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Copa 2018

Guerra, envenenamento e boicote: Copa da Rússia começa sob tensão política

Vladimir Putin, presidente da Rússia, discursa em congresso da Fifa - Cao Can/Xinhua
Vladimir Putin, presidente da Rússia, discursa em congresso da Fifa Imagem: Cao Can/Xinhua

Luiza Oliveira

Do UOL, em Moscou

14/06/2018 04h00

Na década de 80 o esporte mundial vivia em dúvida: será que a próxima edição das Olimpíadas contaria com os melhores atletas? As dúvidas eram plausíveis pelo alto nível de tensão política que o mundo vivia. Em tempos de Guerra Fria, os Estados Unidos não mandavam atletas para eventos na União Soviética. E vice-versa. Daí os boicotes às Olimpíadas de 1980, em Moscou, e Los Angeles, em 1984 (e de Cuba a Seul, em 1988).

O conflito entre as potências do capitalismo e do comunismo acabou há quase 30 anos. E o futebol, após passar incólume por esse conflito, agora vive a repercussão das brigas políticas em seu principal torneio. Nesta quinta-feira, a bola finalmente vai rolar para Rússia e Arábia Saudita, às 12h (de Brasília), para o pontapé inicial, em Moscou, da Copa do Mundo mais tensa das últimas décadas, em um cenário geopolítico marcado por guerras civis, boicotes diplomáticos e até o envenenamento de um espião.

O centro da questão é a guerra Rússia x Ocidente, que teve um acirramento de ânimos nos últimos anos, muito por conta da postura bélica adotada por Vladimir Putin. O comportamento pouco ortodoxo de outro líder mundial, Donald Trump, dos EUA, também não acalma ânimos – e o fato de os Estados Unidos nem mesmo terem se classificado para a Copa não muda em nada os problemas.

“O nível de tensão entre as potências é consideravelmente alto se comparado aos anos que sucederam ao fim da Guerra Fria. O que agrega certa polemicidade à atual Copa é o fato de o país sede ser um dos principais focos da presente tensão. As recentes animosidades entre os EUA e outras potências ocidentais tornam o jogo geopolítico ainda mais complexo”, analisa Vicente Giaccaglini Ferraro, mestre em Ciência Política pela Higher School of Economics de Moscou e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP.

Boicotes diplomáticos

A tensão está tão alta que países como Reino Unido, Islândia e Austrália anunciaram um boicote aos jogos. Não chegaram ao extremo que já foi vivido em Olimpíadas, em que os atletas foram proibidos de participar, mas se negaram a enviar seus chefes de estado para o Mundial. A Inglaterra foi quem liderou o grupo.

A crise foi detonada pelo envenenamento do ex-expião russo Sergei Skripal e sua filha. Ingleses acusam o governo russo de usar armas químicas em um ataque contra Skripal em março deste ano no interior da Inglaterra, o que seria uma ameaça à segurança na Europa. Como represália, expulsou 23 diplomatas russos do país, decisão aderida em bloco por Estados Unidos e mais de 20 países. A Rússia se considera vítima. Diz que o ataque foi forjado pelo Reino Unido e faz parte de uma ‘campanha russofóbica’.

Envenenamento - Ben STANSALL/AFP - Ben STANSALL/AFP
Imagem: Ben STANSALL/AFP

Na última semana, a Austrália aderiu ao boicote. O país acusa a Rússia de estar envolvida no acidente do avião da Malaysia Airlines, que causou a morte de 38 cidadãos do país em 2014. O avião teria sido abatido por um míssil russo durante conflito no leste da Ucrânia. Putin diz não ter nada a ver com isso.

“Os boicotes diplomáticos representam um protesto do governo de determinados países e potências ocidentais contra o curso da política externa russa nos últimos anos, em especial no que concerne às crises ucranianas e síria e à recente polêmica do caso Skripal”, analisa Vicente Ferraro.

Duas guerras

Os países ocidentais também se unem contra Putin por causa do conflito da Crimeia. A Rússia anexou a península em 2014 após a Ucrânia se aliar à União Europeia e, desde então, o conflito armado deixou mais de dez mil mortos. A Rússia é acusada de violações graves dos direitos humanos, como prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados, maus-tratos e tortura. Em represália, países ocidentais adotaram sanções que a Rússia considera hostis.

A guerra na Síria é outra peça neste quebra-cabeças. Os EUA, capitaneando o bloco ocidental, são contra o regime de Bashar Al Assad (apesar de oficialmente negarem a intenção de tentar derrubá-lo). A Rússia apoia o atual governante. O auge do conflito (entre russos e ocidentais) aconteceu quando os EUA, com ajuda de franceses e britânicos, bombardearam alvos do governo sírio como resposta ao suposto ataque químico ocorrido na região de Ghouta Oriental. A Rússia, mais uma vez, diz que é mentira. E alega que rebeldes contrários a Al Assad simularam um ataque para incriminar Assad e gerar retaliação americana. Agora, nas vésperas da Copa, a Rússia acusa os EUA de preparar um novo ataque contra a Síria.

