1934

Copa Brasileira de Letras: as aventuras de Leônidas e seu vizinho no transatlântico a caminho da Itália

Xico Sá Colaboração especial para o UOL
DiVasca/UOL

Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1934 é de Xico Sá, com a história de Cícero Lourenço, vizinho e amigo de Leônidas da Silva, testemunha ocular da viagem brasileira para a Itália.

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1934, uma crônica no fundo de uma garrafa

Foram 312 horas a bordo do navio e apenas 90 minutos de futebol, mas confesso a vocês: a aventura valeu cada batata que descasquei ao longo do percurso entre o Rio de Janeiro e Gênova naquele maio de 1934.

 A seleção foi eliminada logo no primeiro jogo, perdeu de 3x1 para a favoritíssima Espanha. Uma barbada para quem entendia de futebol. Não era o meu caso. Juro que eu acreditava em uma zebra. A ingenuidade dos vinte anos, aliada à admiração pelo meu vizinho Leônidas da Silva - jogou demais pelo Bonsucesso! -, me permitia esse gesto de fé ou insanidade, como preferiam qualificar os meus colegas garçons no Café Nice.

Leônidas inventou nossa ideia do gol de honra, fez nosso tento solitário. Talvez nosso gol mais bonito de todas as Copas.

Consegui, por um milagre, uma vaga de trabalho no transatlântico Conte Biancamano e embarquei. Deixava para trás um bom emprego, casa conceituada da noite carioca, na avenida Rio Branco, nº 174, onde servi bambas como o Ary Barroso e o Lamartine Babo, para citar apenas os menos íntimos.

Juro que eu acreditava em um épico brasileiro na Itália. Era uma intuição. “Todo homem traído ganha ares de profeta”, caçoavam os amigos. Eles nem sabiam direito, mas abro de novo a portinhola do confessionário: minha noiva Matilde havia prevaricado ou, para dizer o mínimo, plantado sementes da desconfiança no canteiro das minhas ilusões. Que patético, acho que tirei essa choraminga dos escritos do J. G. de Araújo Jorge. Ou terá sido do meu conterrâneo Olegário Mariano? Esquece. Fui, me mandei, e pronto, não se fala mais nisso em solo pátrio.

Ah se Waldemar de Brito não me perde aquele pênalti... Ah se o miserável juiz não anula aquele gol legítimo do Luizinho... Não esqueci mais o nome do excomungado: Alfredo Birdem, árbitro alemão. Devia estar no bolso do fascista do Mussolini. Ah, sim, o Duce armou para a Itália ser campeã, todo mundo sabe. O Brasil poderia complicar as suas pretensões, mesmo que a chefia da nossa delegação fosse composta de gente como ele, gente assim-assim, bigodinho a bigodinho com o Hitler. Getúlio não era besta nem nada. Mandou para a Itália só a turma nazi.

Brasil escalado para o jogo inicial e eliminatório (eram as regras) com Pedrosa; Sylvio Hoffmann e Luiz Luz; Tinoco, Martim Silveira e Canalli; Luizinho, Waldemar de Brito, Leônidas, Patesko e Armandinho. Estádio Luigi Ferraris, Gênova. O calendário assinalava 27 de maio de 1934. Nem 20 minutos de peleja e 1 a 0 para La Furia. Os espanhóis desfilavam. É quando, tempinho depois, Waldemar de Brito, aquele mesmo que descobriria o menino Pelé anos depois, me perde a penalidade máxima. Temos que considerar: o arqueiro deles era o Ricardo Zamora. O cronômetro nem havia chegado na marca dos 30 e já levávamos um vareio de 3 a 0. Ainda bem que a essa altura o sofrimento com a memória da minha noiva já havia dissipado nas tempestades em alto mar. Depois de muitos vômitos, e eu estava convencido que a Copa do Mundo de 1934, fascismo de Benito Mussolini à parte, não era nossa.

Valeu cada batata descascada.

