A dor que nos afeta: o roupeiro Cocada e a entrevista que não aconteceu
Nasci no interior de São Paulo em outubro de 1985. Em fevereiro de 2005, mudei-me para a capital para fazer faculdade. Pouco tempo depois disso, ali por 2007, comecei a acompanhar a Chapecoense.
Não tem um porquê, uma explicação. Simplesmente aconteceu. Em algum momento, alguém comentou sobre a Chape comigo. Passei a acompanhar. Em pouco tempo, virou uma torcida, um segundo time.
Foi assim que acompanhei o título catarinense de 2007, o acesso na Série D de 2009, o título catarinense de 2011, o acesso na Série C de 2012. Tempos de Nivaldo no gol, Bruno Cazarine no ataque e Mauro Ovelha à beira do campo. Tempos de uma derrota consagradora em casa diante do Araguaia, sob uma tempestade de proporções bíblicas na Arena Condá.
A essa altura, a Chape já era um time consolidado no futebol nacional – e em mim. Foi por isso que decidi ir a Chapecó em 2013 para ver um jogo contra o Atlético-GO pela Série B. Não conhecia ninguém, mas viajei mesmo assim. No frio daquela noite de agosto, a Chape venceu por 3 a 0, com dois gols de Bruno Rangel e um de Danilinho, todos no segundo tempo.
A partir daí, o carinho pelo clube e pela cidade apenas cresceu. Na internet, fiz amigos na cidade – torcedores e jornalistas. De longe, continuei acompanhando e vendo mais gente passar a admirar o time. Até que resolvi viajar novamente a Chapecó em setembro de 2016 para voltar à Arena Condá. Minha namorada, que nunca foi muito chegada em futebol, virou torcedora e foi comigo.
No hotel, encontramos a delegação concentrada. Topamos com o técnico Caio Júnior no restaurante e conversamos com ele – o treinador não entendia como um casal do interior de São Paulo passara a gostar da Chape, mas ficava feliz com o apoio que demonstrávamos ao time.
Em campo, com chuva, a Chape empatou com a Ponte Preta em 2 a 2. Tiaguinho jogou demais e marcou os dois gols. Comemorei ao lado dos amigos que fiz. Ao fim da partida, todos eles desejaram a nós uma boa viagem de volta a São Paulo.
Desde aquele jogo, fiz mais um amigo da cidade na internet: Anderson Donizette Lucas, o Cocada. Nascido no interior de SP como eu, Cocada era o roupeiro da Chape. Fazia seu trabalho com alegria, e divulgava sempre nas redes sociais as imagens de seu ofício – de vídeos de comemoração a fotos das malas da delegação nas viagens, estava tudo no Twitter do Cocada.
No site, os amigos mais íntimos de Cocada pediam a ele camisas, braçadeiras e todo tipo de lembrança que ele pudesse dar. Nem sempre ele conseguia, é claro, mas sempre dava atenção a todos.
Foi aí que fiz uma proposta a ele: quando a Chape viesse a São Paulo no final de outubro para enfrentar o Corinthians, eu entregaria a ele uma camisa do time para que pegasse autógrafos dos jogadores. Pegaria de volta assim que possível. Trocamos números de telefone e combinamos os detalhes pelo WhatsApp.
Combinamos um fim de tarde de sexta-feira para entregar a camisa no hotel da delegação, na zona norte de São Paulo. Não poderia ir, mas incumbi minha namorada de encontrá-lo e entregar a camisa. Cocada a recebeu na recepção do hotel e entregou a camisa à delegação. Em 20 minutos, todos assinaram o uniforme e devolveram a ele. Neste intervalo, Cocada e minha namorada conversaram; à noite, de casa, ela me mandou a foto da camisa, e eu nem sabia como agradecer a ele pela atenção.
A Chape empatou aquele jogo e só voltou a São Paulo no fim de novembro para enfrentar o Palmeiras. Para minha surpresa, Cocada me mandou uma mensagem no WhatsApp avisando que estava na cidade. Perguntou se iríamos ao jogo e comentou empolgado sobre a “temporada show” da equipe. Estava otimista com a possibilidade de um empate no Allianz Parque.
Foi a última vez que conversamos.
De São Paulo, a Chape embarcou para a Bolívia. De lá, para a Colômbia. Na noite de segunda-feira, saí do trabalho e fui para casa. Minha namorada viajava a trabalho, então me deitei sozinho para ver as notícias no Twitter antes de dormir. Entre as notícias, o desaparecimento do voo do time.
