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De doping a homofobia: "poderoso chefão" da Copa-2018 acumula polêmicas

Xinhua/Evgeny Sinitsyn
Imagem: Xinhua/Evgeny Sinitsyn

Thiago Arantes

Colaboração para o UOL

23/01/2017 04h00

O vento gelado e a neve sobre Kazan no final de novembro não pareciam atingir o senhor de 58 anos que observava as instalações da cidade para o último grande evento da Fifa em 2016, o sorteio da Copa das Confederações. Bem protegido por generosas camadas de roupa e cercado por um séquito de assessores, seguranças e jornalistas, Vitaly Mutko era imune aos 10 graus negativos que já prenunciavam um dos invernos mais rigorosos dos últimos anos.

Imune talvez seja uma das palavras que melhor definem este ex-marinheiro russo que se transformou no homem mais poderoso do esporte de seu país na última década. Mutko ocupa três dos cargos de maior influência sobre a próxima Copa do Mundo. Ele é presidente do Comitê Organizador Local, da RFS (a CBF russa) e ocupa uma posição no governo criada especialmente para ele, uma espécie de vice-primeiro-ministro, cuja explicação é outra mostra dos poderes do dirigente.

Pelo acúmulo dos cargos que ocupa e dos que já ocupou – ministro do Esporte, ministro do Esporte, Turismo e Juventude e presidente da Premier League russa – Mutko passou a ser chamado, sobretudo pela imprensa internacional, de "poderoso chefão", "manda-chuva", "todo-poderoso".

Não sem motivo. Poderoso é outra das palavras que serviriam para descrevê-lo. Seja pelo tamanho de seus cargos, por suas atitudes à frente deles, mas sobretudo por uma amizade de mais de duas décadas que ele mantém com um dos poucos homens da Rússia que podem dizer que mandam ainda mais: o presidente Vladimir Putin.

Os dois se conheceram no início da década de 1990, em São Petersburgo. Em 1992, trabalharam juntos na prefeitura da cidade. Em 1994, participaram da organização dos Goodwill Games, primeiro evento esportivo na Rússia pós-União Soviética. Desde então, sempre mantiveram contato.

Quando, em 2016, o relatório McLaren jogou uma bomba sobre o esporte russo, mostrando casos de doping com a participação do governo, Mutko virou o alvo principal. O nome do então ministro do Esporte aparecia 20 vezes no documento elaborado pelo advogado canadense.

A equipe de atletismo da Rússia foi excluída dos Jogos Olímpicos do Rio; Mutko teve sua credencial de acesso ao evento cassada pelo COI. O fim parecia iminente. Outro dirigente teria caído. Mas Putin, fiel a seus amigos, não demitiu o antigo parceiro. Ao contrário, criou um cargo para ele. Mutko "caiu para cima".

O escândalo de doping foi a maior delas, mas há um mar de polêmicas que o cerca por todos os lados. Algumas são motivadas por ações suspeitas nos bastidores – outras, por discursos públicos transmitidos para os quatro cantos do planeta. 

Vice-primeiro-ministro russo, Vitaly Mutko, e Gianni Infantino, presidente da Fifa - REUTERS/Maxim Shemetov - REUTERS/Maxim Shemetov
Vice-primeiro-ministro russo, Vitaly Mutko, e Gianni Infantino, presidente da Fifa
Imagem: REUTERS/Maxim Shemetov


Café ‘reforçado’, corrupção e homofobia

Em 2010, uma auditoria do Governo russo fez um relatório sobre os gastos excessivos da delegação do país nos Jogos Olímpicos de Inverno de Vancouver. De acordo com o documento, foram 200 milhões de dólares, valor muito acima do orçamento previsto.

Os detalhes do relatório apontaram para Mutko, então ministro do Esporte, como figura central em uma grande máquina de gastança. O dirigente hospedou-se em um hotel com diárias de 1.499 dólares – o limite estabelecido era de 130 – e pagou 97 vouchers de café da manhã em 20 dias. Além disso, levou sua mulher, Tatyana, para o evento, com passagens e acomodação pagos pelo Comitê Olímpico Russo. Também permitiu que atletas levassem familiares como membros credenciados da delegação.

