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Copa 2018

Escuro e pegajoso: como é ver a Copa em um cinema pornô no centro de SP

"Inferninho" no centro de São Paulo recebeu entusiastas da pornografia mesmo enquanto a seleção jogava - Daniel Lisboa/UOL
"Inferninho" no centro de São Paulo recebeu entusiastas da pornografia mesmo enquanto a seleção jogava Imagem: Daniel Lisboa/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

02/07/2018 21h00

É segunda de manhã em São Paulo e as pessoas andam apressadas pelo centro, tem jogo da seleção brasileira. Elas assistirão ao duelo contra o México no escritório, na casa de amigos, no bar, na padaria, com o (a) amante no motel. Mas eu não, eu caminho entre vuvuzelas e camisas amarelas rumo a um lugar onde nunca, jamais, imaginei entrar. Nem durante um apocalipse nuclear, muito menos durante a Copa do Mundo.

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Minha razoável experiência em inferninhos não me preparou para conhecer esta que é, possivelmente, a definição mais perfeita de inferninho: um breu imundo onde as pessoas vão para ver pornografia pesada e eventualmente transarem, incluindo aí todo o vasto leque de interações possíveis entre uma alternativa e outra.

Os cinemas pornográficos do centro paulistano são assim, e estive em um deles durante a vitória da seleção brasileira. Como esses estabelecimentos normalmente funcionam 24 horas por dia, imaginei quem estaria ali, trocando um mata-mata de Copa do Mundo por um filminho pseudocaseiro da Brasileirinhas.

Vergonha

Pelos motivos já colocados, não era exatamente uma tarefa para a qual acordei empolgado, mas pouco antes das 11 horas lá estava eu na avenida Ipiranga. Tão tranquilo quanto se estivesse prestes a tratar o canal dentário sem anestesia, me aproximei do Cine República, um dos mais “tradicionais” do gênero, aguardando pela hora certa de comprar o ingresso.

Hora certa que só existia na minha cabeça, lógico. Eu estava era enrolando para entrar, do mesmo jeito que se enrola antes de pular em água gelada, com a diferença de que, neste caso, eu não sabia o que esperar. O receio, é bom dizer, não era de que alguém me forçasse, digamos, a interagir, mas simplesmente o de me envolver em alguma situação desagradável por não conhecer as regras da casa.

Sim, porque consta que os frequentadores deste tipo de estabelecimento têm todo um gestual para indicarem aquilo que querem ou não fazer. Uma reportagem do UOL contou, por exemplo, que cruzar as pernas significa estar aberto ao sexo. Já sentar na cadeira ao lado daquela que dá para o corredor indica que você pelo menos aceita companhia.

Mas, claro, não eram só os possíveis mal-entendidos que me preocupavam. Não tenho misofobia (medo de germes) nem obsessão por higiene. Convenhamos, porém, tudo tem limite. Por mais profissionais que sejam os faxineiros de tais cinemas, só um incêndio promoveria a assepsia em um lugar que recebe 24 horas ao dia pessoas dispostas a se masturbarem. No mínimo.

Uma famosa rede de lanchonetes tem uma loja bem ao lado do Cine República, e eu fico ali na porta assistindo ao início do jogo do Brasil com os funcionários. Tem muita gente ainda passando pela rua e sim, eu estou com vergonha de entrar no cinema. Sem contar que imagino o que pensarão aqueles profissionais do fast-food ao me verem abandonando a peleja para entrar no inferninho ao lado.

Mudança de planos

Mas trabalho é trabalho, e aproveito um instante com menos transeuntes para finalmente comprar meu ticket para o desconhecido. Só quero que a bilheteira cobre meu ingresso o mais rápido possível, afinal ainda estou ali exposto, mas eis que a primeira inconveniência é bem diferente do esperado: o local não aceita cartão. Eu não tenho dinheiro. Os bancos estão fechados.

Enquanto as pessoas se amontoam em bares do centro para acompanhar o jogo, eu sou apenas um cara vagando em busca de uma maneira de pagar pela minha entrada em um cinema pornô. Já estou quase aceitando minha derrota quando lembro que alguns metros depois do Cine República há um outro cinema.

