20 anos de um feito absurdo

Como um brasileiro que quase ninguém conhecia venceu um dos mais importantes torneios de tênis do mundo

Felipe Pereira Do UOL, em São Paulo
AP/Remy de la Mauviniere
AFP/Eric Feferberg AFP/Eric Feferberg

"Eu estava me sentindo inútil"

Gustavo Kuerten, a um mês de ganhar Roland Garros*

"Eu estava há dois meses na Europa me sentindo um inútil dentro da quadra. Achava que não tinha condições de enfrentar jogadores que eram 50 do mundo. Ao longo das semanas, a falta de confiança foi me corroendo. De tão derrotado, decidi voltar ao Brasil. O voo estava marcado para a noite, mas, pela manhã, fui para a quadra. Chovia. Eu estava em Hamburgo e a Alemanha tem uma característica diferente: o saibro é um pouquinho mais rugoso e as quadras aguentam o jogo. Ficam enlameadas, mas suportam a chuva.

Começamos a treinar e a chuva foi aumentando. Naquele momento, tive a sensação de ser outro jogador. O Larri Passos, meu treinador, me fazia bater uma bola de cada lado. E eu só soltando o braço, com toda minha força. Marretada pra cá e pra lá. NENHUMA IA PARA FORA. O treino não acabava. Uma hora. Duas. Até que o Larri jogou a bolinha distante com toda a força e gritou: ‘É isso aí cavalo’.

Voltei para o Brasil e o tênis voltou a ser gostoso. E isso foi novamente me preenchendo, trazendo vigor, força, energia. No dia em que voamos para Roland Garros, tudo de ruim que aconteceu na Europa tinha desaparecido. Sabe aquele cara daquele treino em Hamburgo que não errava nunca? Eu era aquele cara."

*Em depoimento para a Federação Francesa de Tênis

Quando chegou a Paris, Guga era 66 do mundo. E alguém com um ranking tão baixo não treinava dentro de Roland Garros. Para conseguir espaço lá dentro, só recebendo convite para bater bola com os cabeças de chave do torneio. O brasileiro conseguiu:

Deixei as malas no hotel, fui para a quadra e, cara... A mesma coisa. Erro zero. O que está acontecendo?

Gustavo Kuerten, sobre o que sentiu antes daquelas duas semanas

O que isso cara? Cruzada, paralela? Você não vai errar um bola?

Richard Krajicek, cabeça de chave, em treino na semana antes do torneio

Assim não dá! Se continuar acertando tudo, vai ser campeão

Alex Corretja, cabeça de chave, depois de ser atropelado em outro treino

O que este cara está fazendo em quadra neste treino?

Marcelo Ríos, cabeça de chave, enquanto assistia treino de Guga antes da estreia

O título em 90 segundos

Reuters/Philippe Wojazer Reuters/Philippe Wojazer

"O Guga não nasceu atleta"

Larri Passos, técnico de Guga nos três títulos em Roland Garros

"O Guga era um menino alto, desengonçado. Para você ter uma ideia, eu tinha de correr na frente dele nos treinos físicos para que ele entendesse o que tinha de fazer para se coordenar. Em resumo, o Guga não nasceu atleta. Como fazer, então, para que ele virasse um tenista?

Eu pensei: se ele não corre, quem tem que correr são os adversários. E fomos inserindo aspectos do jogo que fizessem isso. Quando ele tinha 14 anos, por exemplo, surgiu a ideia de pegar a bola na ascendente e dar sempre um passo mais para dentro da quadra. Isso não apareceu por acaso.

O problema é que era chato colocar tudo em prática. Tinha de imitar o Andre Agassi e pegar a bola na subida, colocar giro para que ela ficasse mais pesada. Tinha também que fazer como o Stefan Edberg e mexer um pouquinho, com a ponta dos pés bem soltas.

Tudo isso tinha um objetivo: gerar spin, a rotação da bola, e, com isso, jogar o adversário para trás. O resultado era abrir a quadra para o ataque seguinte. Eu fazia essa modelação e lembro que ele ficava só me olhando: "Pô, esse cara é maluco". E naquela época ainda não tinha vídeo. Eu precisava que ele visualizasse o que eu falava e moldasse tudo na mente dele."

Eu ainda precisava colocar o Guga contra os melhores do mundo. Isso aconteceu em 92, quando ele tinha 15 anos

Larri Passos

Larri Passos

Pascarl George/AFP Pascarl George/AFP

"Fomos para a Europa e ele não tinha nenhum ponto na ITF. Para entrar os torneios, eu tinha de pedir favores para os diretores de torneio.

