Topo

Time recusa vaga, faz campanha para rival e sensibiliza até jogador da NBA

Alunos da Escola Municipal João Alves, de Caiçara-PB, viajarão aos Jogos Escolares com despesas bancadas por campanha feita por rivais - Divulgação
Alunos da Escola Municipal João Alves, de Caiçara-PB, viajarão aos Jogos Escolares com despesas bancadas por campanha feita por rivais Imagem: Divulgação

Guilherme Costa

Do UOL, em São Paulo

07/09/2017 13h17

Os garotos que compõem o time de basquete sub-14 do Colégio Motiva, que tem uma das mensalidades mais caras da Estado, receberam na última sexta-feira (01) uma chance de aproveitar o quanto são abastados. Eles haviam sido derrotados pela Escola Municipal João Alves na decisão dos Jogos Escolares da Paraíba, cujo principal prêmio era um convite para representar a região nos Jogos Escolares da Juventude, mas poderiam ter herdado a vaga: os vencedores não conseguiriam custear a viagem até Curitiba (PR). Em vez de assumir os gastos e ficar com o posto, contudo, os meninos lançaram uma campanha para ajudar os rivais. Em pouco mais de dois dias, arrecadaram mais do que o quíntuplo necessário e conseguiram envolver até Lucas Bebê, jogador da NBA (liga profissional de basquete dos Estados Unidos).

A decisão dos Jogos Escolares da Paraíba foi realizada em João Pessoa, onde o Motiva está sediado, mas foi vencida pela Escola Municipal João Alves, oriunda de um município chamado Caiçara. A cidade tem pouco mais de 7 mil habitantes, dista 132 km da capital e possui baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) – o 89º no ranking do Estado. A maioria dos meninos do time provém de um projeto social.

Até o ano passado, viagens para os Jogos Escolares da Juventude eram integralmente bancadas pelo governo estadual da Paraíba. No entanto, houve um arrocho em 2017: os campeões da etapa regional receberam apenas deslocamento terrestre – no caso dos meninos da João Alves, três dias de ida e três dias de volta em viagem de ônibus –, mas teriam de arcar com alimentação e hospedagem. Edinho, o técnico da equipe, fez cotações e apresentou um orçamento de R$ 6 mil à prefeitura de Caiçara, mas também não conseguiu apoio. Na última sexta-feira, ligou para o treinador do Motiva e oficializou a desistência.

“São meninos carentes, de famílias humildes. A gente tentou apoio na prefeitura porque seria algo traumático para os meninos, mas a prefeitura disse que não teria como bancar. Joguei a toalha e liguei para o Adriano Lucena, professor do colégio Motiva. Disse que estava em cima, mas que ainda dava para eles viajarem e representarem a Paraíba”, relatou Edinho.

Lucena estava em casa quando recebeu a ligação, mas tinha no mesmo dia um jantar com pais do colégio. No evento social, a notícia sobre a desistência do João Alves já circulava: o técnico foi interpelado sobre o que faria com a possibilidade de herdar a vaga, mas adotou postura incisiva e a rechaçou. Partiu de uma das mães de alunos, então, a ideia que deu início à campanha.

“Ela perguntou se a gente poderia ajudar. Respondi que precisavam de dinheiro, liguei para o Edinho e repassei aos pais esse valor de R$ 6 mil. Eles pensaram em fazer uma campanha, mas inicialmente era para ser em torno de nós mesmos. Se cada um desse algo próximo de R$ 100, juntaríamos quase R$ 5 mil. Só que um dos pais resolveu colocar isso no Facebook, e o post dele abriu a campanha”, disse Lucena.

A publicação do pai de um dos alunos foi feita às 10h (de Brasília) do dia seguinte. Às 13h, eles já haviam arrecadado R$ 4 mil. Em menos de 24 horas, R$ 18 mil. Até a última terça-feira (05), Edinho tinha recebido cerca de R$ 33 mil na conta. Além disso, houve doações em material e dinheiro enviado diretamente ao Motiva, que repassará ao técnico rival.

“O Colégio Motiva tem uma das mensalidades mais caras do Estado. Não faço nem ideia do quanto. Eles poderiam facilmente pagar as despesas e mandar os meninos, que também sonhavam defender o Estado. Em vez disso, fizeram uma campanha pelos meninos que realmente merecem. Foi um ato de humanidade, e eu não tenho nem como agradecer”, festejou Edinho.

“Para mim foi uma coisa muito simples: é o certo. O problema é que no Brasil está tudo tão errado que o certo acaba virando grande. Eu acredito nisso. É o valor que eu passo ao meu filho, meus atletas”, respondeu Lucena.

O sonho dos meninos da João Alves estava garantido. Foi possível bancar todos os custos da viagem para Curitiba – deslocamento, inclusive. Em vez de três dias para ir e três para voltar, o time de basquete vai viajar de avião.