Naquele momento, todo o sono se foi. Imediatamente, Mussunzin – um dos amigos de Chapecó – me procurou para saber informações. Não as tinha. Entrei em contato com os amigos do UOL Esporte. Alguns já estavam acordados, e começamos a buscar informações.
Na hora, pensei: Cocada está no voo. Mandei a ele uma mensagem no WhatsApp em busca de boas notícias. A mensagem, porém, jamais foi recebida por ele.
Aos poucos, as primeiras informações foram chegando ao Brasil. O avião caíra nos arredores de Medellín. Os primeiros sobreviventes foram atendidos. Dezenas de corpos foram resgatados.
No início da manhã, a mão tremia, o braço pesava, o estômago doía. Pedi desculpas a Mussunzin e fui tentar dormir. Cochilei por umas poucas horas, até que minha namorada chegasse em casa.
Foi só aí que caiu a ficha: como é que eu daria a ela a notícia? Como é que eu contaria que o time pelo qual a convenci a torcer havia sofrido uma tragédia dessas? Como explicar que os donos dos autógrafos na camisa – Danilo, Bruno Rangel, Tiaguinho, Caio Júnior, Cocada – haviam morrido?
Assim que ela abriu a porta de nossa casa, dei um abraço nela. “Nosso time”, respondeu ela, que já sabia. Havia visto no Twitter.
Passei o resto do dia pensando na última conversa com Cocada. Devia a ele um abraço pessoalmente e o agradecimento pelo tratamento sempre carinhoso. Em dezembro, queria fazer com ele uma entrevista. Queria contar sobre a vida de roupeiro – ele já havia trabalhado em clubes como XV de Jaú, São Carlos, Santo André e Guarani – ou sobre a temporada do clube por um novo ângulo. Havia sugerido a um colega da redação uma entrevista com o próprio Cocada para contar sua interação com o público nas redes sociais.
A entrevista, porém, não acontecerá. Assim como o abraço não será dado. Assim como a resposta no WhatsApp nunca chegou até mim.
No fim da terça-feira, depois de um dia interminável de trabalho, escrevi a ele um texto em meu Facebook. Minha namorada se lembrou do encontro no hotel e comentou, me fazendo chorar mais uma vez.
“Ele me mostrando as fotos dos uniformes na porta do quarto de cada um no hotel, me explicando como funcionava a logística desse trabalho incrível que fazia... A nossa Chape é muito grande, e, naquele dia com o Cocada, mesmo em 20 minutos, ele mostrou o enorme carinho que tinha por você, mesmo sem te conhecer pessoalmente.”
Não consegui conhecer pessoalmente o Cocada. Ao mesmo tempo, perdi um amigo querido naquele voo.
A ajuda de Cocada ao Guarani
Em 2013, Cocada trabalhou como roupeiro do Guarani, e lembrava com muito carinho sua passagem pelo clube. Em 2016, comemorou em seu Twitter o acesso do clube de Campinas na Série C do Campeonato Brasileiro.
Nesta quarta-feira (30), o clube campineiro retribuiu a gentileza, relembrando um episódio protagonizado por Cocada em 2014 – que, na época, já nem era mais funcionário da equipe.
Em maio daquele ano, o Guarani foi a Caxias do Sul (RS) pela quarta rodada da primeira fase da competição para enfrentar o Juventude. Cocada foi então à cidade para visitar os amigos. No entanto, surpreendeu a própria comissão técnica ao vestir o uniforme bugrino e colocar a mão na massa.
“Em 2014, quando fomos enfrentar o Juventude pela Série C, o Cocada que já estava na Chapecoense, foi até a cidade de Caxias do Sul para acompanhar o jogo do Guarani”, relembrou Rodrigo, atual roupeiro das categorias de base do Guarani, em nota divulgada pelo clube. “Quando vi o Cocada em Caxias pensei que ia só assistir a partida, mas para minha surpresa, ele entrou no vestiário, vestiu a roupa da comissão técnica bugrina e começou a ajudar na arrumação do material assim como fazia quando estava em Campinas. Aquilo foi a maior demonstração de amor ao Guarani que eu vi dele”, completou, emocionado.
Aquele jogo terminou empatado em 0 a 0. Os dois times acabaram ficando fora da zona de classificação do grupo à segunda fase – e, por coincidência, subiram da terceira para a segunda divisão nacional em 2016.
Mobilização da torcida
Após a morte de Cocada, a torcida começou uma mobilização nas redes sociais. A meta: fazer com que seu canal no YouTube atingisse 100 mil inscritos, de forma que a família recebesse uma placa. No primeiro dia, o número de assinantes saltou de 24 assinantes para mais de 90 mil. Independente da meta, vale a pena conhecer.
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