Depois do jogo, em um vinho com o Leônidas, ele me confessou: “Nosso time entrou em campo ainda sentindo o balanço do mar, todo mundo mareado”. Sem condições. Treino que é bom, pelo que me recordo, apenas pulo de corda no convés do navio e um bate-bola que resultava, quase sempre, com a redonda sendo atirada aos mares. Na parada em Barcelona - onde subiram a bordo os adversários espanhóis -, o time da CBD fez um rachão em um campo próximo à zona portuária.

A viagem, confesso, foi uma tempestade atrás da outra. Juro que os jogadores nem pensavam mais em Copa do Mundo a certa altura. “Voltar vivo é o meu troféu”, confessou o Armandinho, bom rapaz do interior paulista de São Carlos, botando os bofes pela boca, menos de um dia depois de deixarmos o Rio de Janeiro.

Valeu cada batata.

Cumpria lá meu expediente na cozinha do navio e corria para o carteado com os jogadores. O truco imperava, por mais que a jogatina incomodasse o treinador Luís Vinhaes. Lembro que o chefe da delegação tentou proibir. Em vão.

Não se impõe a filosofia do profissionalismo de um dia para o outro, como pleiteava a imprensa. Recordo que, antes de sair do Brasil, o “Jornal dos Sports” só falava dessa onda. A CBD, filiada à Fifa, tinha o monopólio das convocações, mas ainda era uma liga amadora. O país ensaiava ainda lentamente a profissionalização.

 Meu amigo Leônidas, àquela altura, havia jogado no Uruguai e se negava aos esquemas amadores. Ficou puto da vida, quando falaram que ele vendera seu patriotismo por 30 contos de réis, uma fortuna à época.

Digo meu amigo Leônidas porque no navio, realmente, a amizade se estreitou e aprontamos juntos. O navio, de bandeira italiana, estava cheio de ragazzas. Leônidas atingiu o nirvana. Já era, mesmo antes da publicidade inventar o chocolate Diamante Negro em sua homenagem (coisa da Copa de 1938), um amante latino da melhor cepa.

Generoso, Leônidas me permitiu jogar na sobra. “Vamos, menino, a Copa é agora em alto mar ou nunca”, dizia meu ídolo. Lesado, ainda pensando na noiva carioca do Estácio, demorei para pegar no tranco.

Passou a Copa de 34, cá fiquei. Na mesma Gênova, garçom para sempre.

Deixo esse fragmento de memória nessa velha garrafa escondida, velha garrafa do meu vinho predileto, para que meus filhos um dia descubram, depois da minha morte,  nesse sótão. Estão autorizados a divulgar quando encontrarem meu relato.

Só tive coragem de escrever essas mal traçadas, Giovanna e Antonio, pouco antes do meu primeiro infarto, depois da tragédia do Sarriá, Itália 3 x 2 Brasil. O Brasil de Falcão, Zico e doutor Sócrates, 1982. Foi nesse jogo que tive a ideia definitiva de que o futebol não é para os justos.

Um segredo, filhos. Sinto-me culpado, como auxiliar de cozinha, de ter roubado e fornecido doces e bebidas clandestinas para meus amigos da seleção brasileira. Como engordaram a bordo.

“Eis a copa do fascismo”, dizia meu irmão Leônidas em 34*, e era mesmo. “Nos chamavam de faccettas neras, termo que usavam para chamar os etíopes, contra quem iriam combater no começo da Segunda Guerra”.

Ainda com a memória mareada daquele navio dos anos trinta, deixo esta pequena recordação paterna. Com afeto, Cícero Lourenço, Gênova, 5 de julho de 1982.

*As declarações de Leônidas da Silva foram publicadas na revista “Fatos e Fotos”, número 488, de 11 de junho de 1970.

DiVasca DiVasca

Xico Sá é autor de “A Pátria em sandálias da humildade” (editora Realejo), entre outros livros.

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