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Vida de jogador que quer estudar não é fácil. Eles sofrem até bullying

Victor é um raro caso de jogador de ponta no Brasil que concluiu o ensino superior - Bruno Cantini/Clube Atlético Mineiro
Victor é um raro caso de jogador de ponta no Brasil que concluiu o ensino superior Imagem: Bruno Cantini/Clube Atlético Mineiro

Luiza Oliveira*

Do UOL, em São Paulo

20/03/2016 06h00

Estudo e esporte são instrumentos fundamentais para a formação de todo cidadão. Mas entre os jogadores de futebol, ao menos no Brasil, os dois andam bem separados. São raros os casos de atletas que têm interesse e condições de investir na formação escolar e chegam a fazer um curso superior. Os que se desdobram para concluir a graduação, ainda encontram muitas dificuldades e sofrem até bullying dos colegas.

A árdua rotina de treinos e jogos costuma ser o maior vilão dos jogadores estudantes. Quem ainda insiste em investir nos livros e cadernos, enfrenta uma rotina diária de três turnos em que é preciso conciliar treinos, aulas e trabalhos escolares , além de driblar sono e o cansaço.

O goleiro Victor, do Atlético-MG, representa esta pequena parcela de atletas de ponta que completaram o ensino superior. Ele começou a cursar Educação Física ainda quando estava na categoria Sub-20 do Paulista. O goleiro foi emprestado ao Ituano e precisou trancar o curso, mas conseguiu terminar a graduação quando voltou ao clube de Jundiaí.

"Atuando e viajando para jogos é difícil conciliar, é complicado porque você viaja muito e, às vezes, você acaba perdendo as aulas. Sempre tive também o apoio do pessoal do Paulista na minha época, o meu treinador no profissional do Paulista era o Vagner Mancini, ele sempre me incentivou. Em algumas oportunidades, ele me liberava por algumas horas da concentração para que eu pudesse ir para a faculdade. Então com uma certa dificuldade eu consegui conciliar. É um diferencial, algo importante que eu tenho no meu currículo", disse ao UOL Esporte.

Outros atletas também viveram as dificuldades encontradas por Victor. O zagueiro Hugo Gomes hoje está emprestado ao Mallorca, mas jogou nas categorias de base no São Paulo. O Tricolor do Morumbi incentiva seus atletas a estudar e até arca com os custos da faculdade. Ainda assim, poucos têm interesse em seguir adiante.

Hugo foi o primeiro atleta da base do clube a se formar em Educação Física e hoje vê o quanto o estudo foi importante em sua vida. Mas admite que não foi fácil. "Eu fiquei um pouco fora do padrão. Todo mundo queria terminar o ensino médio para se dedicar só ao futebol, não aguentavam mais, e eu continuei estudando. No primeiro ano eu era o único do clube que estudava. Nos três anos seguintes, vinham matérias mais complexas na faculdade e eu já estava no júnior indo para o profissional. Por mais que eu tenha conseguido, passei noites estudando, fazendo trabalho em estádio e treinava de manhã, chega uma hora que é puxado. Querendo ou não teve uma questão de sorte também. Eu poderia ter sofrido com lesões por não descansar, o horário que eu tinha para descansar eu estava na faculdade".

Hugo Gomes, jogador do Mallorca emprestado pelo São Paulo - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

A dificuldade para estudar não se restringe à rotina. Como são minoria, alguns atletas enfrentaram até a zoação dos colegas. O goleiro Dauberson, que disputou a Copa SP pelo Cruzeiro e hoje está emprestado ao Boa Esporte-MG, optou por um curso bem diferente de sua profissão. Ele cursa Engenharia de Produção e se prepara para entrar no mercado, caso um dia deixe o futebol.

Em sua visão, os jogadores, de uma forma geral, não veem no estudo um instrumento de transformação de vida porque acham que vão garantir o futuro apenas com a bola. Assim, a dedicação aos livros não é importante. Dauberson acredita que apenas os atletas que têm muita consciência e que contam com o apoio da família seguem adiante.

"Alguns (colegas) apoiam bastante, mas outros acham que eu estou errado. Eles não pretendem estudar, falam que estudar é coisa para burro. Fizeram só até a sexta ou sétima série e acham que estão garantidos no futebol, que vão ser grandes jogadores e ponto. Acham que são mais espertos porque vão se dar bem mesmo sem estudar. E isso vem de anos, desde lá atrás, grandes jogadores não são formados e ganharam dinheiro. Então eles acham que não precisam estudar, que vão ganhar muito dinheiro. Para mudar isso hoje é difícil".

No Cruzeiro, outros atletas também se viram para fazer cursos sem qualquer relação com o futebol. O atacante Victor Crispim e o goleiro João Victor Bravin passaram recentemente no vestibular de direito e psicologia, respectivamente, e ainda não sabem se vão conseguir cursar por causa da agenda.

"Se a gente tem tempo para jogar bola, que é o que a gente sonha, para o plano B também tem que ter um tempinho. Então, é sempre importante focar nos estudos. A gente procura ficar com essa galera que gosta de ler e dormir cedo", conta João Victor.

O goleiro João Victor Bravin e o atacante Victor Crispim jogam na base do Cruzeiro  - Thiago Fernandes/UOL - Thiago Fernandes/UOL
Imagem: Thiago Fernandes/UOL

Estudo pode ajudar dentro de campo?

Ainda que exija um esforço extra, o curso superior pode trazer muito mais benefícios do que a maioria acredita. Hugo Gomes conta que a Educação Física ampliou seus conhecimentos para muito além do campo e bola. Hoje, ele compreende um treino ou uma instrução do preparador físico com muito mais clareza.

"A faculdade de Educação Física abre a mente além do futebol. Você começa a conhecer o seu corpo, a sua musculatura, a sua alimentação, o que influencia. Se os atletas soubessem o quanto ajuda em questão de conhecimento, as funções de cada alimento, o que a proteína oferece para o músculo, o quanto o carboidrato é importante. O preparador passa um trabalho e eu questiono os métodos dele. Não é só chutar uma bola, abre o leque do que é o esporte para desempenhar da melhor maneira".

Também atleta do São Paulo, o volante Felipe Araruna concilia os treinos e jogos com o curso de Administração de Empresas na tradicional Faap, em São Paulo. E só vê benefícios. "É bom porque sempre tenho um dia cheio. Não me incomodo e não me atrapalha, só ajuda. Ao invés de ficar com a cabeça muito aqui dentro, no mesmo lugar sempre e conversando com as mesmas pessoas, eu aprendo um negócio novo. Faço novos amigos, isso que é o diferencial".

*Colaborou Vanderlei Lima