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"Submissa" e "ignorante": os significados ocultos na carta da Dona Lúcia

Parreira lê carta de suposta "torcedora" chamada "Dona Lúcia" após derrora para Alemanha no Mineirão - Reprodução YouTube
Parreira lê carta de suposta "torcedora" chamada "Dona Lúcia" após derrora para Alemanha no Mineirão Imagem: Reprodução YouTube

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

04/05/2018 04h00

Quase quatro anos depois da derrota por 7 a 1 para a Alemanha, uma passagem do traumático episódio persiste na memória do brasileiro: a leitura da carta da “Dona Lúcia” pelo então coordenador técnico Carlos Alberto Parreira.

Em entrevista recente ao UOL Esporte, o próprio Parreira disse que se arrepende de ter lido a carta. A identidade da suposta torcedora permanece um mistério até hoje. Nem seu sobrenome foi divulgado pela CBF.

O conteúdo da carta, porém, está disponível na internet para quem quiser ler. E suscita uma questão: o que mais há no discurso da "Dona Lúcia" além de bajulação ao então técnico Felipão? 

O UOL Esporte enviou a carta para três especialistas em análise semiótica e pediu que eles destrinchassem a mensagem da misteriosa, porém famosa, torcedora. Semiótica é o estudo dos signos em todas as suas representações. No caso, não os dos horóscopos: estamos falando de qualquer elemento que tenha algum significado para o ser humano.

Carta surgiu para evitar “mergulho no desastre”

Um exemplo: Lucia Santaella, professora da PUC-SP e uma das maiores divulgadoras da semiótica no Brasil, destaca o papel de “deus ex-machina” (“deus vindo da máquina”) exercido por “Dona Lúcia”. 

“A grande narrativa da Copa de 2014 foi uma narrativa de fracassos, ou seja, em que os personagens (os jogadores) não cumpriram suas funções narrativas de heróis. Quando isso acontece, a culpa pela falha acaba quase sempre por recair sobre a figura do 'chefe'. No caso, o treinador, o grande responsável pelo fracasso na superação dos obstáculos”, diz Santaella.

A especialista explica que justamente em um momento como este – de fracasso – “é preciso surgir algo que seja capaz de salvar a narrativa de seu mergulho no desastre”. Esse algo seria justamente o tal “deus ex-machina”.

“Quando o roteiro se perde em linhas desencontradas, sem chance de encontrar um caminho que leve a história a um fim, surge um personagem, um objeto ou uma habilidade que não fazia parte da história, mas, no último minuto, aparece para salvá-la. Esse é justamente o papel desempenhado pela carta de Lúcia na grande narrativa da Copa de 2014”, explica Sataella.

Para ela, o fato de a autora sequer ter um sobrenome reforça essa ideia. “Isso torna a carta anônima. Ou seja, não preenche outra função a não ser a do ´deus ex-machina` emergindo do nada para salvar a narrativa de seu mergulho final no irremediável desastre”.

Dona Lúcia tem postura submissa

José Carlos Marques destaca outros aspectos da carta. Ele é líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação sobre Esporte e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas). “Um aspecto recorrente é a postura submissa da carta, que coloca o técnico Felipão sempre num plano superior e inalcançável”, diz ele.

Como exemplo, Marques destaca trechos como "acabo de ver a coletiva dada pelo senhor" e "mais uma vez provou que é um grande homem".

“Chama a atenção ainda as duas afirmações de que a autora não entende muito de futebol”, diz Marques. "Dizem que as mulheres não entendem de futebol" e "receba um abraço de uma brasileira anônima, que não conhece muito de futebol", são os trechos que evidenciariam o suposto desconhecimento.

“Pode ser que se queira fazer aqui uma ilação com o fato de Felipão estar recebendo críticas pesadas da imprensa, que a rigor conheceria muito de futebol, ao contrário de Dona Lúcia”, analisa o especialista. “Ela representaria a grande maioria do povo brasileiro, mais humana e sensível, pronta para aceitar os esforços da seleção brasileira, que não perdeu por `vontade própria.”

Marques termina sua análise levantando uma suspeita (que provavelmente é a de muita gente). “Não dá para cravar com exatidão, mas a carta dá muitos sinais de ser ´fake`, ou seja, fabricada pelo próprio estafe da CBF para ilibar a responsabilidade da comissão técnica, e a da própria entidade, após o 7 a 1.”

