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Copa 2018

Copa sob tratamento intensivo: como é torcer morando em uma UTI?

Paulo Henrique Machado, 47, em seu leito na UTI do Centro de Ortopedia e Traumatologia do HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), em São Paulo (SP). Foto de 2014 - Carlos Cecconello/Folhapress
Paulo Henrique Machado, 47, em seu leito na UTI do Centro de Ortopedia e Traumatologia do HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), em São Paulo (SP). Foto de 2014 Imagem: Carlos Cecconello/Folhapress

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

03/04/2018 04h00

Desde a Copa de 1970 é assim: lá fora, gritos de gol, rojões, buzinaços, êxtase e choradeira. Das janelas para dentro, o ambiente asséptico e controlado da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do maior complexo hospitalar da América Latina.

Sua estrutura pode impedir a propagação de microrganismos danosos aos pacientes, mas é incapaz de barrar o clima das ruas. Paulo Henrique Machado, morador do Hospital das Clínicas de São Paulo há quase 50 anos, sabe disso. E gosta.

Ligado a um respirador artificial desde que tinha um ano de idade, ele acompanhou todas as Copas do Mundo de uma perspectiva bem diferente. O que, afinal, a UTI de um hospital pode ter em comum com uma arquibancada ou um bar repleto de torcedores? Ou mesmo com a intimidade do lar, onde temos a liberdade para cometer as mais variadas sandices quando entregues às emoções de um jogo?

Quase tudo o que Paulo já viu, ouviu e sentiu no que diz respeito a futebol, o fez em um cenário oposto a todos esses outros normalmente associados ao esporte. Um cenário de paredes frias e equipamentos complexos, de silêncio e atenção total aos sinais vitais.

Derrota em 82 terminou em soro

Paulo Henrique Machado, em 2004, com 37 anos na época - Gustavo Roth/Folha Imagem - Gustavo Roth/Folha Imagem
Imagem: Gustavo Roth/Folha Imagem

“Quando olho para trás, vejo um filme. Tudo aquilo que vivi. Os médicos que torceram comigo durante as Copas e em outros campeonatos. Lembro deles ao nosso lado, no quarto”, conta Paulo. Ele não tem dúvida da importância afetiva do futebol em sua vida.

A poliomielite fez o pulmão de Paulo parar de funcionar. Sua mãe morreu pouco tempo depois de seu nascimento, e seu pai, acreditando na expectativa de vida de apenas dez anos prognosticada para o filho, decidiu deixá-lo no hospital.

Paulo acabou criado de fato pelos vários médicos que passaram pela UTI ao longo dos 49 anos em que lá está. E foi em grande parte por meio deles que soube da existência de um negócio chamado futebol.

“O Dr. Giovani, que era são-paulino, foi como um pai para mim. Ele quem me deu a primeira camisa do São Paulo”, lembra Paulo. “Mas eu ainda não entendia direito o que era futebol. Até que teve a Copa de 78, na Argentina, e vi o pessoal torcendo, aquela gritaria.”  

Depois deste primeiro contato, ainda meio confuso, com a competição, veio a primeira Copa na qual Paulo realmente torceu. Sobre 1982, na Espanha, as lembranças já são claras.

“Eu morava com mais pacientes em uma sala grande aqui do hospital. Lembro de estarmos assistindo ao jogo contra a Itália (derrota do Brasil por 3 a 2) e um dos médicos bater a cabeça. Ele deu um pulo num lance em que o Brasil quase empatou.”

O baque pela eliminação no Sarriá foi tamanho que os médicos precisaram alimentar Paulo com soro depois da partida. Contrariado, ele não queria comer. “Era uma seleção clássica, e eu era só um garoto”, diz Paulo.

TV em preto e branco e vara para mudar canais

Paulo gosta de jogar xadrez. Foto de novembro de 2004. - Gustavo Roth/Folha Imagem - Gustavo Roth/Folha Imagem
Paulo gosta de jogar xadrez. Foto de novembro de 2004.
Imagem: Gustavo Roth/Folha Imagem

Naquela época, Paulo chegou a dividir a sala da UTI com mais seis pacientes. Eram quatro mulheres e três homens para apenas duas televisões pequenas e modestas. Paulo diz que normalmente as mulheres não queriam assistir futebol, o que causava lá seus atritos. “A gente ia aumentando os volumes das TVs até ficar uma poluição sonora danada e o médico mandar a gente abaixar”, lembra.

Hoje Paulo tem uma TV de 40 polegadas e definição HD à disposição. Cogita trocá-la por uma ultra HD, quem sabe ainda para esta próxima Copa. Um luxo justo para quem, além de gostar de assistir futebol, é um cinéfilo inveterado.

