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O dia em que Bernie Ecclestone me deu carona

10.06.12 - Fila de carros para entrar no Circuito Gilles Villeneuve, palco do GP do Canadá de F1 de 2012 - Livio Oricchio
10.06.12 - Fila de carros para entrar no Circuito Gilles Villeneuve, palco do GP do Canadá de F1 de 2012 Imagem: Livio Oricchio

Livio Oricchio

Do UOL, em Montreal (Canadá)

10/06/2014 06h00

Já contei essa história. Mas penso ser válido recontá-la, agora com mais detalhes, algumas fotos e no UOL torná-la acessível a bem mais fãs da F1. Aconteceu aqui em Montreal, na edição de 2012 do GP do Canadá.

Começo descrevendo o cenário dos episódios, de grande beleza e importância para sua melhor compreensão. Muitos profissionais da F1 não alugam carro nessa prova. O Circuito Gilles Villeneuve encontra-se na Ilha de Notre Dame, do rio São Lorenço, na zona Nordeste da área urbana de Montreal. Para chegar na Ilha de Notre Dame é preciso passar por outra pequena ilha, Santa Helena. Uma acha-se ao lado da outra.

O tráfego na ponte que liga o continente à Ilha de Santa Helena e na que se estende até a Ilha de Notre Dame costuma ser intenso. Assim, o caminho mais fácil para chegar no Circuito Gilles Villeneuve é o metrô. Na Ilha de Santa Helena há uma estação, Jean-Drapeau, nome do belo parque onde se encontra e que em bom português seria João-Bandeira.

Nada menos de 80% do extraordinário público que comparece para assistir aos treinos e à corrida utiliza o metrô. Sua paixão pela F1 e conhecimento do esporte impressionam. Todos os anos quase 100 mil torcedores lotam as arquibancadas. E não importa se faz calor, como na emocionante edição de ontem, ou chova e faça frio, o mais comum. 

São atraídos também pelo histórico de espetacularidade da prova, a exemplo de domingo, edição que reuniu todos os ingredientes de um verdadeiro show, até com um toque de temor, na última volta, com o acidente em alta velocidade entre Felipe Massa, Williams, e Sergio Perez, Force India.

Do centro de Montreal, da estação Berri Uqam, os fãs seguem pela linha amarela, curta, com duas paradas, apenas, a Jean-Drapeau e o ponto final, a Universidade de Sherbrook, instalada já no continente novamente. O metro passa sob as águas do rio São Lorenço para atingi-las.

Os torcedores desembarcam na estação Jean-Drapeau e caminham cerca de 200 metros até a ponte que liga a Ilha Santa Helena à Ilha de Notre Dame, só para recordar, onde se encontra o Circuito Gilles Villeneuve. 

Fãs aguardam para entrar no circuito Gilles Villeneuve em 2012 - Livio Oricchio - Livio Oricchio
Imagem: Livio Oricchio

Ao pé dessa ponte formam-se sempre duas longas filas: uma de cidadãos ávidos por assistirem à corrida e outra de veículos. Os responsáveis pelo controle no local liberam ora os carros ora o público. Tudo com civismo e disciplina de chamar a atenção.

Os jornalistas que vão ao circuito de metrô se posicionam na calçada de grama, debaixo das árvores, no início da fila dos carros, à espera na perua da imprensa, que sai do centro da cidade. É outra opção dos profissionais de comunicação para chegar ao circuito, seguir com a perua desde um hotel central.

Foi ao lado da fila dos carros que permaneci, no domingo da prova de 2012, à espera do transporte até o paddock, do outro lado da ilha de Notre Dame, com a credencial permanente da FIA no peito, essencial para o motorista da perua parar.

Fila de carros para entrar no circuito Gilles Villeneuve, em Montreal, em 2012 - Livio Oricchio - Livio Oricchio
Imagem: Livio Oricchio

Enquanto aguardava, vi um braço para fora da janela de uma elegante Mercedes preta, parada na fila, a uns 30 metros de onde me encontrava. Com a mão, o passageiro pedia para me aproximar. O reflexo no vidro impedia ver dentro do carro. Não achei que fosse comigo.

Mas ao olhar ao meu redor e ver apenas árvores e a uns 30 metros uma marmota, pois há milhares no Parque Jean-Drapeau e são dóceis, comecei a acreditar que aquela mão acenava para mim. Para uma árvore era pouco provável, como a árvore se aproximaria? Seria, então, para a marmota? 

Fiquei em dúvida. A marmota interpretaria aquele mão se movimentando no ar como um predador num voo rasante prestes a apanhá-la e correria para sua toca. Rapidinho! Portanto, descartei a hipótese da marmota, definitivamente não poderia ser. Mas se aquela mão não chamava a árvore e a marmota havia chances elevadas de ser comigo. Decidi me aproximar para investigar. 

