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Torcedor vai ao estádio em busca de um doador para se curar do câncer

"Levamos uma faixa bem simples. É meio que uma tentativa de encontrar uma salvação" - Arquivo pessoal
"Levamos uma faixa bem simples. É meio que uma tentativa de encontrar uma salvação" Imagem: Arquivo pessoal

Ramon Cordovil

De Belo Horizonte

07/06/2017 04h00

Em depoimento a
Adriano Wilkson
Do UOL, em São Paulo

2013 prometia. Eu tinha um bom emprego em uma multinacional. Era o ano que eu ia me casar. Era o ano que o Paysandu retornava a Série B depois de seis anos na terceira divisão, depois de seis anos que a gente ia ao campo pra sofrer durante vários meses e sonhar com um acesso que nunca vinha.

A gente já tinha vivido tempos melhores. Eu lembro daquele jogo da Libertadores dez anos antes. Era greve de ônibus na cidade. Entrei numa Kombi com um amigo, mas tinha tanto engarrafamento que resolvemos abandonar o carro e ir pro Mangueirão a pé. Muita gente fez o mesmo, e a torcida chegou ao estádio depois de uma pequena procissão. Foi quase religioso. Tinha umas 70 mil pessoas ali dentro. No momento do gol do Lecheva pensei que o estádio ia desabar porque o empate nos classificaria. Perdemos o jogo, mas a memória daquele gol nunca me abandonou.

Ser Paysandu sempre foi uma coisa muito natural para mim, um traço hereditário que veio do meu pai. Meu pai foi uns dos fundadores de uma torcida organizada do Paysandu e me ensinou a amar esse time desde criança. Marquei meu casamento para o dia 25 de maio de 2013. O time estrearia na Série B um dia antes. Minha noiva foi morar comigo no interior do Pará, mas marcamos a cerimônia para uma igreja de Belém. Tudo parecia dentro dos conformes.

Ramon Cordovil - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

De repente tudo mudou.

Comecei a sentir dores pelo corpo, falta de ar, vômitos. Surgiram manchas na minha pele e fui me consultar. Fiz exames. A médica chamou minha noiva em particular e falou sobre sua suspeita, mas minha noiva não me contou. Voamos a Belém para fazer outros exames específicos que confirmaram: eu tinha câncer nas células do sangue, leucemia mieloide aguda (LMA). A palavra câncer soou como uma sentença de morte: a primeira vez que eu ouvi tive certeza que eu já era. Daí veio a depressão, e da depressão veio a pneumonia que atacou forte meus pulmões.

Eu não conseguia respirar e pedia pelo amor de Deus que os médicos me ajudassem. Eles resolveram me entubar. Meu quadro se agravou. Os médicos me puseram em coma induzido na UTI. Quando o Paysandu estreou no campeonato, eu estava apagado.

Para mim foi como estar dormindo, fechar os olhos num dia e acordar no outro, mas ao todo estive na corda bamba por três semanas, 22 dias de coma. Minha noiva e familiares disseram que foram os piores. Cada dia que eu amanhecia vivo era um milagre. Tive parada cardíaca, contrai bactérias, estive muito perto de cruzar a linha vermelha.

Tamara e Ramon - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Durante esse tempo, perdi a estreia do Paysandu, e meu casamento teve que ser desmarcado, já com convites impressos e distribuídos, buffet e decoração pagos. Minha noiva, que andava afastada da Igreja, firmou um propósito com Deus, reuniu a família em orações durante os dias em que eu estava dormindo. Minha mãe e meu pai aceitaram Jesus como salvador. E Deus me trouxe de volta.

Depois desse tempo todo apagado, eu poderia acordar com graves sequelas. Tive que reaprender a ficar de pé, a andar, a levar a colher até a boca para me alimentar sozinho. Você fica parecendo um bebê gigante. Minha noiva me ajudou a voltar a ser eu de novo. E aos poucos eu fui voltando e como o casamento estava marcado para aquele ano casamos apenas no cartório. Firmamos aliança e nos tornamos marido e mulher.

2013 não tinha sido nada do que eu tinha imaginado. Não pude acompanhar meu time, não pude estar no meu casamento. No fim do ano, ainda precisei sofrer com o Paysandu sendo rebaixado novamente à Série C, uma campanha pífia para quem anunciava muito.

Mas 2014 prometia dias melhores. Eu sou um cara otimista.