Assad e Putin - Mikhail KLIMENTYEV/SPUTNIK/AFP - Mikhail KLIMENTYEV/SPUTNIK/AFP
Imagem: Mikhail KLIMENTYEV/SPUTNIK/AFP

“Nossa relação com a Rússia é pior agora do que nunca. E isso inclui a Guerra Fria”, chegou a dizer o presidente Trump em um tuíte. Do outro lado, a Rússia acusa o inimigo. “Eles já fizeram uma provocação, bombardeando este país contra quaisquer normas do direito internacional (e até mesmo contra suas leis internas) e sem quaisquer provas sólidas do ataque químico pelo governo sírio”, afirma o jornalista político russo Boris Martynov.

Comparações com Hitler

Diante desse cenário, autoridades disparam contra a Rússia. Recentemente, deputados de quinze países pediram aos membros da União Europeia que não participem do Mundial para não fortalecer “o caminho autoritário e antiocidental” de Putin. “Bombardeios indiscriminados a escolas, hospitais e áreas civis na Síria, invasão militar da Ucrânia pela força, pirataria sistemática, campanhas de desinformação, interferência em eleições, tentativas de desestabilizar a nossa sociedade e debilitar e dividir a UE… Tudo isto transforma a Rússia em um anfitrião pouco apropriado para o Mundial”, disseram os deputados.

Desafetos de Putin chegaram a compará-lo a Adolf Hitler. O secretário de Estado do Reino Unido para os Assuntos Externos, Boris Johnson, disse que o Mundial serviria para abafar um “regime corrupto” e será usado por Putin como um instrumento de propaganda da mesma forma que Hitler fez com as Olimpíadas de 1936 em Berlim.

“Essa é a consequência de realizar uma Copa do Mundo na Rússia, que é um país que tem uma relação bastante tensa com o Ocidente a partir do momento em que os países que antes estavam sob a esfera de influência da Rússia, países do leste europeu e da antiga União Soviética, entraram na União Europeia e na Otan nos anos 90 e na década de 2000. O Putin assumiu em 2000 e representa a não aceitação por parte da Rússia dessa perda de influência para o Ocidente. É de fato uma Copa do Mundo diferente porque ocorre num país que tem muitas tensões com o Ocidente”, analisa o jornalista e analista internacional Lourival Sant’Anna.

Rússia ri de acusações

Quem pensa que a Rússia acusa o golpe diante de tantas acusações se engana. O governo se mantém alheio ao burburinho, nega todas as imputações e se vê vítima de uma perseguição do Ocidente. Chega a desdenhar do boicote à Copa.

"Considero que nossos colegas só punem a si mesmos. Não tem nenhum sentido. Estamos todos. Se alguém não quiser vir, é assunto seu", disse o vice-primeiro-ministro da Rússia e presidente do comitê organizador da Copa do Mundo de 2018, Arkady Dvorkovich.

Lourival Sant’Anna conta que os russos chegaram a dar risada quando os boicotes foram anunciados e que eles precisam manter uma postura de soberba perante os rivais. “A Rússia tem uma reação defensiva com a ideia de que esses países querem impor seus desejos de forma colonialista sobre a Rússia e que a Rússia reage de forma soberana, não se curva a essas tentativas de interferência. Esse é o discurso do governo russo e é bem aceito pela população. As reações são só prova da soberania, altivez, da atitude independente da Rússia em relação a esses países”, afirma Lourival.

Vai ter Copa, sim

Mesmo com todos os conflitos, os torcedores podem ficar tranquilos que nada disso deve afetar a Copa do Mundo. Os países deixaram claro que o boicote diplomático não se relaciona com o futebol e que suas federações de futebol são independentes. Em 2014, a Rússia também já viveu essa experiência. O país vivia o auge da crise da Crimeia quando sediou as Olimpíadas de Inverno em Sochi e o lado esportivo não foi afetado pelos boicotes diplomáticos.

Sochi-2014 - Alexei Nikolsky/Presidential Press Service/AP - Alexei Nikolsky/Presidential Press Service/AP
Imagem: Alexei Nikolsky/Presidential Press Service/AP

Além disso, a Rússia promete receber muito bem todos os estrangeiros e não vai poupar esforços para que o evento seja um sucesso, já que tem muitos interesses. “Essa Copa do Mundo vai ser uma das mais ostentosas exatamente para mostrar outra Rússia para os estrangeiros. A Rússia quer vencer um certo preconceito que tem no Ocidente em relação a ela. A Rússia se modernizou, não é aquela de crise, bagunça, conflitos, da ideia de máfia, comunismo, espião, dessa construção do inimigo que foi construído no Ocidente”, analisa Vicente.

Quadro bem diferente da década de 70 e 80, quando Olimpíadas eram marcadas por boicotes. Em 1976, em Montreal, alguns países africanos boicotaram os Jogos por causa da inclusão da Nova Zelândia (cuja seleção de rúgbi tinha feito uma excursão à África do Sul em tempos de Apartheid) na competição. Em 1980, o presidente Jimmy Carter liderou o boicote capitalista em Moscou – além de EUA, Alemanha Ocidental, Japão e Canadá não mandaram atletas para a União Soviética.

A resposta veio quatro anos depois: 15 países do bloco soviético se recusaram a participar do evento em Los Angeles. Em 1988, foi a vez de Cuba: Fidel Castro proibiu seus atletas de viajar para a Coreia do Sul para competir em Seul.

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