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Médico do caso Serginho relembra desespero e diz ter consciência tranquila

Paulo Forte trabalha como médico do São Caetano desde 1999 - Rubens Cavallari/Folhapress
Paulo Forte trabalha como médico do São Caetano desde 1999 Imagem: Rubens Cavallari/Folhapress

Fábio Aleixo

Do UOL, em São Caetano do Sul

24/10/2014 06h00

Dez anos se passaram desde 27 de outubro de 2004, quando o zagueiro Serginho, do São Caetano morreu em decorrência de uma parada cardiorrespiratória em pleno gramado do Morumbi, em jogo contra o São Paulo. O longo tempo, porém, ainda não foi suficiente para diminuir o drama de Paulo Donizetti Forte, o Dr. Paulo.  Médico do Azulão desde 1999, ele carrega mesmo que de forma involuntária um fardo pesado. Não é incomum que se refiram a ele como “o médico do caso Serginho” ou sempre que o encontrem perguntem disso. Os questionamentos sobre o episódio são feitos até mesmo para seus dois filhos. O que aconteceu em campo segue bem vivo em sua memória.

“Ele (Serginho) não se mexia, eu fiquei desesperado, o que era natural. Mesmo com experiência, fiquei muito preocupado. Mas sempre tive paz para colocar a cabeça no travesseiro e dormir, pois tenho minha consciência tranquila”, disse em entrevista exclusiva ao UOL Esporte.

Desde a morte de Serginho, Dr. Paulo nunca gostou de se aprofundar no tema em conversas com os jornalistas. Tímido e reservado, sempre evitou dar entrevistas para relembrar aquele 27 de outubro que trata como o “o dia de trabalho mais difícil” de sua carreira. Porém, ele abriu uma exceção e, na última terça-feira, atendeu a reportagem.

Dr. Paulo recebeu a reportagem em seu apartamento em São Caetano do Sul. Acompanhado dos filhos Marina e Paulo, com quem vive, abriu o coração para relembrar os episódios daquele fatídico dia e expor sua visão sobre o caso. O encontro teve quase três horas de duração e foi marcado por tensão e muita emoção.

Ao longo de toda a conversa, Dr. Paulo ressaltou diversas vezes que Serginho não tinha nenhum problema que o impedisse de jogar futebol e que a leve arritmia detectada em um exame no Incor (Instituto do Coração) feito em fevereiro de 2004 (oito meses antes de sua morte) não apresentava riscos. Serginho necessitava apenas evitar substâncias  com altas doses de cafeína, como energéticos.

O médico também mostrou à reportagem vários documentos, entre eles uma nota emitida pelo corpo médico do Incor (Instituto do Coração) apontando que a morte do atleta se tratou de uma fatalidade. Este e outros laudos estarão em um livro que será publicado até o fim do próximo ano. Até mesmo por isso, não quis que fossem registradas imagens dos papéis.

Dr.Paulo ainda desmentiu veementemente informações que surgiram na época e são faladas até hoje de que o jogador teria 1% de chances de morrer se seguisse jogando.

“Isso não existe, nem nunca existiu”, disse o médico.

Apesar de ainda se mostrar triste pelo que aconteceu com o amigo Serginho, Dr. Paulo demonstrou muita serenidade durante a entrevista e afirmou ter a consciência totalmente tranquila. Ele, inclusive, afirmou que se realmente tivesse alguma culpa já haveria deixado o futebol. Seu relacionamento com Elaine Cristina, viúva de Serginho, segue inabalado.

“É uma pessoa maravilhosa que sempre me apoiou, e acreditou muito em tudo que conversamos e passamos de informações”, contou.

Hoje, aos 59 anos, Dr. Paulo, que é ortopedista, segue como médico do São Caetano (clube ao qual chegou em 1999, vindo América de São José do Rio Preto) e trabalha na CBF como coordenador médico da seleção olímpica e de todas as categorias de base.

UOL Esporte: Voltando no tempo. O que você ainda lembra daquele dia 27 de outubro?
Paulo Forte: Foi tudo muito rápido, a coisa toda aconteceu muita rapidamente. Jamais me esquecerei dos detalhes desde a hora que saí do banco de reservas até chegar ao atendimento e depois o que aconteceu até o Hospital São Luis. Foi uma noite inesquecível para mim, talvez o dia de trabalho mais difícil da minha carreira. Não tem como esquecer, eu me lembro perfeitamente de tudo.

