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Copa 2018

Na Rússia, o legado da Copa é aprender a torcer como os latinos

Este torcedor do Brasil na arquibancada do estádio em Samara representou bem o Canarinho Pistola - Reprodução/Twitter
Este torcedor do Brasil na arquibancada do estádio em Samara representou bem o Canarinho Pistola Imagem: Reprodução/Twitter

Felipe Pereira

Do UOL, em São Petersburgo (Rússia)

15/07/2018 04h00

O símbolo da Rússia é uma águia de duas cabeças. Seus contornos acompanham as mudanças do país. Eram rígidos e geométricos nos tempos de proximidade com Prússia e Áustria. Hoje são mais sinuosos, acompanhando as curvas da geopolítica. Seguindo esta regra, no último mês o símbolo do país deveria ser a águia da Portela fantasiada de Beija-Flor.

A verdade é que a Copa colocou os russos em cheque. O ditado nacional “se você está rindo é porque é estúpido” nunca fez tão pouco sentido quanto nos dias seguintes às vitórias de sua seleção. Os sorrisos fatalmente se encontravam com as olheiras de quem comemorava até a madrugada.

O contágio por este espírito festivo durante a Copa pegou os anfitriões de surpresa. O fato é que eles não sabiam o que aconteceria dentro de suas fronteiras. Em um mês, a Rússia recebeu um curso intensivo de como torcer. E, justiça seja feita, os melhores professores eram latinos e africanos.

Desavisados, os russos foram surpreendidos por uma invasão de egípcios vestidos de faraó e mexicanos orgulhosos de seus sombreiros. Eram tantos uruguaios em Moscou que parecia não ter ficado ninguém tomando conta do país.

Torcedores de Brasil e do Egito atendem a pedido de foto de russa - Felipe Pereira - Felipe Pereira
Torcedores de Brasil e do Egito atendem a pedido de foto de russa
Imagem: Felipe Pereira

Representantes destas duas escolas de torcer, Panamá e Tunísia tiveram gente chorando durante a execução do hino quando se encontraram em Saransk, a menor cidade-sede de todas. Além de pequeno, o lugar tem o que na Rússia chama de estilo soviético.

As pessoas lembram a caricatura russa que o boxeador Ivan Drago representou no filme Rocky IV. Não sorriem, são desconfiados e avessos à intimidade. Foi assim até a Colômbia jogar na cidade. Daquele dia em diante, Google Tradutor foi a língua mais falada por lá.

Além de um elefante branco em forma de estádio, o Mundial deixou na cidade os dias mais divertidos de trabalho que uma guarda de trânsito já teve na vida. Ela disse que jamais pensou que veria tanta alegria coletiva. Afirmou que é assim que imagina o carnaval no Rio de Janeiro.

Torcedora do Panamá chora durante execução do hino - UOL - UOL
Torcedora do Panamá chora durante execução do hino
Imagem: UOL

Gringo sambando

Uma situação mostra bem a mudança de mentalidade dos russos: na primeira segunda-feira de Copa, a rua que dá acesso a Fan Fest de São Petersburgo estava aberta para os carros. Mas eram tantos torcedores que o asfalto virou calçada. Ainda assim, motoristas insistiam em passar.

No dia seguinte, russos adotaram a tática “já que não pode vencê-los, junte-se a eles”. Os moradores da cidade saiam do trabalho direto para a Fan Fest, que teve lotação esgotada. Agora, eram os torcedores que não conseguiam sair do lugar por causa de tantos pedidos de fotos.

Mas a proximidade também expunha as deficiências dos donos da casa. O hábito de torcer é tão estranho a eles que nem canto de torcida os russos tinham. Limitavam-se a repetir RÚ-SSI-A. Lembravam aquele estrangeiro que vai no samba e dança desengonçado. Mas não importava. Não era concurso de dança e o importante era se divertir.

Voa canarinho voa

E eis que o Canário Pistola não apareceu na recepção ao ônibus da seleção em Samara, nas oitavas. A torcida sentiu sua falta. Logo surgiu a teoria de que ele aprontou demais, quase foi preso e tomou cartão vermelho dos ambientes Fifa. Não foi isso, mas lenda ficou.

O nascimento de uma série de teorias da conspiração envolvendo o pássaro mal-humorado era sinal de que os torcedores se importavam com ele. Um rapaz explicava que via no Canarinho Pistola a materialização do futebol raiz. Principalmente o sentimento do brasileiro puto por causa do 7 a 1.

O discurso é beligerante, mas o modo de agir da torcida era o oposto. O mantra da Copa foi procurar onde estava a festa. O comportamento conquistou os russos - que a essa altura já haviam completado a metamorfose.

O acordo contava com a cláusula providencial de não exigir fidelidade. Os donos da casa estavam na vibe de “sou de todo mundo e todo mundo é meu também”. Saiam com gente de todos os países, de preferência os latino-americanos.

Vida que segue

O clichê seria dizer que a Rússia nunca mais será a mesma depois de 30 dias mágicos de futebol. Mas a frase é tão lugar comum quanto falsa. Pesquisa publicada no Moscou Times mostrou que depois da eliminação da Rússia o interesse pelo futebol voltou a níveis normais.

O boom da torcida ocorre porque a Copa do Mundo não é algo normal. Nem por isso as pessoas tratam o evento como a melhor coisa da vida. Elas viveram intensamente porque sabem que ninguém é eterno. A filosifia dos latinos é que a vida precisa ser aproveitada e foi isso que os russos captaram. Agora, cada um vai para o seu canto.

Os russos que conviveram com brasileiros, argentinos e mexicanos têm um novo parâmetro quando o assunto é festa. Será melhor acreditarem que podem conseguir sozinhos. Pior que esperar a felicidade num futuro distante, é achar que ela mora no passado. Festas melhores virão para todo mundo. Se o hexa vier no Qatar, melhor ainda.

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