Eu já tinha começado a fazer a quimioterapia. Precisava trocar minha medula óssea, esse órgão que na verdade é a fábrica de sangue do corpo humano. Se você tem algum problema grave no sangue, você troca sua medula por uma saudável, e ela vai começar a produzir sangue bom para substituir o seu ruim. Simples assim. Parece mágica, mas é ciência!

Ramon e Veiga - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Fiz exames de compatibilidade e descobri que uma das minhas irmãs, Alice, era 100% compatível! Ela poderia me doar uma parte da medula, e eu poderia me curar. Na verdade, não é tão simples assim, claro. Fui transferido para Belo Horizonte e lá, no dia 1º de setembro, fiz o transplante. No final de outubro o Paysandu foi jogar as quartas de final da Série C. Precisava de um empate para conseguir o acesso.

De todos os estados do país, os deuses do futebol (eles existem?) me colocam esse jogo adivinhem onde? Podia ser no Acre, podia ser no Ceará ou no Rio Grande do Sul, mas tinha que ser onde? Isso mesmo, em Minas Gerais! Contra o Tupi, em Juiz de Fora.

Se meu corpo tivesse colaborado eu teria visto. Mas ainda estava muito fraco, e não fui liberado pelos médicos para viajar. Quando o time subiu – um gol por cobertura no finalzinho, não dá pra esquecer! – eu estava outra vez no hospital.

Mas ao menos dessa vez pude ver tudo. Pela TV.

2014 tinha sido o ano da reviravolta, mais uma. Eu achava que podia estar curado, mas o câncer, assim como o futebol, é um negócio muito imprevisível.

Ramon na Curuzu - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Corta para 2017.

Estou de volta a Belo Horizonte porque a doença voltou e agora está mais agressiva. Eu já me acostumei a andar de máscara por aí, minha imunidade é baixa e esse pedaço de pano que impede todo mundo de me reconhecer também me protege contra infecções e ameaças que circulam pelo ar. Já não tenho mais cabelo, fruto do coquetel de drogas agressivas que a gente chama de quimioterapia.

Quase caí pra trás quando a garçonete contou sobre o time que estava vindo se hospedar no mesmo hotel onde estamos em BH, “um time chamado Paysandu”, foi o que ela disse. Fiquei maluco. Liguei para família inteira. O Paysandu chegou e eu não conseguia acreditar que eu estava ali para recebê-los. Porque de todos os hotéis de Belo Horizonte, o Paysandu tinha que escolher justo o meu, certo?

Tomei café ao lado da comissão técnica, falei com os jogadores, tirei foto com eles. Percebi que esse grupo está focado no campeonato, tem tudo para fazer a gente muito feliz esse ano. Ganhamos eu e minha mulher ingressos para o jogo contra o América.

Levamos uma faixa bem simples convidando as pessoas a doarem medula óssea. É meio que uma tentativa de encontrar uma salvação. Encontrar um doador compatível fora da família é quase como brincar de “Onde Está o Wally?” no meio de um Atlético de Madrid x Náutico em um estádio lotado. Imagine a cena. Agora imagine que faltou luz e você só tem uma pequena lanterna para encontrar o seu Wally. As chances giram em torno de 1 a cada 100 mil.

É difícil, mas eu acredito que tem alguma coisa conspirando a meu favor. Se depender de mim, eu vou encontrar.

Minha irmã pode ser minha doadora novamente, mas os médicos disseram que ficaria ainda melhor se eu tivesse outra pessoa. É como se eu estivesse em uma luta de boxe contra o câncer, e um doador diferente me faria entrar mais forte no segundo round dessa batalha.

O Paysandu acabou ganhando o jogo, 2 a 0. Fazia tempo que eu não via o time jogar tão bem fora de casa. Éramos líderes isolados na Série B. A batalha do time para subir está só começando. A minha para viver está a todo vapor.

Quando puderem, não se esqueçam de me fazer um favor: doem medula! É rápido, fácil, não dói. Você pode salvar uma vida. Quem sabe não salva a minha?

 

*Para ser doador de medula, o candidato deve colher uma pequena amostra de sangue no hemocentro de sua cidade. Os dados serão catalogados em um cadastro nacional e comparados a pacientes em necessidade que possam ter um grau adequado de compatibilidade. Podem se tornar doadores pessoas entre 18 e 55 anos, em bom estado geral de saúde, sem doença infecciosa ou incapacitante, câncer, doenças no sangue ou no sistema imunológico.

No caso de o sistema encontrar duas pessoas compatíveis, o procedimento de retirada da medula é feito, em geral, com anestesia em um centro cirúrgico e dura em média 90 minutos.