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Islândia

Como é viver na Islândia, o país 'mais amigável do mundo' para imigrantes

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Imagem: Getty Images

22/06/2018 08h39

"O país está enlouquecido. Há um fervor nunca antes visto", diz o argentino Arturo Santoni. A nação à beira da loucura a que se refere é a Islândia, que estreou em uma Copa do Mundo no último sábado. Sua estreia foi com a Argentina – e o jogo terminou empatado, com a estrela argentina Leonel Messi perdendo um gol de pênalti.

"Há um orgulho até exagerado em jogar contra nós, que somos um dos 'times grandes'", aponta um argentino que se mudou para a Islândia em 2010. "Mas jamais me fizeram me sentir mal – não passa pela cabeça deles brigar com um imigrante por uma questão pequena."

A afirmação não surpreende: a Islândia, que volta ao campo hoje na Rússia, desta vez contra a Nigéria, é considerada o país mais amigável do mundo para os imigrantes, segundo o Índice de Aceitação da Gallup, uma empresa de consultoria que ouviu opiniões em 139 nações durante 2016 e 2017.

Nessa ilha perdida no Mar do Norte – a 700 quilômetros de seu vizinho mais próximo –, famosa por suas paisagens únicas de vulcões e gêiseres, e em questões de bem-estar social, a chegada exponencial de imigrantes é um fenômeno recente.

"Isso aqui é um pequeno povoado", repetem os habitantes da capital Reykjavík.

Quase dois terços da população nacional se concentram nesse centro urbano, onde há edifícios coloridos com só dois ou três andares e onde a neve reina durante seis meses do ano. Durante o verão, o sol não se põe.

São cerca de 350 mil habitantes, não mais que isso.

Desses 350 mil, 10,6% são estrangeiros: se se juntassem, não chegam a lotar o estádio Spartak, na Rússia, onde Islândia e Argentina disputaram sua primeira partida.

Mas há duas décadas, eram apenas 2% da população total – o que revela um crescimento de 430%.

Sociedade homogênea

Quase 100% da energia consumida na Islândia é proveniente de fontes renováveis - G. Svanberg/BBC - G. Svanberg/BBC
Quase 100% da energia consumida na Islândia é proveniente de fontes renováveis
Imagem: G. Svanberg/BBC

No mês passado, ao divulgar as estatísticas de 2017, a revista Icelandic Review disse ter sido "o ano em que recebemos mais imigrantes que em nenhum outro em toda nossa história".

O radiologista Fernando Bazán é um recém-chegado. Foi à Islândia com uma oferta de trabalho tentadora, para um cargo de especialista muito procurado no hospital da capital.

"Me atraiu o caráter igualitário do país – queria ver como era e experimentar a vida nessa sociedade que, de fora, parece um pouco idílica", diz esse peruano de 36 anos.

Em uma ilha remota, a chegada incessante de imigrantes como ele – e outros quase 15 mil em 2017, segundo dados oficiais, 50% a mais que em 2016 – traz consigo uma série de desafios.

Em primeiro lugar, ela coloca em xeque as crenças e pressupostos em uma sociedade praticamente – em parte, pelo isolamento – homogênea.

Para se ter uma ideia: em 1996, 95% da população era 100% islandesa, segundo Statistics Iceland, o instituto oficial de registros.

A homogeneidade e a capacidade de gestão – muito mais simples em um país pequeno – são com frequência assinaladas como fatores por trás do "êxito" da Islândia.

Da eficácia de suas políticas de segurança social, seus méritos em relação ao meio ambiente (100% da energia vem de fontes renováveis), seus avanços em igualdade de gênero (em janeiro, o país virou o primeiro do mundo a obrigar empresas a demonstrarem que pagam de modo igualitário homens e mulheres), suas melhorias em matéria de saúde pública (um programa antitabaco conseguiu reduzir o consumo entre jovens com resultados extraordinários). E a lista continua.

Esses resultados são, paradoxalmente, os que atraem milhares de estrangeiros a tentar a sorte nessa sociedade que, historicamente, quis preservar sua uniformidade.

Uma economia forte também teve papel fundamental.

