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Racismo x sorrisos: como um negro brilhou em um esporte branco no apartheid

Getty Images
Imagem: Getty Images

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

23/10/2014 06h00

Até 1994, o rúgbi na África do Sul simbolizava o apartheid, sistema de segregação que dividia o país em brancos e negros. Essa segregação caiu em 1994, quando Nelson Mandela foi eleito presidente. No ano seguinte, o título mundial da seleção de rúgbi marcou um passo simbólico no processo de integração, quando grande parte dos sul-africanos negros apoiou o time que, até o ano anterior, era o símbolo da elite dominante branca.

Um dos personagens centrais daquela conquista, tanto em campo, quanto a simbólica, foi Chester Williams. Ele era o único negro daquela seleção. Foi considerado traidor por alguns conterrâneos. Mas, quando a África do Sul venceu a Nova Zelândia para conquistar o mundo pela primeira vez, virou herói nacional. “Sorte que ganhamos. Porque aquele título acabou sendo marcante no processo de integração. Sem a conquista, acho que poucos se lembrariam de nós. Todos lembram dos campeões”, analisa. A história é tão importante que o relato daquela conquista virou um livro best-seller (Invictus – Conquistando o Inimigo, de John Carlin) e um filme indicado ao Oscar (Invictus, com Morgan Freeman e Matt Damon).

Em visita ao Brasil para conhecer projetos sociais e dar palestras, Chester falou ao UOL Esporte sobre as dificuldades que os sul-africanos enfrentaram e ainda enfrentam. No ponto mais polêmico da conversa, ele defende um sistema de cotas para negros no rúgbi da África do Sul, que está sendo discutido atualmente.

A intenção da federação da modalidade no país é estabelecer números mínimos de atletas negros que todos os times devem cumprir. Incluindo na seleção, com uma meta de 50% de atletas não-brancos (no país, é usada a denominação “colored”) nos próximos anos. “Os responsáveis pelas decisões ainda acham que os brancos são superiores. Os negros não tem a chance de falhar. Porque nunca vão receber uma segunda tentativa. As cotas são necessárias para que essas pessoas entendam que a cor não é o que mais importa no esporte”.

Confira a entrevista:

UOL: Qual era o cenário do rúgbi na África do Sul quando você começou? Como era a relação dos negros com um esporte que era símbolo do apartheid?
Chester Williams: Na África do Sul, o rúgbi é como o futebol. Todo mundo que começa a praticar esportes começa jogando rúgbi. Com três ou quatro anos, eu já estava correndo com uma bola na mão. Muitas das escolas negras têm programas de rúgbi e, nos últimos 20 anos, a população negra começou a praticar o rúgbi em um número muito maior. Mas a grande questão não é começar a jogar rúgbi. É entrar nos times brancos. Na minha época, isso era muito complicado, já que o apartheid ainda estava lá. Essa dificuldade não foi embora do dia para a noite. Isso é algo pelo qual todos os sul-africanos precisam lutar diariamente. É preciso entender que é um desafio cultural. Acho que, hoje, não é mais uma questão de cor. É uma questão de diferenças. Modos de vida diferentes, Maneiras de falar diferentes. No fim das contas, é a diferença de como tratar as pessoas que vem de realidades diferentes. Eu, por exemplo, só joguei nas escolas negras. Quando jogávamos, só enfrentávamos as outras escolas negras. E isso fazia com deixar a sua marca no esporte fosse muito difícil. Quando cheguei aos 17, 18 anos, porém, já tinha ultrapassado essa barreira e estava enfrentando jogadores brancos.

Nessa etapa, o preconceito deve ter sido muito maior, certo?
Chester Williams: Claro que existia preconceito. O Apartheid ainda estava na memória das pessoas. Quando um negro chegava a um dos times de elite, que eram predominantemente brancos, tinha de ter uma ética de trabalho muito forte, precisava se esforçar muito mais. Para um negro, existia uma chance de chegar à elite. Se você não aproveitasse, nunca mais teria essa opção. E não só durante os jogos, mas no ambiente do clube. Existia sempre um grupo que gostava de você e outro que não gostava. Eu simplesmente ficava com o grupo que gostava de mim.

Mesmo assim, você chegou à seleção. Existia preconceito nesse alto nível? Como a população negra via um dos seus defendendo a camisa dos Springbocks (o símbolo da equipe sul-africana)?
Chester Williams: Parte da população negra achava, sim, que eu era um traidor, por estar jogando com brancos, em um esporte branco e chegando a defender os Springbocks, que era uma instituição do apartheid. Mas a maioria do país, acho que uns 90% da população, estava ao meu lado. Essas pessoas entendiam o que eu representava, que a minha participação naquele time era o início de uma mudança, era o início do processo de integração entre os lados que antes existiam. Para mim, era uma honra representar isso. Mas, sendo da seleção ou não, em nenhum momento eu podia abaixar a guarda. Tinha de manter minha ética de trabalho, seguir vencendo sempre, mesmo já tendo chegado aos Springbocks. No rúgbi, existe a “oportunidade negra”, que é única: se você é negro, você só tem uma chance para dar certo. Se falhar, não vai ter outra. Com os brancos, existem mais chances. Se eles têm um jogo ruim, vão ganhar uma nova chance, porque acreditam em seu talento. Conosco, se você não aproveita essa primeira oportunidade, não vai ter a segunda, a terceira ou a quarta.