“Promoção: de 16 por 12 reais”, está anunciado na fachada deste cinema. Você pode ficar quanto tempo quiser lá dentro depois de entrar. O local está quase na esquina das avenidas Ipiranga e São João. Do outro lado da rua, pessoas asseadas e alegres assistem ao jogo no famoso Bar Brahma. Eu entro no cinema e pergunto se aceitam cartão. A bilheteira saca a maquininha, coloco a senha e fico doze reais mais pobre. 

Passo por uma roleta que parece estar ali desde a época áurea dos cinemas de rua do centro, lá pelos anos 50. O ambiente é tão escuro e deprimente quanto eu esperava, mas algo está fora do script: um grupo de quatro pessoas assiste à partida em uma velha TV de 24 polegadas colocada em cima de uma geladeira.

Essa geladeira, quase vazia, está em um saguão de entrada, de frente para a escada que leva à sala de cinema. Fico feliz com isso: poderei assistir ao jogo e não precisarei passar uma hora e meia vendo pornô na companhia de não sei lá quem.

Um horrível incidente

Me junto a quatro pessoas, três homens e uma mulher que aparentemente trabalham no local. Uma outra TV no saguão passa o mesmo filme que é exibido lá em cima. Um casal transa loucamente em um sofá. É pornografia pesada, mas Copa é Copa: não posso desviar minha atenção da equipe de Tite.

Decido que é hora de conhecer a sala do cinema lá pelos 30 minutos do primeiro tempo. Subo cuidadosamente os dois lances de escada. Está mais escuro do que eu esperava, e eu enxergo mal no escuro. Acho que tenho algum tipo de cegueira noturna.

A situação complica mais quando chego à sala: aquele lugar é realmente escuro, não consigo ver absolutamente nada mesmo com a luz da tela. Na verdade, consigo sim: uma brasa de cigarro acende em meio à escuridão. Isso mesmo: tinha alguém fumando no cinema. Isso sim é um lugar liberal.

Aceito que não entrarei na sala. Desço as escadas com o mesmo cuidado, mas o pior acontece. Aqui, caro leitor, devo avisar que talvez o que você lerá a seguir irá ferir sua susceptibilidade.

Um breve, mísero mesmo, momento de distração, e me apoio no corrimão da escada. Sei que encostei naquilo, naquele tipo de secreção, mas quero negar para mim mesmo, não está acontecendo.

Só que está, e por um momento me sinto como aqueles personagens de filmes de zumbis que, mordidos, tomam uma medida extrema e amputam o membro infectado pela dentada.

O incidente me obriga a uma visita não planejada ao banheiro do estabelecimento, mas pelo menos descubro que tem sabão. Lavo minha mão com o afinco de um cirurgião prestes a operar o homem mais importante da Terra, e volto a acompanhar a partida junto com os desconhecidos no saguão.

Não tem Copa no escurinho

Caso você ainda esteja em dúvida, esse tipo de cinema é frequentado quase que exclusivamente por homens. E sim, eles chegam no meio da partida. O movimento, como a bilheteira já havia me alertado, é fraco quando o Brasil joga, mas conto pelo menos doze pessoas pagando ingresso.

São homens, a maioria mais velhos, que entram em silêncio, quase sempre de cabeça baixa, a postura corporal sugerindo que eles não se sentem orgulhosos por estarem ali. Alguns somem no escuro da sala, outros ficam poucos minutos, talvez desapontados com a programação.

Minha segunda ida (sim, fiz esse esforço por você, leitor) à sala é logo depois de o Brasil marcar o primeiro gol. No saguão, meus colegas de TV gritam e comemoram, mas e o pessoal lá de cima? Paro na porta e, a não ser pelos gemidos do filme, realmente ninguém parece saber que Neymar acaba de colocar a bola para dentro.

Passo quase o jogo todo escorado no corrimão da escada, porém tomando cuidado para não entrar em contato direto com o metal pegajoso. Eu não deveria ter ido com a minha camiseta favorita.

Para mim, a prova de que ali está um lugar onde todos estão pouco se lixando para o que você faz é que ninguém pergunta o que estou fazendo ali. Por que, afinal, um idiota entraria basicamente só para assistir ao jogo? Seria eu um reprimido sem coragem para dar o próximo passo? Acredito que meus colegas de jogo, com quem não troco uma palavra, pensaram algo assim. Eles conhecem o “meu tipo”.

Firmino marca o segundo gol do Brasil. Mas, êxtase mesmo, só na TV ao lado.

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