"Na última metade do século, a Islândia experimentou um crescimento econômico substancial. Passou de um dos países mais pobres da Europa a um dos mais ricos mediante uma série de reformas de livre mercado combinadas com um alto nível de intervencionismo governamental", segundo o Instituto de Políticas Migratórias.

Como consequência, o mercado de trabalho islandês precisa de mais mão de obra.

Segundo a confederação empresarial do país, se o PIB mantiver o ritmo atual de crescimento anual – de entre 2,5 e 3%, pelas projeções mais conservadoras – a Islândia precisa preencher cerca de 3 mil novas vagas.

Podem ser até mais. E com um índice de desemprego de apenas 2%, essa força de trabalho só pode vir de fora.

"A maior parte do fluxo (das pessoas de fora que foram trabalhar no país) é uma migração econômica. A estabilidade que a Islândia oferece é um critério que pesa muito. A maioria de nós diz que viemos para cá para trabalhar e poder guardar dinheiro", diz Èric Lluent, que emigrou de Barcelona por causa da crise econômica espanhola e é autor de dois livros sobre a história da Islândia.

A maior comunidade de imigrantes na Islândia é a dos poloneses – 38,3% do total de imigrantes –, seguidos pelos lituanos (5,2%) e filipinos (4,5%).

"Quando chegamos, encontramos trabalho em questão de dias", diz Tomasz Chaprek, de 36 anos, polonês responsável por um projeto de integração para seus compatriotas na ilha. "Era 2007, pré-crise."

A crise a que ele se refere aconteceu em 2008, quando três dos principais bancos comerciais islandeses faliram e a economia nacional entrou em colapso, levando à queda de emprego e, como consequência, a uma queda do fluxo migratório.

Mas essa má fase não durou muito. Em três anos, o PIB voltou a crescer e, com isso, a chegada de novos residentes estrangeiros em busca de emprego.

Assim como cresceu a onda de turistas, que triplicaram entre 2010 e 2017 – curiosamente depois de a espetacular erupção do vulcão Eyjafjallajökull colocar a Islândia no mapa de destinos a serem descobertos.

"Há um 'boom'. Hotéis estão sendo construídos e a chegada de visitantes ajuda indiretamente os estrangeiros que moram aqui", opina Sussette Terrazas, de 28 anos, que viveu na Bolívia e no Peru antes de parar na Islândia em 2006.

"Embora isso também esteja mudando a cara da cidade. Os aluguéis disparam e isso satura a capacidade da ilha em muitos sentidos. E nem todos veem isso com bons olhos", observa ela, que trabalha como guia de turismo e tradutora.

País para criar filhos

Para muitos imigrantes, mudar-se para a Islândia não tem a ver só com emprego. Eles dizem também que é "o melhor lugar para se ter filhos".

"Para nós, a escolha de mudar para cá teve a ver com o fato de que aqui é o lugar ideal para formar uma família", diz Azahara Bejarano, catalã que mora na Islândia há quase três anos.

"Como mãe, me sinto cuidada", afirma Izabela Sobczak, polonesa de 35 anos, mãe de uma menina de três.

A educação primária, que é pública, mostra resultados.

"Há muitos lugares para levar as crianças e ajuda para mães solteiras. As escolinhas são de alto nível e na escola se preocupam em me perguntar o que preciso sendo mãe estrangeira", diz Sobczak.

Quanto à segurança, esse país que não tem Exército há décadas tem uma das taxas de homicídio mais baixas do mundo, de apenas 1,8 por ano. Em 2017, registrou o menor índice de roubos desde 1999. Mantém-se consistentemente em primeiro lugar no Índice Global de Paz, da organização de pesquisa global Instituto para Economia e Paz, que categoriza os países por seus níveis de criminalidade, entre outros indicadores.

"Não dá para precificar a possibilidade de que as crianças estejam na rua até as 22h sem que fiquemos preocupados, além das vantagens de ter a natureza próxima", aponta Tomasz, seu marido, que tem licença paternidade de três meses (e, segundo as estatísticas, 90% dos homens fazem uso do benefício).

E o idioma?

Mas o bem-estar familiar se choca com umas das realidades mais duras para quem emigra para a Islândia: a necessidade e dificuldade de aprender islandês.

