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Ex-traficante, zagueiro do Náutico conta amigos mortos: "Oito só neste ano"

Léo Lemos/Náutico
Imagem: Léo Lemos/Náutico

Adriano Wilkson e Guilherme Costa

Do UOL, em São Paulo

14/07/2017 04h00

No Parque São José, uma favela vertical da periferia de Fortaleza (CE), não há grande festa quando Breno Calixto volta para casa. Não é que faltem motivos: aos 24 anos, o zagueiro do Náutico é o único da comunidade que conseguiu percorrer a distância entre o subúrbio de uma das cidades mais violentas do planeta e o sonho de vingar como jogador de futebol.

“Na verdade, é que eu não tenho muitos amigos. A maioria morreu”, contou o defensor ao UOL Esporte. “Na época em que eles eram vivos, eu era o orgulho do bairro”.

Hoje em ação na Série B do Campeonato Brasileiro, Breno Calixto foi traficante de drogas até os 22 anos, quando já era jogador profissional. Além disso, integrou uma torcida organizada do Fortaleza e participou de brigas e conflitos com rivais.

"Acho que matar eu não matei ninguém, mas com sequela a gente já deixou bastante gente. É uma coisa normal. Todo mundo que é de torcida tem sequela. Já deixei, já levei. Já deixei bastante nego com cabeça aberta e olho inchado", relatou Breno.

Breno - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

As cicatrizes que o zagueiro mantém não são apenas físicas. Contratado pelo Náutico neste ano, Breno é descrito por pessoas que trabalham com ele como um jogador extremamente viril e dedicado. É um dos líderes do time em desarmes, mas o passado o ensinou a contabilizar outra estatística: “Só neste ano eu já perdi oito amigos. Oito só neste ano. Da época do crime, se eu for fazer uma conta hoje, foram mais de 30”.

Começou no tráfico ainda criança

Breno não sabe dizer ao certo em que momento o crime entrou em sua rotina. Tampouco elucubra sobre os motivos: convivia com traficantes, e com nove ou dez anos já trabalhava como avião (gíria usada para descrever o funcionário, normalmente criança, que serve como intermediário entre o vendedor de drogas e o consumidor).

Breno - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

“Entrei no crime muito cedo. Já estava junto com bandidos quando tinha nove ou dez anos. Para falar a verdade, sempre foi o crime. No decorrer do tempo, mesmo jogando na base, continuei. Sempre fazia meus bicos por fora".

Quando Breno tinha um ano, o pai conseguiu na Justiça o direito de criá-lo. Filho de um motorista de uma empresa municipal de ônibus, o jogador passava a maior parte do tempo com a avó – a ligação entre os dois tornou-se forte a ponto de ele chamá-la de mãe.

“Na época, quando eu era envolvido, meu pai saía para trabalhar muito cedo e voltava 20h ou 21h. Não tinha controle de saber o que eu fazia. Minha avó já era idosa e não era muito ligada. Eu saía na hora em que queria e voltava quando queria. Pegava minhas coisas, escondia, e ela não achava. Ela nem imaginava. Eu falava que ia jogar bola e ia para a favela. Nessa época, todo mundo já falava que eu tinha talento.”

O ingresso na torcida organizada e o consumo de drogas

Aos 12 anos, Breno já havia feito na perna direita uma tatuagem com o símbolo da Leões da TUF, uma torcida organizada do Fortaleza. Acompanhava as histórias de amigos do crime que frequentavam a torcida, mas começou a se infiltrar no grupo apenas aos 13 ou 14.

No início pouco participava das brigas. Na sede, virou aluno em aulas de violência "para ficar mais afiado quando chegasse o dia".

O dia chegou quando Breno tinha 17 anos: "Acho que foi o auge. Já era maior, mais forte, e aí fui considerado um 'linha de frente'. Para ser linha de frente você precisa ser mais forte, no mínimo. Exige de você bastante violência".

Por causa da rotina de brigas, passou a consumir mais álcool. “Nunca fui um cara de beber muito. A gente bebia para ter mais coragem. Você já não estava consciente e era melhor para fazer alguma coisa.” Ele também fumou maconha regularmente dos dez aos 20 anos. “Sempre gostei. Não era para brigar: era uma coisa que a gente usava na favela, na parte do crime, porque deixava tranquilo. Não chegava a ser um vício, mas eu usei bastante".

