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O desafio do Campeonato Brasileiro: confrontar-se com sua própria história

Bruno Henrique levanta o troféu do Campeonato Brasileiro 2018 conquistado pelo Palmeiras - Alê Cabral/Agif
Bruno Henrique levanta o troféu do Campeonato Brasileiro 2018 conquistado pelo Palmeiras
Imagem: Alê Cabral/Agif

27/04/2019 13h30

Virou costume. É chegar a semana de abertura do Campeonato Brasileiro, então logo escutamos e lemos a prosa: "Não há no mundo campeonato como o nosso! Só o Brasil tem doze ou treze times com chance de título".

Infelizmente, tais afirmações não são mais realistas. Vejam a situação de Botafogo, Vasco e Fluminense, clubes cuja grandeza contribuiu diretamente para a importância do Brasil e de sua seleção no futebol mundial. Hoje, convenhamos, nenhum deles tem real expectativa de ganhar o Brasileiro; faturam títulos estaduais, podem vencer uma ou outra competição resolvida no chamado mata-mata, mas estão, pelo menos por enquanto, sem capacidade de ganhar um campeonato longo e disputado no sistema de pontos corridos.

O funil torna-se estreito, embora não tanto quanto na Alemanha, na França, na Espanha e na Itália.

A Inglaterra é um caso isolado. Lá, quando o campeonato começa, há seis clubes com perspectiva de título, e, vez ou outra, um Leicester atropela todos eles. A peculiaridade inglesa tem a ver também com a forma como é distribuído o dinheiro da TV. Dependendo dos rumos do Brexit, o equilíbrio deve aumentar, se, ao fim, os jogadores de países da União Europeia voltarem a ser considerados estrangeiros.

No Brasil, ainda há número expressivo de clubes com chances verdadeiras de vencer o campeonato, mas não os "doze ou treze" reivindicados pelo imaginário. A questão central, contudo, não é a quantidade de candidatos reais ao título; antes, o que importa de fato é a qualidade do jogo que temos visto.

O abismo, porém, é mais largo e profundo em relação ao próprio futebol brasileiro, isto é, ao espetáculo formidável e constante que, por décadas e décadas, era rotineiro nos campos daqui.

Em 1959, ano seguinte à primeira Copa do Mundo vencida pelo Brasil, o país ganhou, finalmente, uma competição nacional de futebol. O primeiro campeão foi o Bahia. Em boa parte destes 60 anos, o público testemunhou times excepcionais, alguns facilmente incluídos na lista de melhores da história do futebol mundial.

Entre o primeiro título nacional do Palmeiras, em 1960, e o primeiro do Cruzeiro, em 66, o Santos foi pentacampeão da Taça Brasil, além de conquistar a Libertadores e o Mundial em 62 e 63 (anos, aliás, em que o Santos tinha o melhor time do mundo.). Mas mesmo aquele Santos comandado pelo Lula - inigualável em sua soma de Gilmar, Lima, Mauro, Calvet, Dalmo, Zito, Mengálvio, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe - não foi solitário no espetáculo; e ele mesmo parecia inesgotável, ao renovar-se com Carlos Alberto, Joel, Clodoaldo, Edu, Toninho, Ramos Delgado, Cláudio e Cejas, e ainda com Pelé.

Os campos do Brasil forjaram o Botafogo de Nilton Santos, Didi, Garrincha e Zagallo; e o de Rogério, Jairzinho, Roberto, Gerson e Paulo Cézar. Forjaram o Palmeiras de Filpo, e o de Brandão, e o de Luxemburgo; o Palmeiras e seu fenomenal Ademir, e suas Academias que foram de Tupã, Djalma Santos e Julinho a Leão, Luís Pereira, Dudu, César e Leivinha, e sua união de craques em 93 e 94.

Os acidentados gramados fizeram brotar o Cruzeiro de Piazza, Zé Carlos, Dirceu Lopes e Tostão; e o de Nelinho, Batata, Palhinha e Joãozinho. Os campos foram de Falcão; e moldaram o Inter de Minelli, com Manga, Figueroa e Carpegiani, e o de Ênio Andrade, com Mário Sérgio e Mauro Galvão.

Ênio Andrade, aliás, ganhou o Brasileiro também em 85, com um Coritiba que expressava o conhecimento incomum de seu treinador. Assistimos ao Fluminense e sua máquina tocada por Rivellino; e ao tricolor organizado e eficiente de 84, com Branco, Romerito, Washington e Assis. E houve o Vasco de Dinamite e de Zanata, e o de Geovani e Romário, e o de Juninho Pernambucano, e o de Edmundo e Evair (que repetiam ali o espetáculo que se acostumaram a apresentar com a camisa do Palmeiras).

E vimos o Grêmio de Renato, e o desenhado com precisão por Scolari; e a Portuguesa de Félix, Zé Maria, Leivinha, Ivair, e a de Enéas, e a de Dener, e a de Zé Roberto e Fabri. Paramos para ver o Bahia de Paulo Rodrigues e Bobô; e o Atlético Mineiro do Telê, do Vanderlei Paiva, do Lola e do Dario, e aquele com Cerezo, Éder e Reinaldo.

Vimos também o Guarani, com seu timaço campeão de 78, e com seu outro timaço que foi à final de 86; e o Athletico-PR no trabalho de primeira linha feito pelo Geninho. E veio, em 1990, o primeiro título brasileiro do Corinthians, com Neto jogando demais, e as conquistas de 98 e 99, com times brilhantes e fartos de grandes jogadores (Dida, Gamarra, Luizão, Ricardinho, Rincón e Marcelinho Carioca, entre outros).

O São Paulo reuniu Gerson e Pedro Rocha, anos antes de Minelli, Chicão, Muricy, Waldir Peres, Zé Sérgio e Serginho serem campeões (Minelli, que vinha de um bicampeonato com o Inter, ganhava, então, seu terceiro título brasileiro seguido.)

E que time aquele São Paulo de Careca, Oscar, Dario Pereyra, Muller, Pita e Silas. E que marca histórica a do Muricy Ramalho e daquela geração que ganhou três Brasileiros seguidos. Mas, no Morumbi, história remete a Telê Santana, campeão de São Paulo, do Brasil, da América e do mundo.

Os campos brasileiros testemunharam também um memorável Flamengo ganhando títulos como se fosse algo banal, como se fosse comum ter Leandro, Mozer, Junior, Andrade, Adílio, Tita e Zico reunidos no mesmo time; e, depois, aquela mesma camisa voltando a vestir Zico, regente de Jorginho, Leandro, Edinho, Leonardo, Andrade, Zinho, Bebeto e Renato.

Esta breve memória é só um olhar rápido para o muito que aconteceu nestes 60 anos desde a inauguração da Taça Brasil. Vai começar o campeonato. A angústia não está na comparação do futebol brasileiro com o de outros países, pois essas coisas são cíclicas e podem ser mudadas. A angústia e a perplexidade aparecem quando o futebol brasileiro se depara com sua própria história; com sua grande e excepcional história.

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