O idioma – com quatro declinações, infinitas irregularidades, dez letras adicionais em seu alfabeto e uma pronúncia complicada para o ouvido pouco treinado – é central para a cultura e tradições do país.

Em outras palavras, é indispensável para quem quiser se sentir parte da sociedade, embora a maioria dos locais fale inglês na escola e seja perfeitamente bilíngue.

"A sociedade tem um medo visceral de perder sua cultura, precisamente porque está estruturada em torno do idioma e o islandês é uma língua minoritária que é falada só aqui. Dá para ver a cara de pânico deles quando escutam outro idioma sendo falado na rua ou no bar", diz Chaprek.

Neste ano, o número de estudantes de islandês bateu recordes, segundo dados do Ministério da Educação, com mais de 200 mil registrados no mundo todo em programas gratuitos via internet elaborados pelo governo. E o número de inscritos em cursos de idioma na universidade local é o dobro que há dez anos, segundo o periódico Reykjavík Grapevine.

E mesmo assim...

"Eu estudei, mas é quase impossível", diz Herianty Novita Seiler, que emigrou da Indonésia há 18 anos e casou-se com um islandês. Às vezes ela não consegue ajudar os filhos com sua lição de casa. "Isso me frustra bastante."

Takk!, Gjörðu svo vel, Mér þykir það leitt: obrigada, de nada, desculpe. Até aí, pode até é fácil.

"Mas é extremamente difícil progredir depois dos primeiros níveis", agrega Wiola Ujazdowska, artista visual polonesa. "E se você não fala, você não pode nem sonhar com alguns trabalhos."

Os imigrantes recém-chegados se queixam de que, embora haja muito emprego, os oferecidos a estrangeiros sem islandês avançado são pouco qualificados – na indústria de pesca, por exemplo, que é chave para a economia, e mal-remunerados.

"Os recursos para facilitar o processo de adaptação a estrangeiros são escassos e ruins. Em um país que tem um boom imigratório, isso irremediavelmente cria guetos", opina o peruano Bazán.

"Mesmo se eu conseguir decodificar todas essas sutilezas culturais, nunca vou estar no Livro dos Islandeses", ri Macieg Chmielewsky, um polonês-americano que deixou os Estados Unidos após a eleição de Donald Trump.

O livro que ele menciona, Íslendigabók, é uma base de dados que contém a genealogia de 95% dos islandeses, com uma árvore genealógica que começa 1.200 anos atrás. E "estar no livro" é de algum modo uma validação social na ilha, explicam várias pessoas.

"Se é o país mais amigável? Bom, na superfície são legais. Mas levantam paredes invisíveis com tudo aquilo que for diferente deles", diz Novita Seiler.

Mudanças

Os estrangeiros viraram um fator de pressão para que o governo islandês modifique suas políticas migratórias e as leis de naturalização, que são as mesmas desde 1950.

No passado, por exemplo, os estrangeiros que adquiriam a cidadania deviam "islandizar" seu nome – modificando o sobrenome com o sufixo son para homens edóttir para mulheres –, mas esse requisito já foi abolido pelo Parlamento.

"Não só os imigrantes têm que se adaptar, a sociedade também tem. Temos que nos encontrar na metade do caminho", diz Amal Tamimi, com o punho cerrado, mas olhar sereno.

Tamimi é palestina, chegou de Jerusalém em 1995 – "durante um dos piores invernos na Islândia, que já é dizer muito nesse país de frio"– escapando da violência doméstica e com cinco filhos no colo.

Foi a primeira mulher de origem estrangeira a conseguir um assento no Parlamento, em 2011. "O islandês médio é amável e muito correto, mas há um grupo pequeno e eloquente com um sentimento anti-imigrante e contra uma política de portas abertas."

Talvez a principal reclamação contra o governo atualmente, por parte dos setores mais progressistas, seja sua posição frente à crise de refugiados.

O país aceitou neste ano 55 estrangeiros refugiados – a maioria da Síria, segundo Tamimi –, e planeja expandir o número para 100, segundo o Icelandic Monitor.

Para muitos, a próspera Islândia poderia acolher muitos mais.

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