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China monta 'fábricas de craques' para crescer no futebol

10/05/2016 17h36

Cantão, 10 Mai 2016 (AFP) - Nascido há 27 anos numa pequena cidade do interior da China, Kin Chai não tinha campo para jogar futebol na escola. Nem sequer uma simples bola. Os alunos brincavam na rua, chutando garrafas de plástico. Duas décadas depois, o governo está investindo pesado para mudar este cenário.

"Eu vivia numa pequena vila, que não era muito desenvolvida. Tentávamos organizar torneios, mas a escola não tinha recursos", lembra Kin.

Hoje, a China está gastando bilhões de dólares para tentar realizar o sonho do presidente Xi Jinping, fanático por futebol: levar o país ao topo do mundo da bola.

O gigante asiático ocupa apenas o 81º lugar do ranking da Fifa, a oitava posição do continente, mas o presidente tem como meta "sediar uma Copa do Mundo, se classificar para outra e conquistar o título".

A chuva de dinheiro, porém, não pode comprar um fator essencial: a paixão pelo jogo. Um ingrediente imprescindível para montar um programa de formação de atletas de alto nível, de acordo com a maioria dos especialistas.

Professor de educação física, Kin Chai trabalha em Cantão, no sul do país, na ONG "Dreams Come True" ("Os sonhos se tornam realidade"), que está implementando uma rede nacional de escolinhas de futebol.

"Oferecemos aos alunos treinamentos durante o tempo livre", explica o presidente da organização, Zhou Weihao.

O principal objetivo é promover atividade física entre as crianças e torná-los "úteis para a sociedade".

Se um deles mostrar algum talento com bola no pé, "terá uma carga de treinamento maior", ressalta o dirigente.

- 'Produção de estrelas' -A construtora Evergrande, proprietária do maior clube de Cantão, treinado pelo brasileiro Luiz Felipe Scolari, fechou uma parceria com o Real Madrid para construir uma academia de futebol que receberá cerca de 2.000 jovens.

O mega complexo, que tem nada menos de 76 campos, recorde mundial absoluto, ostenta sua ambições no seu site: "produzir estrelas" para alçar o futebol chinês ao mais alto nível.

O problema é que "os métodos utilizados com sucesso pela China para dominar outros esportes não podem funcionar com o futebol", alerta Mark Dreyer, blogueiro especializado que mora em Pequim.

"Forçar crianças a jogar contra sua vontade não vai resolver nada, é preciso renovar totalmente o sistema a partir da base", completou.

A fábrica de craques de Evergrande simboliza os investimentos astronômicos de empresas chinesas no mundo da bola, para cair na graça do presidente Xi. Empresários admitem sem rodeios que esses investimentos são realizados com fins políticos.

O grupo Wanda, propriedade do bilionário Wang Jianlin, possui 20% das ações do Atlético de Madri, finalista da Liga dos Campeões, e é um dos principais patrocinadores da Fifa.

"Os dirigentes do país levam o futebol muito à sério, por isso eu apoio o desenvolvimento do esporte na China", contou Wang num livro.

Em março, o governo divulgou um ambicioso planejamento "para levar o país "ao topo do futebol mundial até 2050".

O plano prevê a criação de 20.000 academias de futebol em quatro anos e a prática obrigatório do esporte por 30 milhões de alunos do ensino fundamental. A meta é atingir 50 milhões de adeptos da bola redonda até 2020.

Para sustentar o projeto, são contratados vários treinadores da Europa e da América do Sul. As crianças também podem se espalhar em jogadores de renome internacional contratados a peso de ouro para o campeonato local, que se tornou um novo Eldorado para jogadores brasileiros.

- Problema de base - O que falta para o projeto decolar, segundo especialistas, é uma "base" de verdade. Em 2015, o país contava apenas com cerca de cem mil jogadores federados, de acordo com o diário oficial China Daily.

"Crianças chinesas jogam mais badminton, tênis de mesa e basquete", observou no ano passado em entrevista à AFO o sueco Sven-Goran Eriksson, ex-técnico da seleção inglesa, hoje no comando do Shanghai Dongya.

Outro fator que prejudica a prática do futebol no país é o exame final de entrada para universidade, uma espécie de vestibular muito concorrido, que coloca pressão nos jovens chineses desde a infância.

"O sistema educativo deixa pouco espaço para o esporte", ressalta Mary Gallagher, professora da Universidade de Michigan. "Os pais dificilmente vão deixar os filhos treinar futebol se correrem risco de perder pontos no vestibular".

Por isso Zhou Weihao, o presidente da ONG "Dreams Come True", critica o conceito de fábrica de craques de Evergrande.

"As crianças vão acabar cansando. Temos que deixa-las se interessar um pouco em outras coisas. Se não fizer isso, eles não vão sentir mais motivação para melhorar depois de alguns anos, porque treinam demais", avalia.

Uma mãe de aluno não esconde a satisfação com os métodos mais 'suaves' da ONG, que ajudaram o filho a se apaixonar de verdade pelo esporte.

"Ele não assiste TV e não lê quadrinhos. Só quer saber de futebol. Seu sonho é melhorar seu nível de jogo. É o nosso sonho também", relata, antes de sentenciar, depois de uma pequena pausa: "é o sonho chinês".