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Do tráfico ao sonho da seleção: o esporte na vida de jovens infratores

Daniel Lisboa

Do UOL, em São Paulo

29/07/2015 06h00

“Para que serve o esporte na sua vida?”

“Para eu esquecer que estou preso, né”

É assim, de forma direta e reta, que Gabriel Silva Filho*. responde sobre o papel que o esporte cumpre em sua vida. Hoje ele é interno da Fundação Casa, instituição do Governo de São Paulo que aplica medidas socioeducativas a menores infratores. Gabriel. está preso por tráfico de drogas na unidade Rio Pardo, e pensa em sair logo para poder ajudar a mãe e as irmãs que vivem em Barretos, no interior do estado. Enquanto isso não acontece, ele ajuda os colegas a conquistarem o campeonato interno de handebol da instituição. E põe ajuda nisso: Gabriel acaba de marcar nada menos que 10 gols na vitória de 24 a 6 na final contra a unidade Nova Aroeira, da capital. Na semifinal, ele já havia marcado nove gols. “Penso em trabalhar com esporte quando sair daqui”, diz o interno.

As finais estaduais do torneio interno de handebol da Fundação Casa aconteceram no dia 08 de julho no Ginásio do Pacaembu, em São Paulo. Nelas, os times que se classificaram nos campeonatos regionais da instituição se enfrentaram para decidirem quem seria o grande campeão. Rio Pardo venceu no masculino, enquanto, entre as garotas, uma das equipes da unidade Cerqueira César (duas competiam) levantou o troféu.

Um campeonato como qualquer outro

Durante os jogos, que começaram as nove horas da manhã e foram até o final da tarde, o clima no importante ginásio paulistano é igual ao que seria o de qualquer outra competição envolvendo jovens. Há tensão no ar, gritaria, torcida, cobrança entre colegas e entre jogadores e técnicos, broncas do árbitro para coibir lances mais ríspidos, comemorações e abraços. Não há nada ali que indique que estão em quadra menores infratores, até porque não existe um aparato de segurança especial. Não há, por exemplo, a presença de policiais. Os garotos e garotas estão acompanhados tão somente do “staff” de suas unidades, do qual fazem parte, por exemplo, coordenadores pedagógicos e professores de educação física.

Depois de vencer a semifinal por 12 a 6, e fazer um bom começo de partida, o time de Nova Aroeira amarga uma goleada na final. Os passes ágeis e a defesa quase instransponível da equipe de Rio Pardo são um balde de água fria momentâneo em Joaquim Antonio, que esperava o título e a artilharia do campeonato. Em Ricardo Carlos, armador do time que queria muito levar o título para Nova Aroeira. E em Marcelo Rômulo, que não gostava de handebol, mas hoje sonha até em um dia jogar na seleção.

Sonhos moldados pelo esporte

Os três garotos treinaram duro para chegar à final. Mas, passada a frustração da derrota, aplaudem os colegas de Rio Pardo e celebram o quão longe chegaram – afinal, 80 equipes masculinas começaram a disputa. Agora, eles voltarão à Nova Aroeira, uma das cinco unidades que integram o complexo da Fundação Casa às margens da Rodovia Raposo Tavares, na zona oeste de São Paulo, para cumprirem suas medidas socioeducativas.

Joaquim Antonio está com 18 anos e foi preso por tráfico de drogas. É reincidente e, inclusive, já fugiu justamente em uma saída esportiva. “A gente tinha saído para fazer um jogo e eu aproveitei a chance”, ele lembra. “Mas eu era moleque né, não sabia o que fazia”. Ele de fato parece mudado. A opinião é compartilhada por alguns dos responsáveis por orientá-lo na unidade, e o esporte teve um papel fundamental nessa evolução.

“O esporte me ajuda bastante a pensar na vida, sobre o que eu estou fazendo aqui”, diz Joaquim, após um treino, uma semana antes da final no Pacaembu. “É importante para distrair a mente e, principalmente, ajudar a gente a ter um objetivo na vida.” Joaquim deve ficar em Nova Aroeira por mais quatro meses. Depois, pretende fazer ENEM e tentar uma bolsa de estudos para estudar Educação Física.

