Juntos, eles eram fortes. Unidos, foram imbatíveis

Bem-educados, fiéis, honestos, solidários, trabalhadores, cúmplices, amigos, irmãos. Qual pai não gostaria de usar todos esses adjetivos para falar dos seus filhos?

Formar uma família é algo que exige responsabilidade. Não adianta apenas colocar seus filhos no mundo. É necessário criar, cuidar, paparicar, igualar. Não adianta obrigar que um goste do outro. É necessário mostrar o que são virtudes a serem exaltadas e defeitos a serem corrigidos. Não adianta simplesmente esperar que os seus filhos tenham bom caráter. É necessário mostrar o que é certo e o que é errado, ensinar o que se pode e não se pode fazer nas mais variadas situações que o mundo colocar pela frente.

A tal Família Scolari começou a ser citada por todos em um tom quase irônico. "Eu não quero que ele case com a minha filha, quero que ele faça gols", diziam muitas pessoas sobre alguns jogadores preteridos, como Romário e Djalminha. Na Família Scolari, não foi assim. Enquanto todos pensam apenas na qualidade dos atletas dentro de campo para analisar uma convocação de seleção brasileira, o treinador tem a função de pensar em todos os aspectos possíveis e imagináveis.

E o aspecto mais importante para Scolari foi chamar homens que se encaixassem nos seus critérios de caráter, amizade, cumplicidade. E que, além disso, jogassem bola.

Ele conseguiu. Quem acompanhou a Família Scolari de perto teve uma sensação inédita de "grupo fechado", este bordão tão utilizado no futebol. Quem acompanhou tudo por dentro, porém, ficou espantado. Eles não só pareciam. Eles eram, de fato, os jogadores mais unidos das últimas seleções brasileiras reunidas para disputar uma Copa do Mundo.

Algumas pequenas pedras apareceram no caminho, é verdade. Ninguém é perfeito, e todo pai fecha os olhos para algumas "travessuras" dos seus filhos. A tal "cartilha do Felipão" foi deixada um pouco de lado algumas vezes, especialmente após cada vitória no torneio. As noites foram longas...

Roberto Carlos não gostou de a Nike ter feito uma chuteira especial para Ronaldo. Este, por sua vez, que sempre disse em público não estar preocupado com o título de melhor do mundo, falava nas concentrações que queria, sim, ser o artilheiro da Copa e o número um de novo. Mas manteve seu discurso de "o que importa é o título" em público até o final, sem criar nenhum conflito com a outra estrela da equipe, Rivaldo.

Aliás, um dos grandes méritos de Scolari e Rodrigo Paiva, assessor de imprensa da seleção, foi ter mantido a paz entre Ronaldo e Rivaldo. Os dois "não são unha e carne", como definiu uma pessoa de dentro da CBF, mas conviveram pacificamente, mesmo questionados diariamente sobre a disputa pela artilharia e a condição de melhor jogador brasileiro na Copa. Paiva, amigo íntimo e assessor de Ronaldo, "escoltou" Rivaldo durante todas as entrevistas em zonas mistas. O craque do Barcelona é uma pessoa extremamente introvertida e poderia ter algum tipo de crise de identidade com tantas atenções voltadas para o outro atacante titular da seleção.

Ronaldo teve a regalia de dar entrevistas um dia sim outro não. Rivaldo falou todos os dias e, com sua simplicidade, "ganhou" a mídia, que sempre tanto o criticou. De Barcelona, onde a seleção se reuniu, até Yokohama, onde jogou a final, a evolução no comportamento e no humor de Rivaldo foi nítida.

Outro pequeno percalço na família aconteceu com a chegada de Ricardinho, que veio para substituir o ex-capitão Emerson. O meia corintiano perdeu mais de três semanas de preparação e, mesmo assim, entrou para jogar logo contra a China, três dias depois do seu desembarque na Coréia. Pelos treinos e pela qualidade, Ricardinho claramente ganharia uma vaga no meio de campo da seleção.

