como foi recentemente a de Daniel Alves no São Paulo, passam a sensação de que gastar mais de R$ 1 milhão por mês para bancar um jogador é algo natural, simples. Mas o que esse valor representa na vida real? É mais uma das perguntas que o UOL Esporte tenta responder.

Um comparativo: segundo a Associação Brasileira de Franchising (ABF), em 2017, uma franquia do conhecido mercado "Dia%" faturava por mês, em média, R$ 891 mil. Ou seja, um comércio com alto fluxo de venda de produtos não cruzava a linha do milhão em faturamento. E ainda seria preciso pensar em todos os gastos mensais para saber o quanto o dono dessa franquia costumava ter de lucro.

No futebol brasileiro, há clubes que se estruturaram a ponto de conseguir, de fato, tornar "banal" um salário tão alto assim. Flamengo e Palmeiras dão provas de que é possível gastar muito, mas com responsabilidade e retorno financeiro. É por isso que, pelo menos a curto prazo, será cada vez mais normal ver estrelas como Gabigol atuando no país e outras, como Dudu, aceitando atuar no mercado interno mesmo diante do assédio estrangeiro.

Fred, no Cruzeiro, Hernanes, no São Paulo, Diego Tardelli, no Grêmio, e Ramires, no Palmeiras, se juntam ao "time do milhão". Nomes como os do cruzeirense Pedro Rocha e dos rubro-negros Vitinho, Filipe Luis e Rafinha chegam bem perto aos sete dígitos nos vencimentos.

Arte/UOL
Buda Mendes/Getty Images

Flamengo e Palmeiras dão passos seguros, conta especialista

Flamengo e Palmeiras são donos das maiores arrecadações e folhas de pagamento do futebol brasileiro e investiram pesado em contratações em 2019. O clube carioca comprou Rodrigo Caio (São Paulo), Arrascaeta (Cruzeiro), Bruno Henrique (Santos) e Gerson (Roma), enquanto os paulistas desembolsaram valores importantes por Carlos Eduardo (Pyramids), Matheus Fernandes (Botafogo), Zé Rafael (Bahia), Vitor Hugo (Fiorentina) e Luiz Adriano (Spartak Moscou).

Embora as cifras dos dois clubes sejam elevadas, tanto em relação às contratações, quanto aos salários, existe uma segurança para isso acontecer. Hoje, os dois clubes se sobressaem no futebol brasileiro e impõem um "abismo financeiro" diante dos grandes rivais. Os palmeirenses tiveram receita recorde em 2018: R$ 654 milhões, contra R$ 536 milhões dos rubro-negros - o terceiro colocado, o São Paulo, atingiu "apenas" R$ 399 milhões.

O fôlego financeiro dos rivais foi conquistado de formas distintas. O Palmeiras "virou a chave" a partir de 2015, com dois acontecimentos praticamente simultâneos: a abertura do Allianz Parque, em novembro de 2014, que ajudou a potencializar as receitas de bilheteria e sócio-torcedor, e o acerto com a Crefisa, patrocinadora sólida do clube. No Flamengo, a virada se deu no começo de 2013, na gestão de Eduardo Bandeira de Mello, marcada pela política de austeridade financeira do clube. Nesse período, os rubro-negros conseguiram reduzir a dívida e ainda aumentar receitas, como a de direitos de TV.

O movimento que foi feito foi dentro de um respeito ao orçamento. Eles tinham essa folga, pois 2018 ajudou nisso, a fazer esses tipos de contratações com salários elevados

Cesar Grafietti, Consultor financeiro, responsável pela "Análise Econômico-Finaceira dos Clubes Brasileiros de Futebol", do Itaú BBA

De onde vem o dinheiro?

Veja como os clubes mais ricos do país compõem as receitas, segundo balanços financeiros referentes a 2018

Cesar Greco/Ag Palmeiras/Divulgação

Palmeiras

No ano passado, o Palmeiras arrecadou R$ 654 milhões. A maior parcela desse valor veio da venda de jogadores (R$ 180 milhões), com as receitas de bilheteria e sócio-torcedor logo atrás (R$ 160 milhões). Ao contrário do que a maioria pensa, o patrocínio da Crefisa foi apenas a quarta maior fonte de renda do clube, com R$ 100 milhões arrecadados, abaixo do que foi recebido em direitos de TV (R$ 137 milhões). O pacote é fechado ainda por R$ 51 milhões do clube social e mais R$ 36 milhões de outras fontes.

