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Lito Cavalcanti

Niki Lauda foi absolutamente imortal até seu último suspiro

21/05/2019 08h52

Morreu Niki Lauda, um homem que, até seu último suspiro, foi absolutamente imortal. Ele podia fazer qualquer coisa, superar qualquer obstáculo, não importava o que nem qual. Apelidado de Rato pelo não menos heroico David Purley durante uma altercação com toques de comédia no Grande Prêmio da Bélgica de 1977, ele viveu as sete vidas dos gatos - e em todas triunfou.

Andreas Nikolaus Lauda nasceu em Viena do dia 22 de fevereiro de 1949 no seio de uma abastada família da Áustria. Mais do que por corridas e pilotos, sua paixão inicial era por carros. Aos 12 anos, sua maior alegria era estacionar os automóveis dos parentes que visitavam a mansão dos Lauda.

Seu primeiro carro foi um Volkswagen conversível 1949 que lhe serviu como escola de mecânica. Mas foi com um Cooper 1958 que ele participou de sua primeira competição, uma subida de montanha na qual obteve o segundo lugar. A primeira de uma série que o levou às corridas de "Fórmula Vê", um monoposto de custo e manutenção acessíveis que se tornara febre entre os jovens que sonhavam com um futuro na Fórmula 1.

Foi então que ganharam ênfase os apelos paternos para ele se dedicar aos negócios da família, um banco e uma indústria de papel. De nada adiantaram. Ele já tinha adquirido um Fórmula 3 e um pequeno caminhão para correr pelas pistas da Europa e acumular conhecimento técnico para compensar um talento ao volante pouco mais do que mediano.

Em 1972 ele deu o passo decisivo: aceitou o convite da equipe inglesa March para disputar o campeonato europeu de Fórmula 2 e o Grande Prêmio da Áustria, mas teria de trazer patrocínio pessoal. Após receber um sonoro e irredutível não do banco da sua família, Lauda conseguiu um empréstimo de um banco concorrente dando o prêmio de seu seguro de vida como garantia. Mas os carros eram abaixo da média. Lauda terminou o ano na 10ª colocação na F2 e a estreia na F1 se limitou ao 21º lugar em um grid de 22 carros e ao abandono por quebra mecânica depois de apenas 20 voltas.

Sem opção, o austríaco se manteve na March em 1972, e sua melhor colocação nas 12 etapas do ano foi um sétimo lugar - numa época em que a F1 só dava pontos até o sexto colocado. Mas o quinto lugar no campeonato de F2 lhe abriu as portas da equipe inglesa BRM. De novo, ele recorreu a empréstimos bancários para fechar o acordo e, mesmo tendo conseguido apenas dois pontos com o quinto lugar no GP da Bélgica, em Zolder, ele se mostrou tão eficiente quanto seus companheiros Clay Regazzoni e Jean-Pierre Beltoise, ambos muito bem cotados.

Essas boas atuações chamaram a atenção do comendador Enzo Ferrari, uma lenda em seu tempo. O próprio Lauda revelou ao programa da TV inglesa Fifth Gear que, na primeira conversa, o comendador lhe disse "você é um desconhecido, ninguém sabe por que anda tão rápido, deve ter algo de bom. Quer guiar para mim?" O convite, prontamente aceito, surpreendeu a F1, cuja percepção ainda era de que o austríaco era um caso sem esperança.

Contratado por US$ 66 mil por ano, investidos integralmente no pagamento das dívidas com a March e a BRM. E logo no primeiro teste, Lauda, com sua honestidade áspera, teria dito ao comendador, logo em seu primeiro teste, que "seu carro é uma m..., mas vou transformá-lo em uma máquina vencedora".

Assim foi feito. Ele estreou com o segundo lugar na Argentina, com o companheiro Regazzoni logo atrás. Terminou o ano em terceiro, superado apenas pelos já campeões Jackie Stewart e Emerson Fittipaldi, com duas vitórias e seis pole positions a seu crédito.

Quarto colocado em 1974 com duas vitórias, Lauda chegou a seu primeiro título em 1975, vencendo cinco provas. 1976 se apresentava como o ano da consagração, e seu começo foi fulminante. Após nove etapas, ele tinha a seu crédito quatro vitórias e dois segundos lugares.

Ao chegar à Alemanha, ele era o líder destacado do campeonato, com 61 pontos contra 30 do segundo colocado, o sul-africano Jody Scheckter. Mas o adversário real era o inglês James Hunt, seu velho amigo desde os tempos da F3, que já duas corridas e feito um segundo lugar com sua McLaren M23.

Foi nessa corrida que Lauda viu a morte cara a cara pela primeira vez. O dia era um chuvoso primeiro de agosto e o austríaco largou em segundo, com Hunt na pole position. Lauda escolheu os pneus para pista molhada, o que o fez cair para o fundo do pelotão na primeira volta pelo circuito que, na época, tinha 22.835 metros de extensão. Após trocar para os pneus slick, Lauda voltou à pista extraindo tudo de sua Ferrari 312T2, um carro que carregava 210 litros de gasolina de altíssima combustão em três tanques dispostos aos lados e às costas de seus pilotos.