“Lá no meu bairro, os bandidos considerados grandes sempre proibiram a gente de usar outras drogas. Na boca dos bandidos, maconha não é droga. Eles consideram como uma erva normal, que não leva a mal nenhum. É diferente da cocaína ou do crack, que já deixa você num estado diferente. Os caras eram contra, e a gente foi pegando a ideia deles. A gente podia vender, mas usar, nunca”, completou Breno.

Brigar “era como pegar a mulher dos seus sonhos”

“Se tivesse um clássico Fortaleza x Ceará, a gente não queria saber do resultado. A intenção era ir para brigar. Se não tivesse briga era a mesma coisa que não ir. Já tiveram vários clássicos em que a gente foi e não rolou nada. A gente voltava meio triste por não ter acontecido nada, mas quando rolava briga era como uma sensação de pegar uma mulher dos seus sonhos".

Mesmo quando passou a levar o futebol a sério, o zagueiro deu um jeito de conciliar a rotina de atleta com a de torcedor organizado. Ele não frequentava a torcida no dia a dia, mas se apresentava em dias de jogos e não fugia de brigas. Perdeu a conta de quantos conflitos se envolveu, mas já transformou em arma uma enorme quantidade de materiais – barras de ferro, pedaços de madeira e facas, por exemplo.

Breno - Léo Lemos/Náutico - Léo Lemos/Náutico
Imagem: Léo Lemos/Náutico

“Eu não sei nem informar o que eu sentia. Só quem é de torcida mesmo sabe o prazer que a gente tinha. É uma adrenalina a mil: defender o clube acima de tudo, a torcida. É a mesma coisa de ter um filho: você tem de cuidar e não pode deixar ninguém fazer mal. A gente protegia o nome da torcida e a camisa que a gente usava. Não tinha consciência nenhuma. Se ganhasse a briga era como se fosse um troféu. Era como ser campeão de um torneio. A gente não tinha remorso. Era como ganhar uma guerra.”

Há uma série de episódios insólitos na trajetória de Breno com a organizada. Em 2013, quando defendia o Horizonte, do Ceará, forçou receber o terceiro cartão amarelo para cumprir suspensão automática no fim de semana em que Fortaleza e Ceará disputariam um clássico. Em outro caso, ele e um grupo da Leões perseguiram um torcedor rival até ele entrar em um culto de uma igreja evangélica, invadiram a cerimônia e o arrastaram para fora para terminar o espancamento.

Breno nunca foi preso: “Só detido, mas por briga de torcida. Fui detido, passei 24 horas e fui liberado. Nem meu nome eles anotaram. No crime eu nunca fui pego”.

Técnico o ajudou a sair do crime e levar o futebol a sério

No tráfico ou nas brigas de torcida, Breno sempre foi conhecido pelo talento com a bola nos pés. Começou em uma escolinha chamada Esporte Show, em Fortaleza, onde encontrou um técnico chamado Bira Lopes. No meio de um treinamento na última quarta-feira, o treinador atendeu o UOL Esporte para falar do antigo pupilo.

“O pai dele, que era meu amigo, disse que precisava de ajuda porque o menino estava cheio de influência negativa”, disse ele, que morava no mesmo bairro. “Quando eu não estava na cidade, meus parentes contavam que estava fechando a rua de porrada e o Breno estava na confusão. Foi um momento crítico na vida dele. Ele tinha muita amizade na torcida, o pessoal gostava muito dele, e lá também tem muito marginal".

O técnico lembra que o zagueiro chegava para treinar com machucados que ele tinha sofrido em brigas. A saída que ele encontrou foi arranjar times para ele fora da cidade e assim minimizar a influência que o meio pudesse ter em seu comportamento.

Quando Bira se tornou técnico do Corintians de Caicó, do Rio Grande do Norte, sugeriu a contratação de Breno. Ali, com 17 anos, ele se tornaria jogador profissional.

“Ele sempre insistiu em mim”, reconhece o zagueiro. “Dizia que eu seria jogador e que me tiraria de lá da favela. Dizia que eu acabaria como meus amigos que estavam morrendo se continuasse por lá. Arrumou alguns times para mim fora de Fortaleza, mas eu sempre voltava e me envolvia de novo. Só que essa história de viajar e conhecer outros lugares foi me reformando.”

Amigo assassinado o ajudou a se afastar do crime

A morte de um de seus amigos teve papel preponderante para mudar sua trajetória. Renê, a quem o zagueiro se referia como Pingo, passou pelas categorias de base de vários clubes – jogou no Bahia, no Vitória, no Corinthians e no Santo André.