Alexandre Vidal/Flamengo

Flamengo

O Flamengo, também em 2018, arrecadou R$ 536 milhões, com grande destaque para a receita de direitos de TV. Foram recebidos R$ 222 milhões, o que representa mais de 41% do faturamento total. A segunda melhor fonte de renda vem de bilheteria e programa de sócio-torcedor, totalizando R$ 93 milhões. Um pouco abaixo, com R$ 90 milhões, aparecem os investimentos dos patrocinadores. A venda de jogadores gerou R$ 57 milhões, já o clube social levantou R$ 52 milhões. Ainda houve R$ 22 milhões arrecadados de outras fontes.

Thiago Ribeiro/AGIF Thiago Ribeiro/AGIF
reprodução/Instagram

Os outros clubes precisam ser criativos

Mas e no caso dos outros clubes que fizeram contratações com salários tão altos e não são enquadrados como seguros financeiramente?

De acordo com especialistas, São Paulo, Grêmio e Cruzeiro precisam gerar novas receitas ou terão de potencializar as que já fazem parte da realidade. Os salários atingiram um patamar que exigirá alternativas. "As receitas tímidas com sócio-torcedor mostram aos clubes um potencial inexplorado, que é a receita direta do torcedor. Outro caminho são os direitos de transmissão em reinvenção. Os clubes têm que aproveitar a chance de falar diretamente com o torcedor", aponta João Henrique Areias, ex-diretor de marketing do Flamengo e do Clube dos 13, hoje professor e consultor de marketing esportivo.

O core business (parte central do negócio) do futebol é a torcida. Você agrada e aumenta sua torcida com títulos e ídolos. Então, sem dúvida, é importante contratar uma grande estrela: ela aumenta sua clientela.
João Henrique Areias

O São Paulo, que agora tem o jogador com salários mais elevados do futebol brasileiro, busca uma solução já usada por outras equipes no passado. A ideia é que a imagem do atleta possa ser utilizada em publicidade. Assim, as empresas parceiras ficam responsáveis por pagar parte do salário de Daniel Alves - até um terço do valor. O problema é que o São Paulo, há pouco mais de um mês, chamou a atenção no noticiário por causa de atrasos no pagamento de direitos de imagens dos jogadores. Ou seja: ou novas receitas são geradas ou o endividamento será inevitável.

Acho que há três visões. Primeiro é do torcedor mais consciente, que fica pensando: 'Será que vale a pena pagar R$ 1,5 milhão? Será que o meu clube não vai quebrar? Será que vamos conseguir patrocínio para pagar?' Tem a parte mais da sociedade em si, que às vezes acha que o jogador devia ganhar R$ 200 e uma paçoca-rolha

Luis Augusto Símon, o Menon, Jornalista esportivo desde 1988, autor do "Blog do Menon" no UOL

E tem também o torcedor mais porra louca, mais apaixonado, que não está nem aí. Meu irmão fala isso: 'Eu não sou banco, quero que meu time ganhe títulos, o dinheiro não é meu' (risos). Essa parte não está muito preocupada com o dinheiro, mais com a paixão. E eu acho que de 2000 para cá não mudou nada nessa divisão de pensamentos

Sobre os altos investimentos dos clubes brasileiros

Os jogadores realmente ganham mais hoje em dia?

Craques do Vasco, Romário e Edmundo estavam no topo da lista dos maiores salários em 2000. Segundo uma reportagem da revista Placar, de maio daquele ano, os dois jogadores recebiam R$ 450 mil. Aplicando índices de inflação, esse valor estaria bem próximo do salário que o São Paulo vai pagar a Daniel Alves.

Mesmo em fim de carreira, ao retornar para o Tricolor, o hoje dirigente Raí chegava perto da dupla vascaína. Ele era seguido por outras estrelas da época, como o colombiano Rincón (Santos) e o sérvio Petkovic (Flamengo), além do trio corintiano Edílson, Marcelinho Carioca e Vampeta.

Mas dezenove anos antes, o cenário era bastante distinto. Zico, maior estrela do futebol brasileiro na década de 1980, recebia um salário de 1 milhão de cruzeiros. Hoje, esse valor corresponderia a aproximadamente R$ 172 mil, em cálculo que teve o salário mínimo como base.

O Galinho era seguido por Sócrates e Reinaldo, ídolos de Corinthians e Atlético-MG, respectivamente.