Talvez por ainda não estarem quentes o suficiente, os pneus perderam aderência repentinamente no trecho chamado Bergwerk e o carro bateu no barranco da direita, a força do impacto causando a soltura do capacete de Lauda. Descontrolada, a Ferrari voltou à pista e foi colhida pelo Surtees TS19 do ex-fuzileiro naval americano Brett Lunger. As chamas irromperam imediatamente e os esforços de Lunger, Harald Ertl e Guy Edwards parram para ajudar, mas a intervenção decisiva veio de Arturo Merzario, que se enfiou em meio às chamas para resgatar o companheiro.

Com os pulmões seriamente queimados, Lauda chegou a receber a extrema unção, mas seis semanas depois estava de volta às corridas, apesar da péssima reação da Ferrari. Depois de retirar seus carros do GP seguinte, na Áustria, a escuderia deu o austríaco por descartado e contratou o argentino Carlos Reutemann. Pior, não deu crédito ao aviso de Lauda de que retornaria no GP da Itália, em Monza. O austríaco fez o quinto tempo na classificação e chegou em quarto, mantendo em 17 pontos a vantagem sobre Junt na tabela de pontos.

Naquela prova, Lauda deu uma clara demonstração de sua imunidade a sentimentalismos comuns a outros seres humanos. Perguntado por um jornalista italiano como sua mulher reagia às queimaduras que marcaram seu rosto e lhe custaram a orelha direita, Lauda falou para seu empresário em altos brados: "Eles enlouquecem com minhas queimaduras. Daqui para frente vamos cobrar o dobro para dar entrevistas". E prosseguiu com a entrevista coletiva, abordando assuntos relativos aos carros e às corridas.

Na última prova daquele ano, mostrada de forma romanceada no filme "Rush", Lauda cometeu sua ousadia maior ao abandonar a corrida decisiva por causa da tormenta que se abateu sobre a pista de Fuji, no Japão. A desistência lhe custou o título mundial, que acabou nas mãos de Hunt, que o bateu por apenas um ponto.

Lauda mais do que compensou seu gesto em 1977, conquistando o título com três vitórias e seis segundos lugares, somando 72 pontos contra 55 do vice Scheckter. Mas o relacionamento com o comendador Enzo Ferrari já estava muito desgastado e, em 1978, ele se transferiu para a equipe Brabham, do inglês Bernie Ecclestone, que usava o motor Alfa Romeo, menos potente do que o necessário para ele vencer mais do que uma única corrida, o GP da Suécia.

No ano seguinte, ele teve como companheiro um atento Nelson Piquet, que teve até o GP do Canadá para apreender o máximo possível do bicampeão Lauda. Naquela corrida, o austríaco parou nos boxes durante os treinos e comunicou que sua carreira havia chegado ao fim. Como adorava aviões, nada mais coerente do que montar sua própria companhia aérea e ser o principal piloto.

Mas depois de dois anos cuidando da Lauda Air, e trabalhando como comentarista de televisão, ficou evidente que controlar a empresa exigia conhecimentos que ele não tinha. E Lauda se viu compelido a voltar às pistas para fazer frente às muitas dívidas da empresa aérea - da qual acabou perdendo o controle acionário.

De volta à F1 pela McLaren em 1982, ele aceitou um contrato inicial regiamente pago, mas de apenas quatro corridas de duração. Depois das quatro primeiras etapas, ele era o vice-líder, com uma vitória e um quarto lugar, com uma vez e meia a pontuação de seu companheiro, o irlandês John Watson.

O terceiro título mundial veio em 1984, batendo o companheiro de equipe, o ardiloso francês Alain Prost por meio ponto de vantagem na última etapa do ano. Lauda se retirou no fim do ano seguinte, com apenas uma vitória, no GP da Holanda, em Zandvoort. Foi um discreto 10º colocado no campeonato, mas deixou a imagem de um piloto de extrema inteligência capaz de aceitar todos os riscos que achava necessário e descartar os desnecessários.

Sua vida voltou a girar em redor dos aviões, fundando uma nova companhia aérea e dirigindo a equipe Stewart até os americanos da Ford não aguentarem mais seu estilo duro e direto de apontar erros. Nos últimos anos, se associou ao homem de negócios austríaco Toto Wolff na condução da equipe Mercedes, que domina a F1 desde a introdução dos motores híbridos, em 2014. Sua mais destacada contribuição para a escuderia alemã foi convencer o hoje pentacampeão Lewis Hamilton a largar uma ainda eficiente McLaren para ingressar na Mercedes, que até então era pouco mais do que um projeto.

Duro até o limite da grosseria, sem nenhum tipo de papas na língua, egocêntrico ao ponto de obrigar todos que o rodeavam a adaptarem suas vidas às necessidades e exigência dele mesmo, Lauda era absolutamente imune aos deslumbramentos dos altos círculos. Dono de enorme inteligência específica, dominava a mecânica e a física. Seu temperamento era um misto de coragem e calculismo - foi dele a criação do provérbio mais repetido nos paddocks: "para chegar em primeiro, primeiro tem de chegar".

Andreas Nikolas Lauda deixa uma marca indelével no mundo do automobilismo, uma vaga que, provavelmente, nunca será preenchida, e a certeza de que, até morrer, ele foi absolutamente imortal.