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Do desespero ao olé, SP de 2018 exemplifica problemas do futebol brasileiro

Cueva comemora gol pela seleção peruana - Mariana Bazo/Reuters - Mariana Bazo/Reuters
Cueva comemora gol pela seleção peruana nas Eliminatórias
Imagem: Mariana Bazo/Reuters

Bruno Grossi

Do UOL, em São Paulo (SP)

25/01/2018 04h00

O relógio marca 38 minutos do segundo tempo. O time tenta manter o ritmo do restante da partida, marcada até então por 16 finalizações fracassadas contra o gol adversário. A torcida é tomada por desespero. Está pronta para gritos de lamentação e vaias. De repente, em cinco minutos, essa barreira anímica é quebrada. No placar, o 2 a 0 passa a ser visto com uma justiça óbvia. A revolta dá lugar a aplausos e gritos de olé. O jogo termina e a vitória do São Paulo sobre o Mirassol se apresenta como um retrato da montanha russa vivida pelo Tricolor em 25 dias de 2018.

O São Paulo, que nesta quinta-feira completa 88 anos de história, se viu com a corda do pescoço com apenas duas partidas na temporada. Perder do São Bento e empatar com o Novorizontino, sem marcar nenhum gol, foi um crime. As redes sociais ferveram e a imprensa tirou dezenas de conclusões sobre os meses que estão por vir. O próprio Tricolor se curvou ao princípio de pressão. Tornou flexível o que eram diretrizes imutáveis há poucos dias. Cedeu para ter uma paz breve, até que novas teorias sejam criadas e tratadas como verdades absolutas. Um cenário que se repete incansavelmente no futebol brasileiro e seu pacote de calendário apertado e falta de paciência.

Para entender esse sobe-desce encarado pelos são-paulinos é preciso retornar até o início de dezembro de 2017. Com o Campeonato Brasileiro perto da última rodada, a comissão técnica reuniu todos as áreas do departamento de futebol para traçar o planejamento de 2018. Exames médicos foram antecipados e a programação da pré-temporada foi desenhada. O clube já avisava que usaria um time reserva para alternar com os titulares no começo do Paulistão

Dias depois, o departamento de futebol sofreu uma mudança drástica. Vinicius Pinotti pediu demissão e o ídolo Raí foi escolhido para ser o novo diretor-executivo de futebol. A troca retardou alguns processos que já estavam em andamento, como a contratação do goleiro Jean, do Bahia. Era preciso deixar o ex-jogador inteirado sobre a realidade do CT da Barra Funda, alinhado com a comissão técnica. O primeiro ato foi fechar de vez com Jean. Em seguida, a missão foi reforçar a retaguarda do elenco. Ricardo Rocha foi chamado para ser coordenador de futebol e Diego Lugano, que acabara de se despedir como atleta do São Paulo, sinalizou que retornaria para integrar esse triunvirato na diretoria.

Ricardo Rocha e Raí são amigos há três décadas - Divulgação - Divulgação
Ricardo Rocha e Raí prometem uma retaguarda forte aos atletas
Imagem: Divulgação

Começa 2018 com otimismo pelo fim do Brasileirão e a presença de figuras históricas no clube. Mas nos primeiros dias de pré-temporada, uma avalanche traz os primeiros relatórios apocalípticos. As análises volúveis da torcida e da imprensa emergem. Christian Cueva não se reapresentou com os companheiros e ficou quase uma semana longe, gerando dor de cabeça até para que o defende com afinco. Hernanes foi obrigado a retornar ao Hebei China Fortune por cláusula já prevista em contrato, mas mantida em sigilo pelo São Paulo. Lucas Pratto pede para sair, bate o pé por melhor condições para o Tricolor nas negociações e acerta com o River Plate.

Craque e artilheiro do time se despediram de maneira abrupta. Natural o temor dos torcedores, ainda mais com os assombros de um ano repleto de contratações desastradas, vendas inesperadas, eliminações e rodadas na zona de rebaixamento. Façamos aqui um mea culpa jornalístico por todas as vezes em que embarcamos nessa arte volúvel de decretar destinos no futebol. "O São Paulo assim vai brigar para não cair de novo" era um palpite com sentido pelos recentes episódios, mas de onde tiramos essa certeza? O crédito do clube, de fato, é baixíssimo. Para alguns, negativo há tempos. Mas se um novo trabalho se inicia, por que não aguardar? 

Dias mais tarde - é importantíssimo lembrar que estamos contando dias nessa narrativa -, a diretoria responde. Em uma tacada só, anuncia Diego Souza, jogador cotado para disputar a Copa do Mundo, e Anderson Martins, zagueiro desejado por boa parte dos rivais. E as chances eram grandes de contar com o assediado Gustavo Scarpa. O espaço ficou aberto para mais decretos. "O São Paulo assim vai brigar para ser campeão de novo". Fazia sentido projetar. A torcida se permitiu a empolgação

Gustavo Scarpa em ação durante Botafogo x Fluminense - Thiago Ribeiro/AGIF - Thiago Ribeiro/AGIF
Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

Scarpa, entretanto, saiu do Fluminense pela Justiça, em cenário que o São Paulo sempre tratou com pessimismo. Para piorar, quem faturou o meia foi o rival Palmeiras. Provavelmente era impossível competir financeiramente nesse Choque-Rei e os torcedores nas redes sociais pareciam entender. "Ele nem é tudo isso". "Vamos lá, Raí vai dar um jeito". Internamente, o Tricolor seguia em sua calma, pregando contra loucuras no mercado e por tempo para ver um time tomado por jovens formados em Cotia ajudar a evitar gastos desnecessários.