Divulgação

Concorrência, câmbio e a disparidade econômica

As maiores folhas salariais do futebol brasileiro são de Flamengo e Palmeiras e batem a marca de R$ 15 milhões, somando CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e direitos de imagem (que podem corresponder a até 40% da remuneração total de um atleta). A média de pagamento mensal dos clubes da Série A é próxima de R$ 4 milhões. Para ser competitivo, em 2000 ou 2019, é preciso pagar bem.

Sorte da dupla, porém, que eles não estão na Europa. Com o dólar cotado a R$ 4,05 e o euro a R$ 4,51 (ontem), um clube brasileiro precisa de R$ 1 milhão para pagar um salário equivalente a cerca de 220 mil euros que um clube europeu desembolsaria. Um salário mediano por lá.

O Manchester United, por exemplo, tinha uma folha salarial anual em 2018 de 296 milhões de libras, ou R$ 1,45 bilhão. O que representa cerca de R$ 120 milhões mensais. Até mesmo o time com a menor folha salarial da Premier League* paga mais do que Palmeiras ou Flamengo: o Huddersfield Town tinha uma folha de R$ 25,6 milhões mensais quando foi o 16º colocado do Campeonato Inglês da temporada 2017/2018.

Isso mostra como o mercado do futebol está inflacionado no mundo todo. O Manchester United, novamente usado como exemplo, tirou Maguire do Leicester por 87 milhões de euros (R$ 384 milhões) e o transformou no zagueiro mais caro do mundo. As cinco principais negociações da Premier League nesta janela de transferências, aliás, movimentaram pelo menos 60 milhões de euros cada uma. Além de Maguire, Pépé (Arsenal), Rodrigo (Manchester City), João Cancelo (Manchester City) e Ndombéle (Tottenham). Nenhuma estrela.

Assim, o que acontece no Brasil com contratações astronômicas e salários gigantesco pode ser visto como um movimento natural para que os clubes não fiquem tão para trás no mercado.

* Números equivalem à temporada 2017/2018 divulgados pelo jornal britânico Guardian

Pedro H. Tesch/AGIF Pedro H. Tesch/AGIF

Necessidade de vender craques: o almoço pelo jantar

O aperto financeiro dos clubes resulta numa situação corriqueira no futebol brasileiro. Para fazer caixa e cobrir os rombos, jogadores são vendidos a fim de, justamente, aumentar uma receita variável do balanço. "Se o clube não souber explorar bem as novas possibilidades de marketing, ele vai ter que vender jogador, estádio, qualquer coisa para poder repor. Tudo em função da falta de planejamento", diz João Henrique Areias.

"Quando estoura o orçamento, os clubes precisam de novas fontes de receitas. E elas não brotam. Aí precisa vender atletas. É uma aposta alta", comenta Cesar Grafietti.

Segundo ele, o Grêmio, embora esteja com as contas equilibradas, dá mostras disso ao admitir que esperava "uma enxurrada de propostas" pelo atacante Éverton. A declaração foi dada no começo do mês, pelo diretor de futebol do clube, Deco Nascimento.

No caso do Cruzeiro, por exemplo, a venda de Arrascaeta ao Flamengo ajudou a ajustar as contas. O time mineiro, além disso, viu a receita com premiação decolar. O clube recebeu R$ 63 milhões pelo título da Copa do Brasil - no ano anterior, pela mesma conquista, as cifras atingiram R$ 13 milhões. O Flamengo, por sua vez, vendeu o jovem zagueiro Léo Duarte ao Milan por 11 milhões de euros (R$ 49 milhões). E assim o ciclo se mantém.

Daniel Augusto Jr/Ag. Corinthians

Ronaldo é exemplo para quem faz grandes contratações...

Em dezembro de 2008, o Corinthians surpreendeu ao anunciar a contratação de Ronaldo. Doze anos depois, os envolvidos na operação que viabilizou a contratação são categóricos: Ronaldo veio de graça ao Corinthians. E, com isso, ele virou o modelo para a maioria das grandes contratações feitas pelo futebol brasileiro desde então - incluindo a de Daniel Alves pelo São Paulo.

Isso aconteceu graças ao modelo de negócio idealizado pela diretoria do Corinthians e o estafe de Ronaldo à época. O Corinthians aceitou pagar R$ 400 mil (corrigido pelo índice IPCA, o salário seria de R$ 720 mil nos dias atuais). Com a força do nome e de tudo o que representava, Ronaldo ficaria com 80% dos parceiros que trouxesse ao Parque São Jorge. "Eram dois gigantes que se encontraram em baixa, num momento não muito positivo. Foi preciso competência e também sorte", diz Raul Corrêa, ex-diretor financeiro do clube.