Eu me abaixei já perto do carro e identifiquei ninguém menos de Bernie Ecclestone, o maior responsável por fazer a F1 ser o que é, um evento mundial. Estava com a janela aberta. Ele me perguntou: "Are you going to the paddock? ( Você vai ao paddock?)". Respondi que sim e ele disse para entrar na parte de trás da Mercedes.

Carros aguardam para entrar no paddock do GP do Canadá de 2012 - Livio Oricchio - Livio Oricchio
Imagem: Livio Oricchio

Feliz, abri a porta e vi Fabiana Flosi, brasileira, sua esposa. Eu a conheço há uns 12 anos, desde que trabalhava na área comercial do GP do Brasil, onde se conheceram. Havia também no banco de trás outra moça, jovem, simpática, era Camila, brasileira, atual mulher de Jacques Villeneuve.

"Thank you, Mister Ecclestone", disse-lhe. E ele me perguntou de onde eu vinha e o que era aquela multidão que atravessava a rua na nossa frente, contendo por longos minutos a fila dos carros. Eu lhe contei que a grande maioria dos torcedores no GP do Canadá ia para o Circuito Gilles Villeneuve de metrô. 

E aqueles eram os fãs deixando a estação para se dirigir às arquibancadas. Recomendei que prestasse atenção em como se comportavam, cantando, gritando o nome de seus ídolos, como numa partida de futebol. Portavam consigo bandeiras, bonés, cornetas, suas geladeiras de isopor, enfim, fazem uma festa no evento. Ecclestone sinalizou apreciar muito aquilo tudo. 

O GP do Canadá é disputado naquele local desde 1978 e nunca haviam contado a Ecclestone que a razão de perder tanto tempo na fila era a necessidade de os controladores do tráfego deterem os carros para que as 100 mil pessoas, recém saídas do metrô, passassem sobre a ponte para chegar no circuito.

"É muita gente", comentou Ecclestone. "O metrô deve mesmo ser a melhor maneira de chegar no autódromo", falou. O espaço é bastante exíguo na Ilha de Notre Dame, por isso a não ser para o pessoal da F1 e outras categorias que fazem parte do programa não há estacionamento.

O traçado da pista acompanha praticamente o seu perímetro e no centro acha-se a raia olímpica, construída para os jogos olímpicos de 1976 e ainda hoje em uso. A parte de terra firme é reduzida, tanto que as salas das equipes são instaladas sobre balsas flutuantes na raia. Ecclestone lembra de Gilles Villeneuve, ao ver uma enorme bandeira, dá a entender. 

O arrojado piloto canadense, de Quebec, a província de Montreal, morreu em 1982, num acidente com sua Ferrari no GP da Bélgica, em Zolder, mas a exemplo do que fazem com Ayrton Senna, hoje ainda muitos fãs usam camisetas e bonés lembrando-o. 

Comento com Ecclestone como boa parte daquelas pessoas que acompanha de perto a F1 tem conhecimento mais aprofundado de vários de seus temas. Eu os escuto discutir no metrô, por vezes participo das conversas. Acrescenta cultura. Ecclestone me ouve atentamente.

Logo depois de passarmos sobre a ponte que liga a Ilha Santa Helena à Ilha de Notre Dame, com a multidão à nossa direita, separada dos carros por uma corda, há um controle de credenciais. Param os veículos e verificam se os passageiros têm o passe para acessar o circuito.

O responsável desejava que todos apresentassem a sua credencial e, claro, demorou alguns segundos. O motorista lhe diz que aquele senhor é Bernie Ecclestone. E é advertido pelo homem-forte da F1, com 82 anos em 2012. "Deixe-o, está fazendo o seu trabalho, vamos esperar", disse Ecclestone, sempre em voz baixa. 

Mesmo jovem era assim, dizem os que o conhecem há bom tempo. Ecclestone, líder da F1 desde 1971, não viajou ao Canadá este ano. Recupera-se de uma gripe mais séria, segundo disseram no paddock.

Fomos liberados no controle das credenciais. O superempresário cujo universo de atuação é apenas os grandes negócios, capazes de fazer dele uma das maiores fortunas da Grã-Bretanha, admira a natureza. Contou que na sua casa, em Londres, gosta de assistir a documentários sobre vida selvagem. 

Não disse nada, mas encontrei um ponto em comum com aquele homem respeitado por reis, rainhas, políticos e presidentes das maiores empresas por onde leva seu show e, invariavelmente, os convence a investir no seu negócio.

Para chegar no paddock atravessamos uma área de árvores, com piso de terra, paralela à extensão da raia olímpica, com seus 2,5 quilômetros. É possível ver marmotas e, se for bem cedo, raposas. Castores, só em locais mais retirados de Montreal.

Terminado o estreito caminho, estamos na cabeceira da raia. Agora, para chegar ao paddock, é preciso segui-la pelo outro lado, por cerca de 200 metros. A faixa de asfalto que há é para um veículo de cada vez apenas. Estamos à beira da água, limpa e tratada. Ninguém se aproxima de carro até aquele ponto, apenas Ecclestone. 