Foi então que um dos grandes líderes do time "intimou" Scolari, dizendo que a entrada do corintiano causaria uma crise no grupo de jogadores e que Juninho deveria continuar. E continuou. Pelo menos até as quartas-de-final, quando deu seu lugar a Kléberson -pelo menos um que já vinha no grupo desde o início. Ricardinho, inteligente, não arrumou confusão. Mas acabou se encolhendo um pouco nos treinos e sumindo da mídia, como alguns outros atletas queriam que acontecesse.

Foram pequenos problemas, que acabaram não "vasando". Nenhuma peça decepcionou Scolari, que conseguiu juntar e "criar" os filhos que pediu a Deus. Quem acompanha de perto a carreira do técnico tem na ponta da língua a fórmula do seu sucesso com os jogadores: "o segredo é tratar os reservas da mesma forma que os titulares. Do número um ao foca, são todos iguais. Ser titular é fácil. Mas o Felipe sabe que quem detona um grupo são os reservas", me contou um dos seus interlocutores.

Conversei com muitas pessoas que viveram de perto o dia-a-dia da seleção. Todas foram unânimes e juntaram-se ao grupo de jogadores ao responsabilizar Scolari como o grande centralizador da união deste elenco pentacampeão. Os métodos para manter a paz e motivar todos os atletas "foram estudados", como ele mesmo diz.

Algumas táticas foram separar os jogadores em quartos individuais, utilizar frases de adversários e pessoas vencedoras no mundo esportivo e também selecionar alguns trechos do livro "A Arte da Guerra", do filósofo Sun Tsu. Durante todos os dias em que a seleção ficou no Rafre Hotel, em Saitama, local da semifinal contra a Turquia, os jogadores batiam diariamente com a seguinte frase, escrita em vermelho em uma espécie de lousa: "juntos somos fortes, unidos, seremos imbatíveis".

A "lavagem cerebral" convenceu a todos de que somente esta união levaria o time ao pentacampeonato. E ela era completada sempre nas preleções, com o aproveitamento da tecnologia para mostrar que todos eram iguais.

Quem não se lembra da edição do debate entre Collor e Lula na corrida presidencial de 89? Pois Scolari também utilizou o recurso da edição de imagens para mostrar vídeos direcionados e pensados segundo a segundo nas preleções dos jogos. Vídeos que nunca deixavam de mostrar um jogador sequer, nunca priorizavam um ou outro. A coisa era tão detalhada que o último dos vídeos, o da preleção anterior à decisão, foi entregue em cima da hora. A fita foi da ilha de edição direto para a palestra.

No trabalho que a CBF realizou de ceder imagens internas para as redes de televisão do mundo inteiro, havia o cuidado de não "exagerar" nas imagens de Ronaldo e Rivaldo, mas sempre equilibrar o tempo entre todos os atletas.

Com seu jeito de "paizão" e com os recursos dos vídeos, Scolari conseguiu persuadir a todos e fazer com que os atletas acreditassem cegamente que não havia nenhum privilégio para ninguém. Nem mesmo nos bingos promovidos pelo staff da CBF era permitido que alguém faltasse. Todos deveriam estar juntos, sempre. Os horários eram rígidos, "espartanos", e colocados em prática pelo "general" Américo Faria. Ele fazia a função do chato, que não recaía tanto, então, sobre o treinador.

Os tentáculos de Scolari entre os jogadores eram Cafu e Roberto Carlos, dois dos mais antigos do elenco e "donos do time". "Ninguém fazia nada de muito diferente sem olhar para eles antes", contou uma pessoa da delegação. Ao menor sinal de crise ou estrelismo, eram os dois laterais que chamavam a responsabilidade para colocar panos quentes, unir os envolvidos e, se necessário, desviar as atenções da mídia.

Ah, e antes que alguém pergunte. Não, o nome Romário não foi ouvido nenhuma vez nos corredores dos hotéis ou salas comuns frequentadas por jogadores e pessoal de apoio.

Bem-educados, fiéis, honestos, solidários, trabalhadores, cúmplices, amigos, irmãos. Assim foram, para Scolari, os seus filhos durante a Copa.


Julio escreve diariamente no UOL na Copa;
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Julio Gomes Filho, formado em jornalismo pela USP, está no UOL desde 1998. Contratado como redator, passou a editor-assistente do UOL Esporte no ano seguinte. Torcedor da Portuguesa (e da Juventus de Turim), cobre agora a sua primeira Copa.