Mutko, como se sabe, não caiu. O Senado do país pediu sua cabeça ao primeiro-ministro Dimitry Medvedev, mas não foi atendido. Medvedev, fanático torcedor do Zenit de São Petersburgo, também é amigo do dirigente, com quem costuma falar sobre futebol.

Questionado sobre o caso na época, Mutko esquivou-se com uma generalização. “Falam que existe corrupção na Rússia. A corrupção existe em todos os países”.

Três anos depois, enquanto a Rússia se preparava para receber a Olimpíada de Inverno de 2014, em Sochi, o dirigente ressurgiu no noticiário, agora por um fato público e notório. Em meio aos protestos de ativistas LGBT contra leis que restringiam sua liberdade de expressão e outras manifestações, o dirigente foi colocado contra a parede em uma entrevista. Saiu-se com uma frase que rodou o mundo e virou símbolo da relação que o governo de Putin tem com os homossexuais.

“A lei é sobre proteger as novas gerações, que ainda não têm o pensamento formado. É uma lei para protegê-los do álcool, das drogas e das relações sexuais não-tradicionais. É uma lei para proteger as crianças, ela não priva ninguém de fazer nada”, disse. A reação foi imediata: ele acabara de colocar, no mesmo balaio, o alcoolismo, o uso de drogas e as relações homossexuais.

"Ma english to bad"

Em meio às polêmicas sobre as coisas que faz e diz, Mutko também entrou em outra celeuma, por um motivo bem diferente: a forma como ele diz. Os discursos do dirigente em inglês tornaram-se memes na internet, devido ao sotaque russo pronunciado, à falta de fluência e à repetição de palavras acabadas em “ation”. Um enganation que virou piada dentro e fora da Rússia, país em que apenas 7% da população fala o idioma de Shakespeare.

Em 2015, após inúmeras tentativas e outras tantas respostas curtas de “Yes”, “No”, “Good” e “Ok”, Mutko desistiu. No lançamento do site “Welcome2018.com” (bem-vindos a 2018, em português), ele não se arriscou nem a dizer o nome da página. “Vai se chamar... Eu não vou demonstrar meu conhecimento de inglês agora, mas direi que o site será ‘DobroPozhalovat2018.com’, vocês sabem o que significa em inglês”.

Por isso, na tarde fria de novembro de 2016, Mutko falou com o UOL Esporte mediante exigências: três perguntas previamente combinadas, nenhuma delas sobre polêmicas, nenhuma palavra em inglês – um tradutor-assessor se encarregaria de facilitar a comunicação.

O dirigente lamentou a ausência do Brasil na Copa das Confederações de 2017, mas confidenciou que negocia um amistoso entre russos e brasileiros antes do torneio. Também disse que o Comitê Organizador aprendeu coisas “boas e ruins” da Copa de 2014, negando em seguida que haja qualquer temor de que os estádios tornem-se elefantes brancos. “Todas as cidades têm times competitivos”.

Por fim, já fazendo uma concessão e com o número de perguntas extrapolados – enquanto o tradutor-assessor fazia um sinal passando o dedo indicador no pescoço –, finalmente saiu da zona de conforto.

Sobre o estádio de São Petersburgo, que deveria ter ficado pronto em 2008 e ainda está em construção, colocou a culpa na imprensa. “Vocês não têm o que falar, daí falam do estádio que não está pronto. Isso é falta de assunto. Está tudo bem, o estádio vai ficar pronto, e daí vocês terão de procurar outro problema”.

Antes de tornar-se apenas um ponto preto na neve de Kazan, Mutko deu sua última resposta. Afinal, diante da crise institucional do futebol argentino e dos resultados ruins da seleção bicampeão mundial, existia algum receio de uma Copa do Mundo sem Lionel Messi?

“Isso não vai acontecer. Simplesmente não vai. Não existe essa hipótese, esqueça isso. Não vai acontecer e pronto”, disse Mutko, com a profunda certeza de algo ainda incerto. Uma característica do discurso do ex-navegador que se transformou em um homem poderoso e imune. Seja às polêmicas, ao frio, ou a qualquer mudança em sua rota.