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Por que um zagueiro chinês custou mais que Pato e Tevez na janela da China

 Zagueiro chinês Zhang Chengdong em 2015, durante sua passagem pelo Rayo Vallecano - Gonzalo Arroyo Moreno/Getty Images
Zagueiro chinês Zhang Chengdong em 2015, durante sua passagem pelo Rayo Vallecano Imagem: Gonzalo Arroyo Moreno/Getty Images

Fabio Piperno

Colaboração para o UOL, em São Paulo

12/02/2017 04h00

O zagueiro Zhang Chengdong atuou sem sucesso em Portugal, Alemanha e Espanha, países em que defendeu equipes como União de Leiria, Eintracht Braunschweig e Rayo Vallecano. Neste, foi escalado para apenas um jogo do campeonato nacional. Mas o currículo modesto no exterior não abalou o prestígio dele na China. Na primeira semana de 2017, Chengdong tornou-se o jogador chinês mais valorizado de todos os tempos.

Para tirá-lo do agora Beijing Sinodo Guoan, time onde atualmente jogam Renato Augusto e Ralf, o Hebei Fortune aceitou pagar o equivalente a 20 milhões de euros, cerca de R$ 68 milhões. O valor é maior que o que o Tianjin Quanjian pagou ao Villarreal por Alexandre Pato (18 milhões de euros) e quase o dobro do que o Shangai Shenhua pagou ao Boca Juniors para ter Carlitos Tévez (10,5 milhões de euros).

É difícil imaginar que até o final da atual janela de mercado, que ficará aberta até 28 de fevereiro, alguma negociação envolvendo jogador chinês supere o que foi investido na contratação de Chengdong. Mas com muito dinheiro sobrando nos clubes em um cenário de restrições à utilização de estrangeiros impostas pela Associação de Futebol da China (CFA), a tendência é de valorização da mão-de-obra local, a grande beneficiada pelo pacote de 18 regras que a entidade anunciou no dia 19 de janeiro.

O conjunto de medidas visa, principalmente, prestigiar o jogador chinês, fortalecer as categorias de base, regulamentar parte dos investimentos e combater práticas ilícitas, como evasão fiscal, contratos fraudulentos e pagamentos ilegais a agentes de jogadores. Entre as decisões de maior impacto em favor dos locais estão a que obriga os times da primeira divisão a ter sempre um chinês sub-23 em campo e a que impede a escalação de mais de três estrangeiros por equipe em um mesmo jogo.

Em relação à formação de jogadores, a CFA passou a exigir que todas as equipes da primeira divisão invistam 15% do orçamento na base e que tenham times sub-15, sub-17 e sub-19. Os técnicos responsáveis por essas categorias devem ser profissionais com habilitação certificada pela CFA.

Mudança veio após fraco desempenho da seleção

As novas regras chegam ao requinte de exigir que os clubes tenham pelo menos quatro campos para treinamento, podendo se for necessário alugar instalações que sejam propriedades do Estado ou de associações locais. O pacote de mudanças contempla claramente objetivos de médio e de longo prazo, que visam tornar mais competitiva a frágil seleção local, que derrapa nas eliminatórias para a Copa do Mundo.

Em um grupo com rivais como Irã, Usbequistão, Coreia do Sul, Síria e Qatar, a China é a lanterna, com escassas chances de chegar à Copa da Rússia. Em novembro, na estreia do técnico italiano Marcelo Lippi, campeão do mundo em 2006, a China recebeu o Catar e não foi além de um decepcionante 0 a 0.

Os pífios resultados nas eliminatórias mostraram que a escalada de investimentos dos clubes nem de longe se reflete na evolução da seleção, estacionada no 81º lugar no ranking da Fifa. Os gastos dispararam na temporada passada. Segundo a agência Bloomberg, apenas na janela do início do ano os 16 participantes da Super Liga Chinesa desembolsaram cerca de 330 milhões de euros em contratações. Mas a maior exposição de um campeonato recheado de craques importados, com média de 24,2 mil pagantes por jogo em 2016, segundo a consultoria Deloitte, não foi suficiente para impulsionar a seleção, que chegou a dar vexames como a derrota em casa para a Síria por 1 a 0.