“Treinar é bom para quando a gente está com a cabeça meio bagunçada” diz Ricardo Carlos. Ele também está com 18 anos e acabou em Nova Aroeira por roubo qualificado. Antes da Fundação Casa, ele conta que sua referência sobre competir era bem diferente. “Tinha muito mais briga que esporte”, conta Ricardo. “Saindo daqui, quero ir além. Quero continuar jogando, quero trazer um título para o Brasil”, empolga-se o garoto, falando sobre o handebol, também uma semana antes da grande decisão.

Marcelo Rômulo é outro que pensa em continuar jogando handebol quando deixar Nova Aroreira. Com 17 anos, ele também está preso por traficar drogas. “Eu não gostava muito do esporte no começo, mas depois começou a me ajudar a ficar mais tranquilo e a focar na medida socioeducatica”, diz Marcelo. Como já foi mencionado, ele é mais um que gostou tanto do handebol que passou a sonhar alto. “Quem sabe um dia não entro para a seleção”.

Descentralização ajudou

“O esporte é um dos caminhos mais fáceis para trabalhar o indivíduo”, diz Guilherme Astolfi Caetano, diretor da Região Metropolitana Oeste da Fundação Casa. “O menor chega aqui e de repente se dá conta de que está privado da sua liberdade. Claro que as disciplinas convencionais são importantes, mas não vai ser só ensinando algoritmos que você vai fazer um garoto esquecer que ele está preso”, exemplifica o diretor. “Nesse ponto, o esporte, junto com a arte, tem uma grande capacidade de desencadear mudanças positivas e influenciar, por exemplo, no desempenho do interno na sala de aula". 

Independente se conseguirão ou não conquistar seus objetivos, a importância do esporte na recuperação de jovens como Gabriel, Joaquim, Ricardo e Marcelo é evidente. Esse trabalho ganhou força desde que a antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) foi reestruturada, no começo da década passada, para se tornar a Fundação Casa. Problemas continuam a acontecer: recentemente, a Defensoria Pública de São Paulo pediu o fechamento justamente de uma das unidades do Complexo Raposo Tavares, por maus tratos aos internos, e uma reportagem da "Folha de S.Paulo" sobre a instituição foi suspensa por decisão da Justiça. Mas o processo de descentralização da entidade, que passou a ter unidades com um número bem menor de internos, permitiu organizar melhor as práticas esportivas, como por exemplo os campeonatos internos. Para se ter uma ideia, na unidade Nova Aroeira hoje estão cerca de 75 internos, quando na época da Febem estavam o dobro.

O calendário esportivo oficial da Fundação Casa tem atividades durante o ano todo e contempla, além do handebol, atividades como ginástica, futebol society, tênis de mesa, vôlei, basquete, futsal, xadrez e o curioso tchoukball. Nele, equipes formadas por sete jogadores se enfrentam em uma quadra de basquete com uma bola e dois quadros (semelhantes a trampolins e inclinados a 55º), cada um posicionado de um lado da quadra. O objetivo da equipe é fazer a bola rebater em um dos quadros, para que ela caia na quadra, sem que a outra equipe a recupere. Não há um lado para cada equipe e o campo de jogo é compartilhado por todos.

Pode parecer estranho, mas, em Nova Aroeira, a peculiar modalidade caiu tanto no gosto dos internos que um time da unidade chegou a participar de um campeonato externo e, competindo contra equipes de colégios particulares de São Paulo e até de militares, ficou em quarto lugar. O feito é mencionado com orgulho por internos e funcionários.

Altos e baixos

Um dos pontos altos do ano esportivo da Fundação Casa é a Copa Casa, o campeonato interno de futebol de campo da instituição. Em sua fase final, os jogos são disputados como preliminar das semifinais do Campeonato Paulista.

Apesar da grande variedade de atividades esportivas, a única instalação para as suas práticas são as quadras poliesportivas das unidades. É nelas que os internos se reúnem para, nos horários determinados, jogarem, treinarem e, como disse Gabriel no início da reportagem, esquecerem que estão presos. Algumas, porém, como a de Nova Aroreira, sequer são cobertas, o que significa que, em caso de chuva, o esporte é substituído por alguma atividade interna.

“A gente sabe de toda a discussão que vem acontecendo com relação a redução da maioridade penal. Eu acho que são nesses momentos que a gente demonstra que muitos adolescentes têm condições de optar, quando saírem da Fundação, por seguirem o caminho do bem”, diz Carlos Alberto Robles, gerente de Educação Física e Esportes da Fundação Casa, na cerimônia de encerramento do campeonato de handebol.

*Por razões legais, todos os nomes dos internos entrevistados são fictícios