Misturados, alunos do Colégio Movida e da Escola Municipal João Alves mostram que a rivalidade ficou apenas na quadra dos Jogos Escolares da Paraíba - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Campanha extrapola viagem e ajuda projeto a sobreviver

A mobilização em torno dos garotos da Escola João Alves foi muito além de arrecadação financeira. Um dos garotos do Motiva, morador de um condomínio de luxo de João Pessoa, fez um périplo pelas casas vizinhas a fim de conseguir agasalhos – temia que os garotos não estivessem preparados para a diferença climática entre Paraíba e Paraná.

Também houve ofertas de fora do Estado. Um padre de Curitiba recomendou sua igreja para hospedar os meninos; o Exército abriu uma unidade de sua escola de treinamentos para o time dormir e treinar durante os Jogos Escolares; a companhia aérea Gol tentou doar todas as passagens aéreas, que já haviam sido compradas, e se comprometeu a ajudar de outra forma.

Uma dessas contribuições partiu de Lucas “Bebê” Nogueira, brasileiro de 25 anos que defende o Toronto Raptors na NBA. Em áudio enviado ao pai que postou a campanha no Facebook, o pivô ofereceu tênis, bolas e uniformes (camisas e calções ou coletes, dependendo do interesse de Edinho). Também se comprometeu a intermediar a criação de um logotipo para o time e chamou isso de “apenas um primeiro passo” numa parceria que pode se estender.

“É uma história que me deixa até emocionado. Estou recebendo muita ajuda, principalmente do povo de Curitiba. Um cara hoje me adicionou no Facebook e disse que quer pagar almoço numa churrascaria de lá para todos os meninos”, contou Edinho.

O projeto de Caiçara, que atualmente trabalha com 160 crianças, deve ser ampliado e receber mais modalidades esportivas. Também houve repercussão no governo estadual. “Eles estão custeando o deslocamento de outras escolas para os Jogos Escolares. Fizeram isso devido ao tamanho que a história tomou”, disse Eduardo Jorge Azevedo de Oliveira, coordenador de esportes do Motiva.

Alunos do Colégio Movida, que recusou vaga nos Jogos Escolares e fez campanha para rival viajar - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

A reação das crianças da João Alves e a lição aos garotos do Movida

Nesta quinta-feira (07), os alunos da João Alves receberão as passagens aéreas e uma primeira leva de produtos de um kit para os Jogos Escolares. Com base em doações, os garotos terão uniforme completo, agasalho, produtos de higiene e outros itens especialmente para o torneio.

Para os meninos, será uma primeira demonstração tangível de algo que era apenas um sonho até a semana passada. “Desde que a gente começou a jogar campeonatos a gente conhece os meninos do Motiva. São legais, e sempre que acabam o jogo vão cumprimentar todo mundo. Mas amigos de verdade eles viraram agora. Demonstraram muito amor e muita amizade. Poucos no mundo fariam isso”, comemorou Iago, 13, um dos caçulas da João Alves.

“Depois que fomos campeões, Edinho marcou um preparo físico e no fim do treino avisou que não viajaríamos mais. Explicou as questões financeiras, mas pediu para não falarmos com ninguém porque ele ainda queria conversar com a prefeitura. Foi chocante. Estávamos alegres e recebemos uma notícia dessas”, relembrou o atleta.

Até por essa frustração, foi ainda mais enfática a reação dos meninos ao sucesso da campanha. “Foi demais. A alegria e o sonho. Era uma frustração ter ganhado e o sonho desmoronar por falta de recursos. Os meninos estavam sem se alimentar direito, sem dormir. Depois disso, foi um sonho realizado porque a equipe adversária abraçou. É algo que rompe as barreiras do esporte. O esporte não é só um jogo, não é só perder ou ganhar. Vai muito além. A alegria de ser campeão é sensacional, mas a alegria de contar o que estava acontecendo superou qualquer emoção que a gente já tinha vivido. Foi muito mais do que um título. Eles se abraçaram, choraram, e uns nem acreditaram. Acharam que eu estava tirando onda”, disse Edinho.

A reação dos meninos do Motiva, porém, não causou impacto apenas no sonho dos garotos rivais. Foi uma lição para a própria equipe da escola particular, que pôde ver na prática a corrente criada por uma boa ação. “O mais importante, o maior valor que fica de tudo isso, é o exemplo. Meus atletas viram que amor ao próximo e caráter são coisas boas. Valeu a pena”, finalizou Lucena.

A viagem dos meninos da João Alves para Curitiba está marcada para 16 de setembro. Entretanto, o que vai acontecer nos Jogos Escolares, diante de toda a história do time, é apenas um detalhe. A maior vitória eles já conseguiram, e conseguiram por causa dos rivais.