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O ex-jogador de vôlei que virou "rei do sonho olímpico" e acabou preso com ouro para 2.388 medalhas

Bruno Kelly/Reuters
Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Renata Mendonça

Da BBC Brasil, em São Paulo

06/10/2017 09h21

De terno, gravata e com a elegância que sempre lhe foi peculiar nos últimos 22 anos à frente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Carlos Arthur Nuzman deixou sua casa na quinta-feira acompanhado por agentes da Polícia Federal e levado para a sede do órgão no Rio de Janeiro, onde ficará preso pelos próximos cinco dias.

O homem que comanda o esporte brasileiro há mais de duas décadas sempre teve orgulho de dizer que, por isso, "não recebia um centavo". No entanto, no pedido de prisão, o Ministério Público diz que, nos últimos 10 anos, Nuzman teve um "crescimento patrimonial de 457%". A investigação revelou, inclusive, que ele mantinha 16 quilos de barras de ouro depositadas na Suíça.

Os 16 quilos seriam suficientes para a produção de 2.388 medalhas de ouro como as distribuídas nos Jogos do Rio - cada uma tinha, segundo o COB, cerca de 6,7 gramas de ouro.

"As declarações de imposto de renda de Carlos Nuzman não registram remuneração recebida do Comitê Olímpico Brasileiro ou do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos 2016. Por outro lado, Nuzman justifica a origem de seu patrimônio a partir do recebimento de valores de pessoas físicas e do exterior. Contudo não há explicações sobre quem efetivamente lhe remunerou", afirma o MPF.

A prisão temporária de Nuzman foi decretada como parte da Operação Unfair Play, que investiga a suposta compra de votos de dirigentes do Comitê Olímpico Internacional (COI) na eleição que escolheu o Rio de Janeiro para se tornar sede da Olimpíada de 2016.

'Reinado'

Carlos Arthur Nuzman começou sua carreira no esporte dentro de quadra. Jogou vôlei até os 31 anos, quando decidiu entrar para o mundo dos dirigentes e se candidatou para o comando da Federação de Vôlei do Rio de Janeiro. Daí para a Presidência da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) foram mais dois anos e foi nela, a partir de 1975, que começou a construir seu "reinado" no esporte.

Sob seu comando, o vôlei foi transformado em uma modalidade atrativa e rentável e sua gestão passou a ser vista como "modelo" no país. E foi ali que seu estilo veio à tona - uma mescla de autoritarismo com articulação política, segundo pessoas ligadas ao esporte ouvidas pela reportagem.

A BBC Brasil conversou com ex-atletas do vôlei que atuaram entre 1975 e 1995, durante a vitoriosa "era Nuzman", e todos elogiaram o lado "gestor" do presidente. Muitos atribuem a ele a profissionalização da modalidade e o descrevem como gestor "fora da curva" comparado aos de outras confederações.

Foi Nuzman que conseguiu o primeiro patrocinador oficial da seleção brasileira - e por causa dele, veio seu primeiro episódio polêmico no comando do esporte.

Em 1984, depois de ter sido considerada a melhor levantadora dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, Jacqueline foi surpreendida com um súbito corte em sua convocação para a seleção brasileira. A decisão de excluí-la do time, no entanto, não foi técnica. Foi um pedido - no caso, uma ordem de Nuzman - que veio por conta de um questionamento da jogadora a uma decisão do presidente.

"Nessa época, houve um patrocínio que a CBV conseguiu para as duas camisas da seleção, a feminina e masculina. Mas só quem recebia verba era o masculino. E aí eu fui perguntar para ele por que havia essa diferença. Ele não respondeu e logo depois acabou me cortando", contou Jackie à BBC Brasil.

Diante da falta de resposta, Jacqueline optou por utilizar o uniforme da seleção do avesso, para não exibir um patrocínio pelo qual não recebia. Mas isso só durou um dia - no seguinte, ela foi cortada da seleção.