UOL Esporte: Quando você viu ele estirado no gramado você imaginou que o pior pudesse ter acontecido?
Paulo Forte: Na verdade, só percebi que era grave quando vi jogadores em volta, meio desesperados, sem ação. Aí eu percebi que era um caso grave. Eu achei inicialmente que ele tinha batido a cabeça e tido um desmaio. Ele não se mexia, eu fiquei desesperado, o que era natural. Mesmo como médico, que vivo situação de socorrer pessoas com parada cardiorrespiratória e trauma craniano grave, fiquei desesperado. Mesmo com experiência, fiquei muito preocupado. E aí dei início a todo o procedimento.

UOL Esporte: Até hoje aquela morte do Serginho tira o seu sono? Você chegou a ter pesadelos com aquilo que aconteceu? Consegue ver normalmente as imagens daquela noite fatídica?
Paulo Forte: Fiquei muito triste com a perda do Serginho, principalmente como amigo e por ele ser uma pessoa maravilhosa, um atleta exemplar, pai de família, muito presente. Mas o mais importante foi a minha consciência, sempre tive a consciência tranquila e isso me dava paz para colocar a cabeça no travesseiro e dormir. Mas sempre que toco no assunto isso me emociona muito.

UOL Esporte:  Como é ter o rótulo de médico do caso Serginho?
Paulo Forte: Eu não carrego este rótulo. Nunca pensei nisso. Se você não tivesse falado, eu não teria pensado. No meu íntimo, não carrego isso. Sempre recebi elogios da classe médica por minha conduta e ética neste período. Fui elogiado por minha lisura.

UOL Esporte: Depois daquele episódio, você se deparou com pessoas revoltadas com você? Passou algum apuro?
Paulo Forte: Eu jamais sofri qualquer tipo de agressão verbal ou física. Andei por tudo que é campo por aí e nunca me deparei com isso. As pessoas sempre foram solidárias, nunca teve ninguém que me ofendeu.

UOL Esporte: Pelo que você diz, então sua imagem não ficou arranhada depois daquilo.
Paulo Forte: Nunca pensei nisso, nunca me incomodou. Sempre segui minha vida e profissão, sempre trabalhei com a  consciência tranquila. Sempore bato nesta tecla. O maior órgão julgador da pessoa de bem é a consciência. Sempre fiz o melhor para a saúde dos atletas. Sempre tive uma imagem boa e sempre fui muito respeitado dentro da profissão.

Paulo Forte e Sanches - Almeida Rocha/Folha Imagem - Almeida Rocha/Folha Imagem
Paulo Forte recebe o carinho de José Sanches na sequência da partida, uma semana depois
Imagem: Almeida Rocha/Folha Imagem

UOL Esporte: O Serginho tinha mesmo condições de seguir jogando futebol?
Paulo Forte: O Serginho nunca teve nenhum problema que o impedisse de jogar. Ele nunca teve nenhuma queixa cardiológica. O Serginho era um atleta extremamente forte, competitivo. Eu nunca me esqueço que em 2004 (abril) fomos disputar um jogo da Libertadores contra o The Strongest, em La Paz, a 4 mil metros de altura. Ele foi considerado o atleta mais apto. Até um funcionário do Incor participou dos exames elogiou isso. O Serginho estava um leão. Não sentiu nada com relação a altitude. Ele sempre foi muito saudável, um cara muito forte, nunca teve problema nenhum, a não ser uma pequena arritmia.

UOL Esporte: Você foi suspenso por quatro anos pelo STJD e depois teve a pena reduzida e não sofreu nenhuma sanação na área criminal. Mas falando sobre a decisão de ficar fora do futebol, acredita que foi pego como um bode expiatório no caso?
Paulo Forte:  Eu fiquei afastado apenas do trabalho de campo por 1 ano em meio e não quatro como havia sido determinado pelo STJD. Neste tempo, apenas podia frequentar os clube e os treinos. Mas não tenho dúvida nenhuma que foi uma injustiça irreparável aquilo que aconteceu.

UOL Esporte: Você foi afetado na sua vida pessoal? Teve perdas financeiras importantes?
Paulo Forte:  Eu me surpreendi muito com o reconhecimento das pessoas. Fiquei sensibilizado com solidariedade que recebi. Foi uma experiência que me fez crescer como pessoa e profissional. Até hoje rezo para Deus para deixar Serginho em um bom lugar.