Quando você jogava, já tinha noção da importância do que estava fazendo? Ou essa noção veio só depois?
Chester Williams: Eu jogava rúgbi porque achava que tinha talento e, principalmente, por acreditar ter a ética de trabalho necessária para ser um jogador de rúgbi. E, claro, sabia que o esporte era uma oportunidade para mudar a ideia que o sul-africanos tinham sobre os negros praticando esportes. Mas é claro que Nelson Mandela me ajudou muito a entender esse papel. Nós nos encontramos várias vezes e ele explicava como o rúgbi podia ser uma ferramenta para integrar brancos e negros no país, como o esporte era uma arma para criar a nação do arco iris.

Desde o título de 1995, a seleção sul-africana teve jogadores negros e hoje tem seu primeiro técnico que não é branco. Você acha que a questão racial ainda é um problema para o time?
Chester Williams: Sim. Até mesmo o governo está falando disso. Levamos 20 anos para chegar ao ponto em que estamos hoje e a integração dos jogadores negros ainda é delicada. Há 20 anos, quando fui convocado, deveria ter sido traçado um plano de como os jogadores que não são brancos seriam integrados ao sistema do esporte no país. Mas não houve isso. Hoje, existe a discussão de um sistema de cotas para jogadores negros na seleção. O problema é que os atletas acabam estigmatizados por esses nomes. Quem é convocado, é chamado de “atleta da cota”, o “jogador negro”. O problema é que esse sistema ainda é necessário. Sem ele, os jogadores negros não teriam oportunidades. Quem comanda o rúgbi na África do Sul, não nas seleções, mas nos times, em todos os níveis, ainda veem mais talentos em brancos do que em negros. Essas cotas são necessárias até que eles percebam que os jogadores, brancos ou negros, são iguais no que fazem.

Você acha que essas cotas são ideais para a integração? No Brasil, temos um sistema de cotas para ingresso no ensino superior, por exemplo, e elas sempre foram polêmicas...
Chester Williams: Eu concordo com sistemas de cotas. Mas é preciso que isso seja justificável. Você não pode ter pessoas nesses sistemas que não têm a qualificação necessária. Uma pessoa que entra na faculdade de direito pelo sistema de cotas, mas que não tem notas para isso, jamais será um bom advogado e não será um instrumento no crescimento do país. É nisso que é preciso pensar ao se montar um sistema de cotas. Mas o que é realmente necessário para pensar em integração é trabalhar para que haja aceitação. Um dos fatores importantes em que muita gente não pensa é que os brancos precisam aceitar os negros, mas que também os negros também precisam aceitar os brancos.

Na África do Sul esse é um problema? Os negros têm problemas em superar a questão racial?
Chester Williams: O que aconteceu no passado deixou muita gente machucada. Profundamente. A mudança começou, mas isso não é algo que se possa aceitar do dia para a noite. Nós lutamos por muito tempo pela igualdade e, agora, precisamos de tempo para que todos aceitem uns aos outros. Mudamos muito nos últimos anos, passamos a aceitar mais os brancos. E os Springbocks são um exemplo disso. Se olhar para o apoio dos negros ao time hoje, é uma mudança gigantesca em relação ao que era quando eu cheguei ao time. Hoje, o apoio é de 80% dos negros, o que é incrível, já que você sempre vai ter aqueles 10, 20% de pessoas que ainda carregam cicatrizes que simplesmente não se curam. Mas até eles mudaram. O que é muito importante ressaltar é que nós, homens com cicatrizes, que algumas vezes não conseguimos esquecer ou perdoar, temos o dever de mudar isso para as crianças. Não é o problema dos mais nossos. É nosso. Elas têm o direito de crescer em um país em que a questão racial não importa. E é isso que estamos vendo na África do Sul hoje. Eu sou casado com uma mulher branca e meus filhos estudam em uma escola branca. E a cor, para eles, não é uma questão.

Em suas viagens pelo mundo, você viu algum país com questões raciais tão latentes quanto na África do Sul?
Chester Williams: Nunca. A África do Sul viveu a divisão cultural mais dramática com a que eu tive contato. Provavelmente, fomos o último país do mundo a abolir essa separação entre brancos e negros. E esses conceitos são tão fortes, estão tão arraigados em nossa cultura, que só hoje, 21 anos depois, que estamos conseguindo superar isso. Não quer dizer que não exista racismo no mundo. Existe. Mas a África do Sul é um pais jovem, uma democracia jovem. E essas diferenças, que foram incentivadas por décadas, não desaparecem do dia para a noite. É necessário trabalhar diariamente para superar isso.

Você ainda sente segregação hoje?
Chester Williams: Em algumas partes do país ainda existe. Você ainda pode sentir isso. Até mesmo comigo. Quando eu entro em shopping centers, as pessoas olham para mim, mas não me cumprimentam. Eu sempre chego sorrindo, distribuo acenos. E quando veem que é Chester Willians, o jogador dos Springbocks, voltam para falar comigo. Muita gente pergunta porque eu não trato essas pessoas como eles me trataram. Mas não: eu mantenho o sorriso sempre. Falo com todos. Porque esse é o jeito com o qual eu quero ajudar a mudar o mundo. Com sorrisos. Não sou amistoso com as pessoas porque tenho que ser amistoso. Sou porque quero fazer isso. Eu quero mudar a África do Sul de uma maneira amistosa.