Em um deles, na Holanda, o Guga fez semifinal jogando um tênis maravilhoso. Todo mundo perguntou quem era aquele moleque brasileiro que jogava perto da linha, abrindo a quadra. Quando ele deu uma escovada num holandês que era top no júnior o objetivo tinha sido cumprido: Guga tinha aprendido in loco como se joga na Europa.

Outro passo importante foi a gira pela Europa em 1996. Quando todo mundo estava pensando no US Open e o Guga poderia entrar no quali de um Grand Slam, a gente optou por ficar na Europa. Eu queria moldar o jogo dele contra os espanhóis, no saibro. Não tinha de perder tempo com adaptação ao fuso ou com a quadra rápida. E deu muito certo. Foi ali que ele entrou no Top-100 do ranking."

Reuters/Philippe Wojazer Reuters/Philippe Wojazer

O bom mantém o nível sob pressão. O campeão joga mais

Paulo Cleto, técnico do Brasil na Copa Davis por 17 anos

"Na hora da pressão, a maioria dos tenistas joga abaixo de seu nível normal. Você descobre que um cara é bom quando vê que ele consegue manter o nível quando está em apuros. Mas só os grandes jogadores elevam, constantemente, o nível de jogo nas situações limite. O Guga é assim.

O pessoal fala desse ou daquele golpe. Mas tudo isso é só ferramenta nas mãos de campeão. OK, ele tinha algumas excelências técnicas, mas COM CERTEZA não ganhou Roland Garros ou foi número 1 do mundo por conta delas. O que ele tinha era uma inteligência emocional MUITO acima da média. Jogava acima do próprio padrão nos momentos importantes, justamente quando são decididos os jogos.

Quando estava ganhando, se alimentava da própria confiança e jogava melhor. Quando contra parede, elevava a barra e transformava a vida do oponente em um inferno".

Na campanha de Roland Garros 1997, isso apareceu inúmeras vezes. E apareceu em um tenista ainda longe de estar maduro. Guga só foi alcançar esse ponto de maturação três anos depois

Paulo Cleto

Paulo Cleto

"Para vocês terem ideia, o Guga me contou que o adversário da primeira rodada, o Slava Dosedel, era “pai" dele. Na linguagem do tênis, Guga queria dizer que era freguês do rival. Mas naquele dia, aproveitou um desconforto físico do adversário para entrar no torneio.

No jogo contra Thomas Muster, pela terceira rodada, ele botou a cabeça para fora. Guga era a zebra e sabia que não tinha nada a perder. Eu já vi muita gente jogar como zebra. E jogar muito bem. Mas na hora H, esses caras não seguravam a pressão. Só que, no quinto set, ao invés de encolher o braço, o Guga tirou o chicote e deu no Muster. Enquanto o austríaco pensava que iria passar por cima daquele moleque, estava, na verdade, sendo atropelado.

Contra o Yevgeny Kafelnikov aconteceu a mesma coisa. Aquele era um cara que Guga respeitava, achava que jogava muito. Quando ficou em perigo, soltou os coquinhos em cima do russo. Foi sua melhor partida em 1997.

Um dia antes da final, eu, ele e o Larri ficamos conversando por uns 15 minutos. Perguntei o que ele esperava para o dia seguinte. Ele falou: “Não, tem problema. Vou ganhar. Já sei como vai ser. Espanhol joga assim e assado. Amanhã não tem nenhum problema”. Ele falou isso sem ser arrogante ou mascarado. Falou como se fosse um fato, com convicção. Para ele, estava ficando claro o que podia fazer. E ele foi lá e fez."

Mike Hewitt-8.jun.1997/Allsport Mike Hewitt-8.jun.1997/Allsport

"Só saio daqui quando o garoto perder"

Renato Maurício Prado, jornalista do Globo em 1997

"Foi por acaso. Estava na França, preparando a infraestrutura do Globo, para a Copa de 98, e ficaria para o torneio de Lyon. Encerrada a primeira parte do trabalho, em vez de ir para a Noruega, assistir a um amistoso do Brasil (que acabaria goleado!) optei por ir a Roland Garros, para matar a minha curiosidade de tenista amador.

Logo no primeiro dia, fui ver o Meligeni e acabei conhecendo o Guga. Ele ganhou a primeira (de Dosedel), a segunda (de Bjorkman) – detalhe: era freguês de ambos - e veio o jogo com o Muster, ex-campeão em Paris. Resolvi atrasar um pouco a ida pra Lyon, só pra ver essa partida. E ele ganhou! Levando o ogro austríaco a urrar, após perder um ponto longo:

'De onde saiu esse menino? Ele está me matando!'