"Isso virou um grande conflito. Fiquei conhecida como uma atleta rebelde, não foi uma coisa boa pra mim", disse.

Como bom político que sempre foi, segundo os ex-atletas ouvidos pela BBC, Nuzman conseguia sair por cima das situações e "blindar" sua confederação das notícias negativas. A repercussão desse caso, por exemplo, deixou Jacqueline como a fama de atleta "indisciplinada" e manteve a imagem do presidente como "bom gestor".

"Na época, eu fiquei muito doente, fiquei mal. Perdi o chão. Minha vida era jogar vôlei."

Autoritarismo

Alguns anos depois, Jacqueline e Nuzman se "reencontraram" no esporte. Ele como presidente do COB, ela como atleta do vôlei de praia. A jogadora foi morar nos Estados Unidos, onde descobriu a modalidade, que se tornou olímpica em 1996. Para poder competir representando o Brasil nos Jogos de Atlanta, precisou recorrer a Nuzman.

"Ele (Nuzman) fez eu escrever uma carta dizendo que nunca mais voltaria para os Estados Unidos. Para jogar, ele me fez assinar um documento dizendo que eu ficaria no Brasil de vez. Eu assinei a bendita carta, voltei e venci."

Jacqueline conquistou o ouro no vôlei de praia ao lado de Sandra e recebeu a medalha justamente das mãos de Nuzman. No entanto, ela não deixou de figurar na lista de seus "desafetos" e não foi convidada para nenhum evento dos Jogos do Rio no ano passado.

"Quando soube que eu não seria convidada para abertura dos Jogos (sua parceira Sandra, foi convidada para carregar a bandeira dos anéis olímpicos na cerimônia), me veio uma sensação muito estranha. Trinta anos depois, eu sofri o mesmo corte. Mas é isso, eu não faço parte dessa turma", afirmou.

Outros atletas do vôlei também reclamam do autoritarismo de Nuzman no comando da CBV. Em seu livro Pelas Minhas Mãos, a ex-jogadora Ana Moser conta que, nos Jogos Olímpicos de 1992, quando a seleção masculina conquistou o ouro, Nuzman fez questão de dar uma bronca categórica nas mulheres do time pelo "decepcionante" quarto lugar.

"Ele esculachou a gente, disse que o quarto lugar era um vexame. Esses sermões já eram conhecidos por nós", afirmou a ex-atleta.

Por sua postura contestadora dentro e fora das quadras - como presidente da ONG Atletas pelo Brasil, ela luta por maior transparência e democracia no esporte -, Ana Moser também virou "persona non grata" nas esferas do COB e foi ignorada pelos eventos olímpicos do Rio.

Segundo fontes ouvidas pela BBC, o "estilo" Nuzman conseguiu manter um ambiente de silêncio entre os atletas, que temiam represálias.

Poder

Em 1995, Nuzman chegou à presidência do COB, cargo que manteve por mais de duas décadas, sendo reeleito seis vezes - em muitas ocasiões, foi candidato único.

A falta de oposição tem menos a ver com a eficiência de sua gestão na entidade e mais com o poder que acumulou e com estratégias que adotou para se manter no cargo - o termo "estrategista" para descrevê-lo foi quase unânime entre as pessoas ouvidas pela BBC Brasil.

Uma delas menciona o estatuto criado pelo presidente no COB que dificulta bastante o surgimento de qualquer candidato de oposição. "Ele fechou de tal maneira que ninguém consegue se candidatar."

O presidente da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa, Alaor Azevedo, por exemplo, foi um dos que tentou enfrentar Nuzman nas urnas.

"Esse estatuto do COB é fora de todos os princípios de governança. Ele exige que a chapa tenha pelo menos 10 confederações apoiando, que você tenha pelo menos 5 anos na presidência de uma entidade e que você apresente a chapa até 30 de abril do ano da eleição, quando o pleito só acontece no segundo semestre", explicou Azevedo em entrevista à ESPN no ano passado.

"Então isso significa que você e seus apoiadores ficam ali quase 8 meses sujeitos a todo tipo de represália."

