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Pioneira do apito, árbitra foi xingada de "rapariga" e levou chute em campo

Maria Edilene - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

25/11/2016 06h00

A pernambucana Maria Edilene Siqueira acaba de se aposentar de uma vida como instrutora de tiro da polícia, mas nos anos 90 deixou sua marca na história do futebol brasileiro. Ela foi uma das primeiras mulheres a atuar como bandeirinha na elite e a primeira a apitar um jogo profissional entre homens. Mas esse pioneirismo não veio sem resistência.

A partida mais marcante de sua carreira aconteceu em 11 de novembro de 1993, quando o Cruzeiro veio ao Pacaembu enfrentar o Corinthians, em um jogo decisivo para as pretensões dos dois times naquele Campeonato Brasileiro. Os mineiros não podiam perder. Maria Edilene foi a responsável por uma das bandeirinhas.

Após o jogo, ela sairia do campo cercada por policiais, xingada, ameaçada e chutada por um jogador enfurecido.

“Hoje já até normal uma mulher bandeirar”, lembra o então lateral e futuro ídolo do Cruzeiro, Nonato. “Mas naquela época não. A gente ficou espantado, surpreso mesmo de ver uma mulher ali.”

Maria Edilene - Reprodução/Folha de S.Paulo - Reprodução/Folha de S.Paulo
Folha de S. Paulo entrevista Maria Edilene logo após a partida em que foi agredida
Imagem: Reprodução/Folha de S.Paulo

Era a primeira vez que uma mulher participava do trio de arbitragem em um jogo de Nonato. No final da partida ele seria um dos protagonistas de uma das cenas mais simbólicas da resistência sofrida por elas em gramados de futebol dominados por homens.

O que levou um jogador homem a chutar uma árbitra mulher

Quando o jogo estava empatado, o futuro pentacampeão Rivaldo recebeu uma bola livre de marcação e fez o gol da vitória corintiana. O Cruzeiro achou que ele estivesse impedido (as imagens de TV deixam claro que não estava).

Quando Maria Edilene correu ao meio-de-campo validando o gol, o time inteiro do Cruzeiro partiu para cima dela. “Graças a Deus a polícia agiu rápido para me proteger”, relembra a ex-juíza. “Eu ouvi de tudo ali, todos os tipos de xingamento possíveis.”

Nonato não se contentou apenas em xingá-la. Conseguiu romper o cordão de isolamento, se aproximar da bandeirinha e armar um chute contra as pernas dela. “Ele estava nas minhas costas e me deu um chute covardemente por trás”, disse ela. “Eu não olhei pra ele porque ele podia me dar um soco. Eu senti o chute, mas não olhei.”

As imagens da agressão viraram um escândalo no noticiário esportivo. Nonato chegou a ser suspenso, embora um segundo julgamento tenha diminuído a punição do primeiro. O chefe da arbitragem de então ameaçou bani-lo do futebol.

Hoje, como há duas décadas, o campeão da Libertadores com o Cruzeiro diz que não chegou a consumar a agressão, embora tenha pensado em fazê-lo: “Levantei a perna e quando já estava quase acertando a perna dela, veio uma voz na minha cabeça dizendo: ‘O que eu estou fazendo?’ Então, eu desisti e tirei o pé.”

Anos depois, em um jogo beneficente, os dois se encontraram. Nonato pediu desculpas e Maria Edilene aceitou.

Com o apito, ela ouviu ofensas machistas 

Em outra ocasião, quando atuava como a juíza principal de um Santa Cruz x Sport, ela ouviu de um jogador uma frase que a marcou: “Vai limpar bunda de menino!” E outra: “Vai pilotar fogão!” E mais uma: “Sua rapariga!”

Então ela se aproximou do tal jogador e disse: “Por gentileza, o senhor por favor se retire que está expulso”. E mostrou o cartão vermelho. “Era o melhor jogador do Santa, e o pessoal veio todo pra cima”, lembra ela, décadas depois.

Maria Edilene chegou ao quadro da Fifa e foi chamada a apitar em dois Mundiais femininos. Só se aposentou quando o corpo parou de responder às exigências dos testes físicos. Ficou ainda 16 anos dando aulas de tiro e ensinando homens a manejar pistolas e espingardas na Polícia Civil de Pernambuco. “Eles estranhavam ver uma mulher ali, mas logo a estranheza passava. Nunca tive nenhuma reclamação nas minhas aulas.”

Depois da punição, Nonato seguiria sua carreira normalmente e se tornaria um dos dois laterais mais lembrados pela torcida do Cruzeiro (o outro é o argentino Sorín). Pelo clube, foi campeão da Copa do Brasil e da Libertadores e quatro vezes do Mineiro.

Ele afirma que depois do que aconteceu naquele 11 de novembro no Pacaembu menos mulheres passaram a ser escaladas na arbitragem. “Depois disso aí, deu uma enfraquecida de mulher apitando. Depois voltou com tudo.”

Ele diz não ter se arrependido da postura que o time teve, ao reclamar com veemência de uma decisão correta da bandeirinha.

“Naquela hora, ali dentro de campo, quando você acha que está certo, você não quer saber se é homem ou mulher. Se você ficou revoltado, você vai pra cima mesmo, não tem isso de ser mulher não. Ela está ali trabalhando num jogo de futebol de homem, tem que ser tratada como um homem.”