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Geração belga não é fruto do acaso e, sim, de trabalho da década passada

Emmanuel Dunand/AFP
Imagem: Emmanuel Dunand/AFP

Julio Gomes

Colaboração para o UOL, em Moscou (Rússia)

04/07/2018 08h48

O hábito virou se referir à atual seleção belga como uma “ótima geração”. A expressão é usada até mesmo de forma jocosa pelos que diminuem a qualidade dos jogadores que formam a próxima adversária do Brasil na Copa do Mundo - em Kazan, sexta, às 15h (Brasília). Na Europa, muitos chamam de “geração de ouro do futebol belga”.

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Mas será que esta é apenas uma “boa fornada”? Será que falar em “geração” não significa insinuar que a atual seleção belga é fruto da sorte? De uma feliz coincidência de nascimentos de bons jogadores mais ou menos ao mesmo tempo?

O fato é que a geração belga tem pouco a ver com sorte. E muito a ver com um projeto iniciado na década passada e que revolucionou o futebol de base do país - por tabela, ajudou a Alemanha, por exemplo, a fazer o mesmo e, em um país maior, mais rico e com futebol de primeira linha, chegar ao título de 2014 com a “fornada” dela. O projeto belga continua, por sinal. E a tendência é que novas fornadas apareçam nos próximos anos.

“É claro que há jogadores que você não produz só como resultado de um sistema, gente com o talento de Hazard ou De Bruyne. Mas, quando você olhar para o número de jogadores belgas em alto nível e em grandes ligas, percebe que não estamos falando de coincidências”, conta Bob Browayes, um dos mentores do projeto.

“Nossos times sub-21, sub-17 e sub-16 têm ótimos resultados. Nós temos o sistema e temos a visão, não é apenas uma geração de ouro”. A base de todo o processo está em desenvolver jogadores, sem a preocupação com resultados nas categorias inferiores.

O "turning point" foi a Eurocopa do ano 2000, quando a Bélgica foi anfitriã junto com a Holanda e não passou da primeira fase. Viria a Copa de 2002 e uma eliminação polêmica para o Brasil, nas oitavas de final. Mas, à essa altura, um homem chamado Michael Sablon resolveu mudar o destino do futebol belga. Membro de comissões técnicas que haviam ido a Mundiais, no passado, ele era diretor técnico da Federação naquela época.

"Nossos times estavam desabando, nossas seleções eram cada vez piores", contou Sablon em uma entrevista ao inglês "Daily Mail". O “projeto-2000” começou a ser desenhado. E, na prática, passou a funcionar a todo vapor em 2006.

"Nós juntamos um grupo de pessoas na mesa e fizemos um guia. Era um livro, de fato, com planejamento e diretrizes para três grupos: clubes, seleções nacionais e os treinadores nas escolas. Adotamos a mesma visão para os três grupos e fomos de porta em porta, a todos os clubes, pedir para que seus times sub-18 jogassem da mesma maneira. Percebemos que, nos clubes, o que importava era ganhar jogos nas categorias de base e isso não ajuda nada, nada, nada a formação de jogadores. Pedimos para que todos jogassem no 4-3-3, com pontas, três meio-campistas e linha de quatro atrás. Demorou cinco, seis anos para fazer com que os clubes aceitassem a ideia. No começo foi terrível, não foi nada fácil. Mas aí eles começaram a ver que aquilo funcionava, que os jogadores estavam ficando melhores."

O intercâmbio foi fundamental, a Bélgica foi buscar informações e conhecimento nas "fábricas" da Holanda e da França. O sistema tático único veio acompanhado de muitos métodos de trabalho - e foi se transformando nos anos seguintes. Tudo isso auditado por uma empresa belga chamada Double Pass, responsável por observar se os clubes estavam seguindo as diretrizes de forma correta.

Por “diretrizes” entenda-se “todos os detalhes possíveis e imagináveis”. Desde tamanho de vestiários e qualidade de equipamentos até capacitação dos treinadores de todas as categorias, do fraldinha ao profissional. O grande foco é fazer com que, em cada clube e, claro, nas seleções, os jogadores estejam submetidos a uma filosofia de trabalho - e não sejam reféns de resultados, troca-troca de técnicos, influência de agentes, etc.

O sistema belga também tem um olhar para jogadores de “amadurecimento tardio”, para que o talento não seja desprezado prematuramente e seja perdido pelo caminho. 

“Somos um país pequeno, não temos margem para desperdício. (O goleiro) Courtois, por exemplo, não esteve nos nossos times sub-15, 16 ou 17, mas seguimos monitorando”, conta Bob Browayes.

O sistema leva em conta também que a Bélgica se transformou em um país multicultural, com a chegada de muitos imigrantes, e usa o futebol como eixo de socialização e integração. Conforme o projeto avançou, clubes de grandes ligas europeias foram buscar talento na base belga. Estes jogadores passaram a atuar no mais alto nível e a ficarem ainda melhores - o círculo virtuoso continua a todo vapor.

Em 2006, a Double Pass chegou à Bundesliga. Desde então, todos os clubes alemães seguem as mesmas diretrizes de treinamento, o mesmo conceito de trabalho, com uma filosofia de jogo definida e posta em prática em todas as idades na categoria de base. A Premier League passou a adotar o mesmo sistema há cinco anos. No Brasil, a Double Pass engatinha, com acordos recentes com o Flamengo, Inter e o Atlético-PR.

Segundo o site Transfermarkt, referência em valores do mercado do futebol mundial, a atual seleção da Bélgica está avaliada em R$ 3,4 bilhões, é a sexta do ranking. A França tem a seleção mais “valiosa” da Copa, e o Brasil tem a segunda (R$ 4,4 bi).

Ainda antes da abertura da janela de transferências, a tendência neste momento é que 24 jogadores belgas estejam na próxima Premier League, o campeonato mais caro do mundo - 11 deles estão na atual seleção, e o valor de mercado destes 24 soma R$ 2,8 bi. O Brasil, por enquanto, tem 18 atletas que devem iniciar a próxima Premier, 7 deles na seleção atual de Tite (R$ 2,1 bi).

Imaginar 20 anos atrás que a Bélgica teria jogadores com valor de mercado parecido ao dos brasileiros seria uma loucura.

Atualmente, o projeto belga está tentando introduzir mais futsal no desenvolvimento de crianças. “É um ambiente fantástico de aprendizado e queremos integrar futsal e futebol nas seleções”, explica Browayes.

O grande desafio belga não é nem seguir formando e criando bons jogadores e, sim, como fazer a transição - sucesso e fracasso recentes de seleções como França, Espanha e, agora, a Alemanha, mostram como não é fácil construir a abertura de caminho para os mais jovens.

“A geração anterior à atual era uma geração perdida, então o caminho estava livre para eles. Vai ser um desafio encontrar o momento certo de fazer a transição para as próximas. Nunca pensamos que chegaríamos à terceira posição no ranking da Fifa, o foco era apenas o desenvolvimento de jogadores. Vamos seguir trabalhando para melhorar nosso sistema de formação e cada vez mais conquistar coisas maiores”, avisa Browayes.

Falta agora à seleção dourada conseguir, de fato, ganhar alguma coisa. E a grande oportunidade está no jogo contra o Brasil, em Kazan.

“Temos uma grande mentalidade, amadurecemos, estamos juntos há muito tempo e temos esse grande jogo sexta-feira. Todos queremos mostrar o que podemos fazer contra o Brasil, é um grande desafio para nós”, disse o volante Fellaini.

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