Quando o rapaz que controla o portão de tela do paddock viu a aproximação da Mercedes preta, indício de que o chefe estava chegando, o abriu de imediato. Os espaços são muito diminutos. Para-se, por exemplo, em frente a sala de imprensa, flutuante também. 

Agradeci a Ecclestone, Fabiana, Camila e ao motorista e abri a porta. Fui o primeiro. Aí me dei conta de que aquela multidão ao lado da Mercedes era de fotógrafos. Não foi possível contar o número de clicks que ouvi ao deixar o veículo, centenas, com certeza. 

Certamente me consideravam alguém com conexões próximas a Ecclestone. Quando me dei conta, situação um tanto constrangedora, aproveitei a proximidade da entrada da sala de imprensa e quase me joguei lá dentro. Acredite, senti-me protegido! 

Mas foi um ledo engano, porque vários daqueles fotógrafos que circulam pelo paddock quando me viam mais tarde diziam "hello" e eu, sem me ater, olhava e em seguida era fotografado. Eles tinham certeza de que registravam alguma autoridade, sabe Deus lá em que, e não poderiam perder a oportunidade. 

Deve ter sido engraçado presenciar a conversa entre eles na sala dos fotógrafos, quando fazem as identificações para enviar as fotos a seus estúdios ou agências. Estou convicto de que discutiram entre si para descobrir quem era aquele cidadão que aparecia nas fotos saindo do carro de Ecclestone, dentro do seletivo paddock do GP do Canadá, e ninguém tinha a menor ideia de quem era.

Devem ter dado risada quando um dos fotógrafos que me conhece lhes contou que se tratava apenas de um jornalista, como tantos outros que se deslocam com a F1 pelo mundo. 

Mas nem todos os problemas da fama de 10 segundos estavam solucionados. Pelo contrário. Eu entrei no paddock dentro de um carro e não passei pela catraca eletrônica obrigatória. Assim, na hora que fosse sair não haveria liberação, pois minha entrada não fora registrada.

Voltei, horas depois, ao cidadão que controla o portão de acesso ao paddock para solicitar que o abrisse para eu sair e depois entrar passando pela catraca. Obviamente ele me olhou de cima a baixo, desconfiado. Por qual motivo eu não saía pela catraca. Ele não me identificou como a pessoa que deixou a Mercedes de Ecclestone, nem poderia, tal a minha velocidade para me "proteger" na sala de imprensa.

Segurou a credencial, no meu peito, cara de mau, e mandou esperar. Pelo rádio falou com dois ou três prováveis superiores. Vai vendo a dor de cabeça que me deu aceitar a carona de Ecclestone. Enquanto ele aguardava a resposta, me perguntou como eu havia entrado no paddock sem passar pelo controle eletrônico. E expliquei que foi dentro daquela Mercedes para quem ele próprio abriu o portão.

Nesse momento o cidadão ficou ainda mais desconfiado. Não disse nada e se afastou, olhando-me com os olhos semicerrados. Todos os seus temores começavam a se confirmar, eu realmente representava uma ameaça à segurança. Voltou com outro homem, mais alto, forte, roupa preta, cara de poucos amigos. "Qual o seu problema?" perguntou-me em tom inquisidor e já ameaçador.

Com calma, expliquei que precisava apenas sair pelo portão para depois entrar pela catraca porque senão eu teria de me explicar aos seguranças a razão de a catraca não liberar a minha saída por não ter registrado a minha entrada. 

E agora falando num tom de voz mais agressivo pedi que resolvesse logo a questão porque eu entrei no paddock com o senhor Ecclestone e tinha de trabalhar. "Entendeu?". Às vezes a melhor defesa é o ataque. Os segundos a seguir responderiam se obtive êxito. O brutamontes pensou por uns instantes, manuseou a minha credencial no peito sem delicadeza alguma, mirou bem nos meus olhos e disse: "Venha comigo." Não estava claro para o quê.

Hu hu... abriu o portão. Pude sair, mas acompanhou bem de perto os meus passos a seguir. Há um painel na coluna metálica onde encostamos a credencial para a liberação da entrada. E quando o sinal eletrônico soa, autorizando, nesse painel surge uma foto que, obviamente, tem de ser a mesma do cidadão que está entrando e presente também na credencial.

Só depois de o responsável, agora já os responsáveis, conferirem que a foto da credencial era mesmo a que surgira no painel me deixaram seguir minha doce rotina perto daquelas tentativas todas de demonstrar inocência.

Ficou uma grande lição disso tudo. Poder conversar informalmente com Ecclestone é sempre uma bela oportunidade de conhecê-lo um pouco mais, mas da próxima vez que uma mão se apresentar para fora do carro, na fila de entrada para o Circuito Gilles Villeneuve, vou interpretar que estava mesmo chamando a marmota e não eu. Está dito!

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