No início de 2017, o apetite do dragão chinês no futebol novamente se mostra insaciável. O brasileiro Oscar trocou o Chelsea pelo Shangai SIPG por cifra equivalente a R$ 220 milhões. O argentino Tevez saiu do Boca Juniors para se tornar o jogador mais bem pago do mundo no Shangai Shenhua. E para contar com o luso-brasileiro Diego Costa, o Tianjin Quanjian está disposto a desembolsar 80 milhões de libras, ou cerca de R$ 320 milhões.

Novas regras afetam outros asiáticos

Se por um lado incentiva a popularização do futebol no país, e sabe que a presença de estrelas de prestígio no mundo da bola é fundamental para atrair mais jovens para o esporte, por outro as autoridades esportivas precisaram agir a fim de garantir mais espaço para a ascensão de ídolos locais. Para tanto, decidiram no início de janeiro acabar com a regra do 3+1, que permitia a cada equipe escalar ao mesmo tempo três estrangeiros de qualquer continente, mais um importado de país asiático.

Naturalizado palestino, o ex-corintiano Jucilei preencheu na temporada passada essa cota especial no Shandong Luneng. Esteve em campo em todos os 30 jogos disputados pela equipe. Mas em 2017, sem a vaga reservada aos vizinhos da Ásia, certamente seria bem menos utilizado. Não por acaso, acertou com o São Paulo. Sul-coreanos e australianos, que até o campeonato de 2016 formavam no futebol chinês os maiores contingentes de estrangeiros após os brasileiros, também devem ter menor presença em 2017.

Nem mesmo os jogadores de Hong Kong, território que tem o status de região administrativa especial da China, foram poupados do fim da reserva de mercado para os asiáticos não-chineses. Se no campo geopolítico China e Hong Kong formam "um país, com dois sistemas", como foi celebrada a integração ocorrida em 1997, no mundo da bola continuam separados e até se enfrentaram na segunda fase das eliminatórias asiáticas, com dois empates por 0 a 0.

A liga local, que nem de longe exibe opulência comparável à chinesa, tornou-se um acolhedor reduto de brasileiros de pouca fama por aqui. Todos os principais clubes da região contam com vários jogadores importados do Brasil. O Eastern SC, líder do campeonato, é um bom exemplo. Tem quatro. Um deles, o paulistano Roberto Orlando Affonso Júnior, se naturalizou honconguense e estreou na zaga da seleção em 2016. Beto, como é conhecido por lá, fez companhia nas eliminatórias para a Copa ao baiano Manoel dos Santos, o Itaparica, que no Brasil chegou a jogar no Cruzeiro, nos tempos em que o técnico da equipe era Vanderlei Luxemburgo. Com as restrições aos estrangeiros asiáticos, o sonho de um dia cruzarem a fronteira chinesa para jogar em uma liga mais rica se tornou uma miragem.

Quanto menor a concorrência de estrangeiros, obviamente é maior a valorização dos chineses. Não resta dúvida de que a contratação de Zhang Chengdong foi a de maior impacto entre os jogadores de nacionalidade chinesa. Mas na atual temporada de grandes negociações, ofertas com cifras iguais ou superiores ao equivalente a 5 milhões de euros por destaques nascidos no país estão se tornando cada vez mais comuns. Mas na jovem e vibrante indústria do futebol que prospera no país dos mandarins, há dinheiro para muito mais.

Logo após negociar Zhang Chengdong com o Hebei, os donos do Beijing Gouan venderam para o grupo Sinobo Land, gigante do setor imobiliário, 64% do clube por 481 milhões de euros. Segundo a agência Bloomberg, o valor de mercado do gigante chinês saltou para 754 milhões, o que o coloca como mais valioso que os tradicionais Milan e Atlético de Madrid. Um pouco antes, o grupo Dangdai, que atua em setores como indústria farmacêutica e educação, arrematou o Chongqing Lifan, até então controlado pela marca de automóveis Lifan.

Com o PIB do futebol do país crescendo em ritmo genuinamente chinês, cada clube parece seguir à risca um dos célebres ensinamentos de Deng Xiaoping, o antigo líder comunista que é considerado o pai das reformas econômicas da China. “Ser rico é glorioso”, dizia ele. Lição que o futebol chinês já aprendeu.