Matou mesmo, apesar do placar apertado de 3 sets a 2. Encerrado aquele jogo épico, liguei para o jornal e avisei: 'Só saio daqui quando o garoto perder'. Já dava pra sentir que Gustavo Kuerten estava “encantado” e tudo poderia acontecer."

A grande notícia estava ali, não na seleção brasileira de futebol

Renato Maurício Prado

Renato Maurício Prado

"'Estou acertando aqui bolas que nunca acertei!', me contou, Guga, com um sorriso maroto, após bater Muster. 'Tudo que tento, está entrando. Às vezes, até eu me assusto...'

Depois das três primeiras vitórias, veio outro duelo dramático, contra Medvedev. A partida se estendeu por dois dias (foi interrompida por falta de luz natural) e Guga venceu novamente. Aí, chegou a maior das pedreiras: o russo Kafelinkov, campeão no ano anterior e um dos melhores do circuito, no saibro.

Um confronto que, confessou Kuerten, anos depois, em seu livro autobiográfico, ele não tinha a menor ideia de como poderia vencer. Mas venceu. Confesso, nunca torci tanto na tribuna de imprensa. Nem em jogo do Flamengo.

O resultado é que fiquei até a última rodada, pois, afinal, Guga não perdeu (atropelou Dewulf, na semi) e, às vésperas da grande decisão, foi a turma de jornalistas que estava em Lyon (cobrindo a seleção de Ronaldo e Romário) que acabou vindo para Paris, fazer o jogo do título, contra Bruguera.

Desde a primeira rodada, extasiados com o que estávamos presenciando, somente Armando Nogueira, Chiquinho Leite Moreira e eu. Uma cobertura inesquecível. Uma das mais importantes da minha carreira. Afinal, de forma absolutamente inesperada e emocionante, nascia ali o sucessor de Ayrton Senna, no coração dos brasileiros."

AFP/Frederic Florin AFP/Frederic Florin

Notícias de um orelhão

Rafael Kuerten, irmão de Guga

"Eu saí do Brasil imaginando que o Guga, na melhor das hipóteses, ia ganhar no máximo umas três partidas. Se tanto... Eu tinha medo pela estreia. O Guga chegou em Roland Garros com só uma vitória na carreira em Grand Slans. E ele tinha perdido duas vezes para o adversário.

Mas o Guga venceu o primeiro set por 6/0 em 20 minutos. Quando o jogo acabou, eu tinha que arrumar um jeito de mandar notícias para casa. O jogo não estava passando na TV, ninguém sabia o resultado. Então, eu fui até um orelhão embaixo da quadra Suzanne Lenglen para ligar para o Brasil. Achei que iria fazer isso mais uma ou duas vezes.

Mas chegou a terceira rodada, contra o Thomas Muster. Ele era o Nadal de hoje, um cara muito forte, com uma resistência enorme. Quando passou das quatro horas de jogo, chegou o quinto set e o Muster quebrou, fazendo 3 a 0. Guga abaixou a cabeça.

Ele foi sentar, jogou a raquete em cima da bolsa e resmungou: 'Pô! Não dá... O cara é muito forte. Tem que voltar para casa mesmo'. Só que essa postura não era a normal dele. Eu não costumava falar nada, mas também fiz algo incomum. Eu levantei e gritei:"

Você tá em Roland Garros, não tá em Florianópolis jogando na associação!

Rafael Kuerten

Rafael Kuerten

"Depois da bronca, ele virou o jogo. Mas as coisas mudaram, mesmo, nas quartas. Quando ele ganhou do Yevgeny Kafelnikov, o Larri me chama: 'Rafa, liga para tua mãe, para tua vó e chama as duas. Elas têm que estar aqui'. De novo, era algo que não combinava muito com o Larri. Ele é um cara fechado, mas fez questão de comemorar em família.

A final foi a primeira e única partida em que eu e o Guga tínhamos certeza que ele ia ganhar. Ninguém falou aquilo em voz alta, mas todo mundo sabia."

"Essa foi pra ti Rafinhaaaa!"

Voltei pro jogo e o Muster não entendeu nada. Eu estava morto, já pensando em voltar para o Brasil e, agora, estava lá gigante na frente dele. Ganhei do Muster, o cumprimentei, mas estava louco, mesmo, era para dar um abraço no Rafa. Ele me resgatou de uma escuridão da qual eu não conseguiria sair sozinho

Guga, falando do apoio do irmão

Otavio Dias de Oliveira/Folhapress Otavio Dias de Oliveira/Folhapress

O queridinho da imprensa

Um burburinho se formou quando Guga ganhou de Thomas Muster. Os jornalistas chegaram para a protocolar coletiva falando em zebra e até quando aquele sonho iria durar. Todos eles estavam acostumados com o padrão do circuito, uma cultura americanizada de rivalidade e nenhum sorriso.

