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Quando o sonho dos Jogos Rio-2016 vira pesadelo

02/08/2015 15h11

Rio de Janeiro, 2 Ago 2015 (AFP) - Esta é a história de duas cidades do Rio de Janeiro a um ano do início dos Jogos Olímpicos. E apenas uma poderá sobreviver ao evento.

A primeira é a do frenesi das obras, dos investimentos de bilhões de dólares, das gruas, das máquinas, da poeira e dos projetos imobiliários.

"Uma cidade que não para", afirma um painel em uma gigantesca área em construção na zona oeste do Rio de Janeiro, principal área das obras e das competições de 2016.

A segunda história é a do homem comum.

Bruno Manso de Oliveira, um mecânico industrial, e seus amigos observam suas casas no caminho das obras olímpicas.

Com a contagem regressiva para as Olimpíadas, a segunda parte da história mostra que para alguns o sonho virou pesadelo.

- A quem pertence a cidade? -"É uma zona de guerra", afirma Oliveira, de 29 anos, parado sobre o que um dia foi a Vila Autódromo, que com o avanço do Parque Olímpico está sendo reduzida a escombros.

"Está ficando muito difícil viver aqui. Mas não vou sair nunca pelo simples fato de que me disseram que eu vá para algum lugar. Minha casa não está à venda".

A favela Vila Autódromo já teve 3.000 moradores. Começou como um assentamento de pescadores nos anos 1960.

O lugar tinha ruas de terra, construções precárias e esgoto a céu aberto, típicas de muitas favelas, mas não a violência alimentada pelo narcotráfico. O local ganhou a reputação de uma área tranquila para trabalhadores e suas famílias.

Mas a partir do momento em que as autoridades do Rio de Janeiro decidiram disputar a sede dos Jogos Olímpicos de 2016, seus dias ficaram contados.

A favela ficava ao lado do autódromo de Jacarepaguá, abandonado há vários anos e que, para a prefeitura, era um local perfeito para o Parque Olímpico.

O circuito não existe mais e as construções das arenas esportivas avançam para criar o Parque Olímpico, o coração da maior festa esportiva do mundo, que começará em 5 de agosto de 2016.

Perto dali também fica a quase concluída Vila Olímpica, que receberá quase 18.000 atletas e integrantes de comissões técnicas. Depois dos Jogos, os edifícios integrarão um novo condomínio residencial.

No meio, bloqueando uma avenida projetada para o Parque Olímpico, está a favela Vila Autódromo, que tem que desaparecer, segundo o prefeito Eduardo Paes.

"Teremos 100.000 pessoas passando por ali a cada dia", afirmou Paes ao portal UOL em 22 de julho. "Precisamos de acesso".

- Valores distintos -Depois de anos de pressões e indenizações do governo, 90% da favela foi desocupada.

As famílias que deixam o local dão lugar de maneira imediata às escavadeiras.

Paredes em escombros, ruas destruídas e moradores que quase não são vistos: o cenário realmente parece uma zona de guerra. As casas que ainda resistem ficam em meio a uma área devastada.

A desintegração gradual da comunidade é amarga e provocou alguns protestos, confrontos com a polícia e processos na justiça.

Mas alguns analisam a mudança de forma positiva, uma prova de que os Jogos Olímpicos não beneficiam apenas as grandes corporações, mas também as pessoas comuns.

"Minha qualidade de vida melhorou, minha saúde também", afirma a cabeleireira Natália Lacerda, de 29 anos, que aceitou a mudança para um novo complexo de apartamentos chamado Parque Carioca.

Para ela, a favela é uma recordação marcada por lixo, mosquitos e transporte difícil para o centro da cidade. Em sua nova residência ela afirma que tem "tudo".

"Um ônibus que me leva para todos os lados, saneamento básico. E quando chove, não fica cheio de lama", explica.

Mas o moradores que resistem à mudança têm uma visão diferente.

"Vivíamos humildemente", afirma Luis Cláudio Silva, 52 anos, professor de Educação Física. "Mas éramos muito felizes antes da chegada dos Jogos e do início do terror e da pressão psicológica para nos forçar a deixar nossas casas", completa.

Os vizinhos afirmam que as autoridades ofereceram até 400.000 reais, o que em alguns casos equivale ao dobro do valor do imóvel. Mas para Silva, não se trata de dinheiro.

"Há famílias que não aceitarão dinheiro, não importa o valor. Muitos cedem quando não aguentam mais a pressão, mas outros entendem que têm o direito de permanecer".

Calmo, mas firme, Oliveira coloca o assunto em termos filosóficos ao explicar a posição de sua família.

"As pessoas são apenas suas memórias. Se não tiver mais a recordações, se eu perder os bons momentos que passamos aqui, então que eu sou? Uma pessoa sem identidade, sem memória, sem felicidade", reflete.

- Uma força que não cede -A vitória da prefeitura e dos investidores imobiliários parece apenas uma questão de tempo.

Uma das mais ferrenhas opositoras, Maria da Penha, de 50 anos, alega que das 600 famílias, quase 150 ainda resistem. Mas dezenas delas estão a ponto de ceder.

Uma delas é Damiana Cataduba Andrade, de 49 anos, que está prestes a aceitar a mudança, seguindo o caminho dos vizinhos mais próximos.

"É solitário", afirma em uma área cercada de ruínas que transformou em padaria para suprir o vazio provocado pelo fechamento da loja do bairro.

"Penso na minha família e acho que não consigo resistir mais", lamenta.

Na rua em frente, um cartaz mostra o futuro do local.

"Bem-vindos a sua casa", afirma um anúncio, em uma referência não à antiga favela, e sim aos apartamentos de luxo que devem dominar a Vila Olímpica do Rio.