A expectativa se cumpriu. O Corinthians encheu o uniforme de patrocinadores, ajudado, obviamente, pelo desempenho de Ronaldo no primeiro semestre de 2009 - conquistou o Campeonato Paulista e a Copa do Brasil. Com os 20% com a que tinha direito, pagava o atacante e ainda aumentava a receita.

Alan Morici/Brazil Photo Press/LatinContent/Getty Images

...e experiência com Pato é um sinal de alerta

Em 2013, o Corinthians acreditou que seria possível usar a mesma "fórmula mágica" de Ronaldo com Alexandre Pato. Não deu certo e virou um alerta para que os planos de marketing nem sempre funcionam como os especialistas preveem. Era um jogador mais jovem e em ascensão na Europa e na seleção brasileira, mas o próprio clube não pesou aspectos importantes na hora de tentar replicar a estratégia do Fenômeno.

À época, o clube alvinegro topou pagar R$ 800 mil mensais de salário para Pato, além de desembolsar cerca de R$ 40,5 milhões por 60% dos direitos econômicos do jogador. Os vencimentos, hoje, correspondem a R$ 1,16 milhão corrigidos pelo índice IPCA. Só que o atacante não tinha o perfil que costuma atrair os torcedores corintianos - e encontrou resistência até dentro do clube, entre jogadores e comissão técnica.

No primeiro ano de clube, assim como Ronaldo, Pato conseguiu dois títulos: o Paulistão e a Recopa Sul-Americana. Mas a imagem que ficou para os alvinegros foi da cavadinha frustrada contra o Grêmio na Copa do Brasil. "Não conseguimos repetir. A contratação dele deu problema", disse o ex-diretor do Corinthians Raul Corrêa.

O Corinthians ainda emprestaria Pato ao São Paulo pagando metade dos salários, mas receberia Jadson em troca em definitivo e, dois anos depois, venderia Pato para o Villarreal, da Espanha. O resultado esportivo melhorou, com Jadson sendo campeão brasileiro em 2015 e se tornando ídolo da torcida. Hoje, Raul Corrêa diz: "A melhor coisa que conseguimos com o Pato foi o Jadson."

Reprodução/Facebook

No futebol brasileiro, o show do milhão é para poucos

Mas, afinal, quando passamos a considerar normal ver um jogador de futebol brasileiro ganhando R$ 1 milhão por mês? Apesar do glamour das grandes contratações, a verdade é que não é normal. A realidade do futebol no país é outra.

De acordo com o levantamento mais recente divulgado pela CBF, 82% dos jogadores profissionais do país recebem mensalmente até R$ 1 mil e 95% no máximo R$ 5 mil. Apenas 4% de um universo de mais de quase 30 mil atletas têm vencimentos acima deste valor. Um alto salário, acima de R$ 200 mil, era privilégio de somente 36 atletas, todos da Série A do Campeonato Brasileiro. É mais do que o valor das folhas mensais de Brusque-SC e Manaus-AM, os finalistas da Quarta Divisão, por exemplo.

"Não dá para enxergar o futebol com os olhos de quem atua na Série A ou B. É a partir da Série C que as dificuldades começam a aparecer. Não terá equivalência nunca, faz parte. A diferença é muito grande. Cabe às entidades de defesa da classe suprir dificuldades que possam ter na parte psicológica, fisiológica, auxílio financeiro ou mesmo capacitação educacional. Quanto aos clubes, é ficar de olho para ver se dão conta. Tem que ter planejamento para conseguir trazer atletas de nível. Mas a tendência é essa, porque os clubes vêm se estruturando", explica o ex-atacante Washington, com passagem pelo Palmeiras, que hoje comanda o Sindicato dos Atletas de Futebol do Município de São Paulo.

Outro ponto que dificulta a vida dos jogadores de divisões inferiores ou campeonatos regionais é a falta de calendário. Com poucas competições no segundo semestre, os contratos são curtos. Isso inviabiliza um planejamento de carreira, que, novamente, fica restrito às grandes estrelas do futebol brasileiro. Viver de futebol no país - e, mais ainda, participar do "show do milhão" é para poucos. Pouquíssimos.

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