Quando estava no Santo André, Renê sofreu uma grave lesão nos ligamentos do tornozelo. Foi desligado e voltou para Fortaleza sem ter dinheiro para se tratar. Com isso, retomou a vida no crime. Acabou assassinado algum tempo depois.

“A gente nasceu e se criou junto. Éramos amigos desde os cinco ou seis anos. Ele ia na minha casa e nem pedia para entrar: colocava a comida como se fosse um irmão meu. Em 2012, fizeram uma covardia com ele. Até hoje eu não sei o real motivo, ninguém sabe, mas eu sei quem foi. Eram os próprios caras que vendiam droga para ele vender. Botaram num carro, levaram para um matagal e deram oito tiros nele”, disse Breno.

No velório, o zagueiro do Náutico se aproximou do caixão e fez uma promessa: se tivesse um filho, daria a ele o nome de Renê. “Eu comparo a perda dele com a da minha mãe. Isso me tirou do crime, também. Foi outra coisa que me abriu os olhos”.

O filho de Breno, Renê Simeone, nasceu há nove meses. “Renê é homenagem. Simeone eu só coloquei porque achei bonito, mesmo.”

Deixou o crime para viver só de futebol

Sair da torcida foi um processo natural – não foi necessário avisar ou pedir permissão a alguém. No caso do crime, Breno teve de enfrentar uma liturgia um pouco mais complicada antes de se distanciar.

“Os bandidos que eram chefes da favela em que a gente morava sempre viam que eu tinha talento. Os caras são bandidos, mas são gente boa; não querem ver os moleques como eles. Um dia eu cheguei no chefe e disse que tinha oportunidade para ser profissional. Disse que ia viajar e não queria mais o crime. ‘A partir de hoje, estão aqui as drogas e o dinheiro. A gente está limpo’. Ele disse: ‘Vai lá que você vai vencer. Você tem futuro e sua vida não é aqui, não. Vai com Deus. O que precisar, a gente está aqui’. Foi tranquilo".

Há várias explicações para a vida de Breno ter mudado. A morte de Renê é uma delas, mas também pesaram fatores como o defensor ter percebido que realmente poderia viver apenas com o futebol. A convivência com seus atuais empresários, que exigiram dele um comportamento mais profissional, foi outro incentivo.

As cicatrizes que o futebol deixou no jogador

Breno é descrito por pessoas que trabalham com ele como um jogador de personalidade forte, viril, mas extremamente leal. “É um cara de personalidade forte, mas normal. Hoje, aqui no Náutico, o torcedor gosta muito dele pela imposição que tem colocado nos jogos. O grupo gosta muito dele também. É um cara que conversa com todos e tem uma liderança boa”, disse Beto Campos, treinador do time pernambucano.

“Percebemos uma convivência muito pacífica com todos os companheiros”, adicionou Emerson Barbosa, vice-presidente de futebol do Náutico. “Demonstra muito espírito de grupo e vem se destacando pela liderança. Está há pouco tempo no Náutico, mas não percebemos nenhuma conduta antidesportiva ou desleal. Ao mesmo tempo, é muito aguerrido. Pelo momento em que o Náutico se encontra, vem demonstrando um espírito de superação”.

Diretoria e comissão técnica do Náutico sabiam pouco sobre a história de Breno até o jogador ter se tornado personagem de uma reportagem do jornal “Diário de Pernambuco”. No texto, relatou histórias do tráfico e das brigas de torcida.

No entanto, a história não repercutiu negativamente. Jogadores quiseram conhecer mais detalhes sobre o passado de Breno, mas a confissão do defensor acabou se tornando muito mais um exemplo de superação.

“Tive coragem de me expor. Não posso esconder a pessoa que eu sou”, disse o jogador. “Eu me sinto um sobrevivente. Me sinto um vencedor. Tem uma faixa dos Racionais, um grupo que ajudou muito minha cabeça. Muita gente critica e diz que é música de bandido, mas nunca parou para ver a mensagem. Tem uma música do Nego Drama que diz ‘sou exemplo de vitória, trajetos e glórias’. Passei por muita coisa ruim na vida, mas hoje estou firmão e bem. Conto minha história para que sirva de exemplo e para que outros não façam isso.”

Breno ainda tem objetivos comuns à maioria dos jogadores. Pensa em tirar o Náutico da situação incômoda que o time vive – é o lanterna da Série B do Brasileiro – e sonha com oportunidades internacionais ou na primeira divisão.

Independentemente do que acontecer na sequência da carreira, contudo, Breno já tem motivos de sobra para dizer que venceu. Talvez até para fazer uma festa no Parque São José.