Mas Guga entrou na sala e surpreendeu a todos com sua descontração e sorriso fácil. “Ele desandou a falar do Avaí, de futebol. Contou que estava num hotel três estrelas e comia em um restaurante em que a pizza saia por menos de US$ 10. Os caras entraram no esquema Gustavo Kuerten. Viram que era brincalhão. É difícil aparecer um cara mais relax como ele. E jornalista adora caras assim”, conta Paulo Cleto.

Nessa época, Diana Gabanyi era estudante no último ano da faculdade de Jornalismo e batia na porta das redações de São Paulo apresentando um caderno com fotos, resultados e informações de Gustavo Kuerten. Ninguém dava muita bola para aquela jovem e seu cliente cabeludo, que jogava um esporte estranho.

Mas quando Guga começou a vencer em Roland Garros, as coisas mudaram. E, de uma hora para outra, a estudante estava recebendo ligações da Rede Globo e dos principais jornais do país em busca de informações. Da França, o próprio Larri Passos ligou e disse para a assessora embarcar no primeiro avião para Paris.

Título fez Globo tocar a musiquinha do plantão

Do Muster para frente nunca mais meu trabalho foi igual. Eu fui colocada numa sala pela imprensa estrangeira que queria saber mais de Florianópolis (uma cidade numa ilha?), do Avaí (quem é Jacaré?) e de Guga (surfista?). Enquanto isso, com os jornalistas brasileiros, o trabalho era explicar o que era o saibro, um Grand Slam e o jogo de cinco sets

Diana Gabanyi , assessora de imprensa de Guga, explicando as mudança de status do tenista

Otavio Dias de Oliveira/Folhapress

Curiosidades

Quem é esse Rayovac?

Renato Maurício Prado, com seu jeito brincalhão, ao descobrir que o jogador espancando a bola em um jogo era brasileiro

  • Superstição 1

    No aquecimento para a final, o brasileiro beijou duas vezes a rede. Ele tinha feito isso em um lance do jogo de semifinal e, depois, tudo deu certo na partida.

  • Superstição 2

    A dupla Larri e Guga ficou supersticiosa e repetia tudo que podia naqueles dias. Horário e locais dos treinos, refeições e o que mais fosse possível.

  • Faça você mesmo

    Quando era adolescente, Guga não tinha onde treinar. Ele e Larri reformaram a quadra abandonada de um hotel em Florianópolis

  • Campeão de outro esporte

    Guga gosta de dominó. Ele já foi campeão de um torneio tradicional de Florianópolis, criado por Esperidião Amin, ex-governador de SC

  • Patrocínio

    Braguinha é um milionário brasileiro que vivia em Portugal. Larri contou a dificuldade deles quando Guga tinha 16 anos. O ex-banqueiro aceitou dar o equivalente a 150 euros por vitória

  • Ídolos

    O mesmo Braguinha tinha marcado um encontro entre Guga e Ayrton Senna, que jogava tênis nas folgas. O acidente em San Marino aconteceu uma semana antes deles se conhecerem

AFP/Jean-Loup Gautreau AFP/Jean-Loup Gautreau

Gratidão a patrocinador

A família Kuerten era apertada de grana. Guga também não tinha patrocínio até a parte final de 1996. As viagens da temporada seguinte estavam ameaçadas. Ele conseguiu fechar com uma empresa somente em 18 de dezembro de 96. O Banco Real aceitou pagar R$ 120 mil por ano ao atleta.

Resumindo, eram R$ 10 mil por mês para pagar hotel, passagens, alimentação e transporte para ele e o técnico. Além de pontos, as vitórias significam dinheiro para seguir a carreira. A coisa mudou quando ganhou Roland Garros. A premiação de US$ 644 mil era mais que o dobro do que ganhou na vida. Além disso, ficou sabendo que um campeão de Grand Slam valia dezenas de milhões de dólares.

Sem falar que choveram propostas de patrocínio, inclusive de bancos. As ofertas eram astronômicas e R$ 12 mil não estavam a altura da popularidade de Guga. Mas a família Kuerten não aceitou abrir negociação. Manter o compromisso com o Banco Real era questão honrar o contrato assinado, a palavra empenhada.

Otavio Dias de Oliveira/Folhapress Otavio Dias de Oliveira/Folhapress

Aquilo que nós sempre sonhamos ver. Aquilo que nós perseguimos há 11 anos trazendo transmissão para o Brasil. E o que eu persigo em quase toda minha carreira

Rui Viotti

Rui Viotti, narrador da TV Manchete, ganhando o título de Roland Garros ao lado de Guga (e de todo o país)

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