Mulher como “ignorante” no assunto

A aparente diferença de hierarquia entre Felipão e “Dona Lúcia” chama a atenção também de Paolo Demuru, doutor em semiótica pela Universidade de Bolonha (Itália) e pela USP. “Desde as primeiras linhas, emerge uma hierarquia entre Felipão (o homem) e Dona Lúcia (a mulher), na qual a segunda ocupa a posição de subalterna. Lúcia trata Felipão por ´senhor` e ´professor`, enquanto ela se descreve como uma ´brasileira anônima`, que não conhece muito de futebol, mas que o admira muito”, analisa Demuru.

Ele acredita que este trecho, junto com outros de teor parecido, reforçam a imagem do “líder masculino”, do “homem forte e competente”. A mulher, no caso, seria o contrário: sensível, ignorante e por isso "incapaz de analisar fria e detalhadamente a derrota”.

“Dizem que as mulheres não entendem de futebol, porém entendemos muito de seres humanos. Portanto, envio um abraço carregado de carinho para o senhor e toda sua equipe”. Para Demuru, este comentário de “Dona Lúcia” é marcante porque, bem quando parece que ela irá contestar Felipão, acaba reforçando o estereótipo difuso sobre mulheres e futebol.

“O que as mulheres entendem é de gente e carinho. A bola, como a política, é assunto de `macho’. Mais do que isso: o que se diz nas entrelinhas é que o homem é o dono da razão. À mulher cabe apenas o afeto”, diz o especialista sobre o discurso presente na carta.

Tal afeto, analisa ainda Demuru, serviria apenas para consolar o homem. Afinal, ela diz: “Fique com Deus, Felipão, e lembre-se que o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer”.

O que dizem Parreira e o assessor da CBF

Sobre as análises dos acadêmicos, e as suposições de que a carta seria falsa, o ex-assessor de imprensa da CBF, Rodrigo Paiva, disse ao UOL Esporte que "a gente tende a acreditar que aqueles que pensam diferente de nós ou estão errados, ou não existem."

"Aquela foi uma entre milhares de cartas que chegaram à seleção. E era uma carta diferente, porque as pessoas pensam diferente", diz Paiva. "Era uma senhora que via o que aconteceu de uma forma diferente de outros tipos de torcedores. Acho muito triste que, no mundo de hoje, onde pregamos todo dia o respeito às diferenças, surja gente que possa levantar bandeiras retrógradas. É de um mau gosto infinito, não sei quais qualidades essas pessoas têm para questionar algo que alguém escreveu."

Também perguntado sobre o assunto, Parreira afirmou, em nova conversa com o UOL Esporte, que considera o assunto esgotado. Reafirmou que hoje vê a leitura da carta como desnecessária. "Não vejo mais importância neste assunto. Não sei quem é a dona Lúcia, não conheço, e confio na autenticidade da carta", diz o ex-treinador e ex-coordenador técnico da seleção brasileira.

Relembre a carta:

Acabo de ver a coletiva dada pelo senhor. Mais uma vez vi diante da câmera um homem íntegro e corajoso falando à nação. Fiquei muito triste ao constatar que o ser humano, muitas vezes, é de uma crueldade sem limites. Tive esse sentimento ao ouvir um jornalista lhe perguntar sobre uma possível dívida do senhor com a nação brasileira. E o senhor mesmo sofrendo mais do que qualquer um ali, com sua humildade peculiar, deu uma resposta verdadeira e coerente. Parabéns.

Mais uma vez provou que é um grande homem. Um ser humano ímpar. Eu, como os demais brasileiros, gostaria de estar comemorando outro resultado. Porém, sei que ninguém perde por vontade própria. Meu e-mail é para agradecer os momentos de grande felicidade que o senhor e sua equipe proporcionaram a esta nação. Foram vários.

Parabéns pelo seu trabalho e boa sorte nos próximos jogos. E tenho a certeza que o senhor comandará com sua inquestionável competência. Dizem que as mulheres não entendem de futebol, porém entendemos de seres humanos. Portanto, envio um abraço carregado de carinho para o senhor e toda a sua equipe.

Fique com Deus e lembre-se que o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer. Quero dizer com essa citação que vai passar e tudo ficará bem. Saiba que, como eu, há várias pessoas que estão apoiando a nossa Seleção, que tem o privilégio de ser comandada pelo senhor.

Receba um abraço de uma brasileira anônima, que não conhece muito de futebol, mas que o admira muito e sabe que você fez o melhor.

Lúcia

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