UOL Esporte:  Você  ainda  comenta com seus filhos, com seus familiares sobre aquela noite? Faz algum tipo de desabafo?
Paulo Forte: Às vezes comentamos o caso, até porque minha família está estudando Medicina. Sempre discutimos alguns tipos de problemas médicos existentes em campos de futebol e este assunto acaba aparecendo, mas apenas converso. Mas meus filhos têm muito orgulho de mim, estão sempre enaltecendo meu trabalho dentro do futebol.

Paulo Forte e Rivaldo - Divulgação/AD São Caetano - Divulgação/AD São Caetano
Paulo Forte posa com Rivaldo durante passagem do jogador pelo clube
Imagem: Divulgação/AD São Caetano

UOL Esporte:  Você já havia falado uma vez que pretendia escrever um livro sobre o caso. Esta ideia segue em pé?
Paulo Forte: Ele está sendo escrito, tenho muitos documentos sobre o caso e estou juntando outros. É coisa para mais de 200 páginas. Estamos em processo de produção e a ideia é que esteja pronto até o fim de 2015 para ser publicado.

UOL Esporte:Hoje em dia, você tem contato com a família do Serginho?
Paulo Forte: Converso esporadicamente com a Elaine (viúva do jogador). É uma pessoa maravilhosa que sempre me apoiou, e acreditou muito em tudo que conversamos e passamos de informações. Tenho orgulho e prazer de ter uma boa relação com a Elaine. Ela merece seguir a vida feliz.

UOL Esporte: Depois da morte do Serginho, o São Caetano perdeu o rumo, tanto que hoje está na Série A2 do Paulista e a Série D do Brasileiro. Acha que a morte tem alguma relação com esta fase do time?
Paulo Forte: Com certeza absoluta a morte do Serginho não tem nada ver com o fato de o time ter sido rebaixado em vários campeonatos. Mesmo porque depois daquilo, fizemos uma boa campanha em 2007, quando fomos vice-campeões paulistas. Hoje em dia, você vê o próprio Guarani que esteve a beira de cair para a Série D. Temos um grande exemplo do Santo André, nosso vizinho, que ganhou Copa do Brasil e está fora até da Série D. Assim, fico tranquilo para dizer que a morte do Serginho não influenciou em nada. É algo natural que acontece com clubes médios, que tem uma fase boa, depois acabam caindo e depois voltam.

Forte seleção - Rafael Ribeiro/CBF - Rafael Ribeiro/CBF
Paulo Forte coordena o departamento médico das seleções de base da CBF
Imagem: Rafael Ribeiro/CBF

UOL Esporte: Hoje em dia, você também trabalha na CBF como coordenador médico das categorias de base. Como foi este convite e como é o trabalho?
Paulo Forte: Trabalhar na seleção é maravilhoso. Há um ano e meio, recebi o convite do próprio departamento médico que estava lá na época, e  aceitei prontamente. Vi uma abertura grande e uma chance de crescer dentro da carreira. Foi uma realização profissional. Estou levando toda minha experiência para as categorias de base e meu trabalho em pouco tempo foi reconhecido. Me deram cargo de coordenador médico de todas categorias de base, seleções sub 15, sub 17, sub-olímpica e olímpica. Sou o responsável pela convocação dos médicos e fisiologistas. Quero dar minha colaboração para que seleção volte a ser respeitada como sempre foi.

UOL Esporte: E como está seu trabalho como médico do São Caetano?
Paulo Forte: Sigo lá, vendo se o clube se reestrutura. A expectativa é que se monte uma equipe competitiva para voltar a disputar títulos e campeonatos importantes. Tivemos uma reunião bacana nesta semana e estamos todos concentrados em unir forças para fazer o time voltar a brilhar.

UOL Esporte: Dez anos depois da morte, a medicina esportiva evoluiu muito? Aquela morte deixou um legado?
Paulo Forte: Houve uma evolução importante, principalmente quanto à avaliação de jogadores. Hoje, a própria Fifa determinou um protocolo. Teve uma evolução importante quanto a exames complementares. Hoje, obrigatoriamente, o atleta tem de passar por  exame de sangue completo, eletrocardiograma de repouso, ecocardiograma e teste ergométrico. Houve também evolução dentro dos estádios. Hoje são necessárias duas ambulâncias bem equipadas. Se uma sai do estádio, outra fica no lugar. Caso contrário, não se dá sequência à partida. Dentro do campo de jogo, o médico fica a necessariamente com desfibrilador e precisam estar aptos a operá-lo. É um legado que foi deixado.