Para saber quais garotos contribuiriam com a economia do Morumbi, era preciso dar chances reais de atuar. Dorival Júnior cumpriu o prometido e montou dois times, que foram treinados ao longo de 12 dias no CT da Barra Funda. Os reservas começariam e fariam o terceiro jogo do Paulistão. Os titulares fariam o primeiro duelo em casa e partiriam para o teste de fogo do clássico contra o Corinthians. "É isso, Estadual não vale nada". "Tem que usar o Paulistão para analisar os jovens mesmo". Mais decretos.

A estreia foi com derrota, falhas, pouco futebol. Os 2 a 0 para o São Bento geraram reclamações de que "a base não vem tão forte assim". O São Paulo resolveu brincar com uma expressão da moda nas redes sociais e viu um tiro certeiro na divulgação de seus bens ricochetear. "Os melhores de Cotia já saíram". "Essa geração não tem ninguém bom". Volúveis, esquecemos os títulos constantes da base tricolor, mas lembramos que em alguns dias os titulares estreariam no Morumbi.

Ainda assim haveria cautela da comissão técnica. Novos contratados e Cueva só ficariam à disposição na terceira rodada. Uma mudança na tabela do Paulistão, impulsionada pelo temor de uma nova impressão ruim, alterou os planos. O peruano e Diego Souza foram levados ao confronto com o Novorizontino, entraram no segundo tempo e deixaram o empate por 0 a 0 ainda mais amargo. "Precisa contratar já". "Diego Souza só não basta". E os primeiros apupos para decretar que "Dorival não é técnico para o São Paulo".

Do último sábado até quarta-feira, dia do jogo contra o Mirassol, as horas se arrastaram. "Não vão anunciar ninguém, sério?". "Fecha treino pra quê se vai perder?". Questionamentos e mais questionamentos até que o São Paulo se expõe: Cueva pediu para não viajar porque ficou insatisfeito com uma negativa da diretoria à oferta do Al Hilal, da Arábia Saudita. Raí fala que o atleta "não está comprometido com a agenda do clube". Cueva rebate, diz que pediu para enfrentar o Novorizontino e que se revoltou, na verdade, porque gostaria de ser titular contra o Mirassol.

"Tem que mandar embora esse peruano!". O São Paulo cansou de abrir mão de jogadores de qualidade para focar em profissionais corretos, mas que pouco entregavam tecnicamente. "Se ele quer sair, não tem o que fazer". Esse talvez seja o decreto mais embasado de todos. Afinal, o próprio São Paulo criou esse cenário nos últimos anos ao não entregar a seus funcionários um ambiente propício para se trabalhar, um projeto a se acreditar. Cueva acabou sendo um bode expiatório de uma mudança de diretriz que o Tricolor necessitava. É preciso se impor, provar austeridade, para não ser refém.

De volta à bola. "Se não ganhar do Mirassol, não ganha o clássico com o Corinthians e ainda precisa pegar o Madureira em jogo único na Copa do Brasil. Ferrou!". A partida começa com ritmo intenso do São Paulo. O time marca pressão, inverte posições, faz jogadas de ultrapassagens e chega no gol de Fernando Leal. A primeira chance faz a torcida cantar forte. A segunda, traz o grito de "uuh". A terceira, o de "aah". Os xingamentos começam para os céus, passam para um jogador, para o time, para o técnico que tira o melhor em campo. "Ele está louco? Petros vai ficar p... da vida!". Petros cansou, é começo de temporada e esse jogo não estava nos planos, lembram?

Sai o gol de Diego Souza. O primeiro dele pelo clube, o primeiro do São Paulo no ano. Todos os jogadores se unem para comemorar, titulares e reservas. O camisa 9 aponta para Dorival. O jogo recomeça e o Mirassol se lança pelo empate. Ainda há tensão. Após escanteio, a bola fica viva na área e o desespero é nitidamente audível pela transmissão da TV. Jucilei para a bola, Paulinho Boia ajeita, Marcos Guilherme dispara, Lucas Fernandes pensa e o mesmo Marcos manda para as redes. Nova festa. A bola rola de novo e o que se ouve? 

"Olé! Olé! Oooolé". Para quem chutou 18 vezes no gol, cruzou 31 vezes na área e teve 61% de posse de bola vencer por 2 a 0 e ser saudado pela torcida parece natural, não? Até os 38 minutos do segundo tempo, todos esses números pouco importavam. Shaylon não seria lembrado por dar bons passes, cobrar faltas perigosas e se apresentar na área. Seria o menino "com cara de condomínio" que perdeu dois gols claros. Dorival seria o "burro que tirou Petros" e não o "iluminado que colocou Lucas Fernandes", responsável por uma assistência. E o São Paulo não teria "nenhuma chance contra o Corinthians".