O COB detém grande poder de influência sobre as confederações esportivas do país. No Brasil, uma das principais fontes de investimento no esporte é a Lei Agnelo Piva sancionada em 2001, que determina que 2% da arrecadação bruta de todas as loterias federais do país sejam repassados ao Comitê Olímpico Brasileiro - e é ele quem repassa a verba às outras confederações.

Candidatura olímpica e 'politicagem'

Logo em seus primeiros anos na gestão do COB, Nuzman indicou que queria que o Rio de Janeiro fosse sede de Olimpíada. Em 1997, ele levou a candidatura da cidade ao COI (para os Jogos de 2004) pela primeira vez- e acabou eliminado na primeira fase. Na segunda tentativa, para os Jogos de 2012, a campanha também não deu certo - a escolhida foi Londres.

Mas segundo as fontes ouvidas pela BBC Brasil, esse tempo teria dado ao presidente do COB a chance de entender a política de agrados que poderia ajudá-lo a emplacar uma candidatura.

Assim, entraram em cena jantares e eventos com a presença de ícones brasileiros, como o escritor Paulo Coelho e o ex-jogador e "Rei do Futebol" Pelé, oferecidos a presidentes de Confederações vinculadas ao COI.

Na investigação da Operação Unfair Play, a polícia federal cita o pagamento de suposta propina a pelo menos um dos dirigentes - Papa Diack, filho de Lamine Diack, então presidente da Federação Internacional de Atletismo e com direito à voto na eleição para sede da Olimpíada.

Pessoas do esporte que já tiveram de lidar com o presidente do COB ressaltaram muito sua "articulação política" e atribuíram a ela suas conquistas no Comitê - tanto para vencer as eleições, quanto para ganhar a candidatura do Rio.

Quando o Rio finalmente foi escolhido para sediar uma Olimpíada, em 2009, Nuzman recebeu boa parte do crédito pela façanha, e acumulou o cargo de presidente do Rio-2016, o comitê organizador do evento.

Muitos dirigentes questionavam a atuação de Nuzman e o "conflito de interesses", que chegou a ser alertado também pelo Tribunal de Contas da União por causa do acúmulo de funções. "Ele assinava contratos com ele mesmo", disse o presidente da Confederação do Tênis de Mesa, Alaor Azevedo.

À época, por meio de nota do Comitê Organizador, o órgão negou que houvesse conflito de interesses.

E agora?

Em 22 anos no COB - e há 42 trabalhando com gestão do esporte no Brasil -, Nuzman colecionou algumas desavenças, mas soube "se blindar" delas com o poder que acumulou. Muitos atletas evitaram fazer críticas, muitos dirigentes preferiram se aliar a ele em vez de tentar mudar a situação.

Por causa disso, poucos acreditam em mudanças no esporte brasileiro após a prisão de Nuzman. Bebeto de Freitas, por exemplo, técnico da primeira medalha olímpica do vôlei sob a tutela do então presidente da CBV, virou desafeto dele após alguns desentendimentos dentro da confederação e hoje diz que o "sistema" que rege o esporte brasileiro é o mesmo, ainda que um dos líderes dele esteja preso.

"Pelo poder que sempre teve, ele impedia que as pessoas falassem. Então enquanto os fracos não se unirem pra derrubar o cara que se acha mais forte, nada vai acontecer. Ele foi preso hoje, mas o esporte do Brasil é a mesma coisa, o mesmo sistema, as mesmas federações", afirmou à BBC Brasil.

"É o sistema que dá o poder. O esporte é muito rico, só quem não é são os atletas", finalizou Jacqueline, outra desafeta do presidente.

A reportagem tentou contato com pessoas que trabalharam ao lado de Nuzman no COB, mas não obteve sucesso. A entidade não se pronunciou sobre a prisão, mas confirmou que o vice-presidente da entidade, Paulo Wanderley Teixeira, assumirá o posto na ausência do presidente.