Desde que conseguiu o direito de receber pelo INSS, nos anos 90, Paulo tem à disposição recursos para investir nesse tipo de bem pessoal. Até então, dependia da boa vontade alheia. Sua primeira TV colorida foi doada por um médico do hospital. Antes, tudo o que tinha era uma TV de 14 polegadas em preto e branco. Era o seu “xodó”.

A não ser que quisesse assistir a uma partida com 44 jogadores em campo, Paulo muitas vezes precisava colocar chumaços de algodão nas antenas. Ele lembra que a inauguração da antena da TV Globo na Avenida Paulista, em 1983, aliviou bastante seus problemas com a qualidade das transmissões. Se a partida fosse em outro canal, porém, persistiam os fantasmas e chuviscos.

Para mudar de canal, Paulo tinha que pedir para alguém fazê-lo. Ou usar uma vara de madeira para apertar as teclas. Ele garante que, mesmo nos loucos anos 80, nunca presenciou excessos nas comemorações pelas vitórias do Brasil. Se naquela época era comum até mesmo encontrar pessoas fumando dentro de hospitais, na UTI isso não acontecia. “A gente tinha medo até de acender vela aqui dentro porque, naquela época, a tubulação de oxigênio era bem mais exposta. Se alguém fumasse, poderia explodir tudo”, explica.

Amiga morreu durante partida em 94

Paulo Henrique Machado, em 2004 - Gustavo Roth/Folha Imagem - Gustavo Roth/Folha Imagem
Paulo Henrique Machado, em 2004
Imagem: Gustavo Roth/Folha Imagem

Infelizmente, poucos integrantes da turma original de Paulo puderam presenciar os avanços tecnológicos. Só Eliana Zagui continua ao lado dele no quarto até hoje. As memórias dos amigos que se foram borram as lembranças futebolísticas, embaralham-se com elas. É o caso, por exemplo, de 1994, quando Paulo viu o Brasil ganhar uma Copa pela primeira vez.

“Eu estava assistindo a um jogo ao lado da Luciana, amiga nossa aqui do quarto. De repente, eu olho para ela e a vejo bem debilitada, percebo que o nariz dela está sangrando. Chamam a médica, que a manda para a UTI. À noite, ela vem nos comunicar que infelizmente a Luciana não aguentou”, lembra Paulo. “Senti a presença da solidão assim que tiraram ela do meu lado.”

O pulmão artificial que mantém Paulo vivo é hoje muito mais sofisticado e fácil de ser transportado. Tem sua própria bateria interna e não requer cilindros de oxigênio, pois usa aquele que é retirado automaticamente do ar ambiente. Isso permitiu a Paulo realizar um sonho em 2013: ir ao Morumbi assistir a uma partida do São Paulo.

“Nunca imaginei que teria essa oportunidade. Ver um jogo ao vivo é algo totalmente diferente. Escutar milhares de vozes gritando. Quando a torcida comemorou um gol, pensei ´mas que loucura é essa?”, conta Paulo.

Ele assistiu a esta partida, contra o Criciúma, ao lado então presidente são-paulino Carlos Miguel Aidar. Nunca conseguiu, porém, encontrar os ídolos Kaká e Rogério Ceni. Também não assistiu a nenhuma partida da Copa realizada no Brasil. Paulo acredita que ainda há um grande receio, por parte de organizadores de eventos, em garantir sua segurança.

“Eu queria ter ido ao show do Depeche Mode no Allianz Parque ontem. Tentei falar com a organização várias vezes, até que me disseram ‘Paulo, se você morre lá, o que a gente faz?”, ele conta.

Vazio pós-Copa

Paulo revela que é pré-candidato a deputado estadual pelo partido Podemos. Espera que, uma vez eleito, consiga melhorar as condições de vida para pessoas em situações semelhantes a dele.

Além de acompanhar o clube do Morumbi, Paulo gosta muito dos campeonatos europeus e é fã do Barcelona. No dia em que falou com o UOL Esporte, estava esperançoso sobre a possibilidade de o São Paulo finalmente eliminar o Corinthians de uma competição (do Paulista, o que não aconteceu). Ele elogia o trabalho de Tite, mas acha que o técnico ainda não chegou ao nível de Telê Santana.

Entre os jogadores em atividade, Paulo gostaria de receber a visita de Neymar no hospital. Entre os jogadores do passado, ele optaria pela de Zico.

A sala da UTI onde Paulo mora será mais uma vez decorada com enfeites alusivos à Copa do Mundo. Ele só lamenta que, agora, é mais difícil assistir aos jogos na companhia dos médicos. Regras internas menos flexíveis, e uma carga maior de trabalho impedem, na opinião de Paulo, que pacientes e médicos vivenciem uma Copa como em outros tempos.

De qualquer modo, ele já conhece o sentimento que o invadirá no dia 16 de julho. “É sempre estranho quando acaba uma Copa. Bate aquele vazio.”

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