Topo

Por que o Palmeiras não saiu da fila em 86? Mirandinha conta detalhes

Hoje técnico, Mirandinha, ex-Palmeiras, comando o time do Genus-RO à beira do campo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Marcello De Vico e Vanderlei Lima

Do UOL, em Santos e São Paulo

14/08/2017 04h00

O ano de 1986 ficou marcado na história do Palmeiras por um de seus grandes vexames. Depois de eliminar o Corinthians nas semifinais, o clube alviverde entrou na decisão com amplo favoritismo sobre a modesta Inter de Limeira, que havia levado a melhor sobre o Santos na outra semi.

Depois de um empate sem gols no jogo de ida, o time interior aproveitou uma falha histórica do lateral Denys e, com uma vitória por 2 a 1 em pleno Morumbi, levantou a taça do Campeonato Paulista. Mais de 30 anos depois, Mirandinha, atacante ‘fominha’ que chegou à seleção brasileira e defendia o Palmeiras, hoje dá a sua versão para o vexame e aponta o técnico José Luiz Carbone como um dos grandes responsáveis pela derrota.

Em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, Mirandinha, primeiro brasileiro a jogar na Inglaterra (defendeu o Newcastle, em 1987), conta detalhes do fatídico dia 3 de setembro de 1986, data em que o Morumbi recebeu quase 80 mil pessoas. Reserva no primeiro jogo da decisão, o atacante – que havia marcado dois gols na vitória por 3 a 0 sobre o Corinthians na segunda semi – reclama por não ser aproveitado como titular em todos os jogos da reta final do Estadual e revela um racha no elenco, com dois grupos: ele de um lado e Jorginho (Putinatti) do outro.

Francisco Ernandi Lima da Silva, o Mirandinha, durante jogo pelo Palmeiras em 1986 - Wilson Melo/Folhapress - Wilson Melo/Folhapress
Imagem: Wilson Melo/Folhapress
“Na verdade, nós não começamos a perder o título na final contra a Inter de Limeira, foi lá atrás, no jogo contra o Portuguesa [pela primeira fase]. Alguns jogos antes eu tinha tomado o terceiro cartão amarelo, contra o Comercial de Ribeirão Preto, e o Edmar era o meu reserva e ainda não tinha jogado, não tinha feito nenhum gol no campeonato... Eu era simplesmente o artilheiro do Campeonato Paulista, mas como eu estava suspenso, o técnico Carbone escalou o Edmar e ele fez dois gols contra o Santo André. Depois, no jogo seguinte, contra o Portuguesa, no Pacaembu, o Carbone me deixou no banco e escalou o Edmar. O time estava perdendo por 1 a 0, quando ele mandou eu aquecer, o Edmar fez um gol... Mesmo assim eu entrei no lugar do Edmar e fiz também mais um gol, e quando veio a semifinal contra o Corinthians ele me deixou no banco no primeiro jogo, começou com o Edmar”, recorda Mirandinha.

“No segundo jogo contra o Corinthians aconteceu a mesma coisa: ele me deixou no banco, e o time precisava ganhar o jogo, tinha perdido de 1 a 0 para o Corinthians... E aí o Carbone me colocou na metade do segundo tempo, eu fiz o gol aos 47 minutos, fiz o segundo gol aos 5 minutos da prorrogação e, no primeiro jogo da final contra a Inter de Limeira, eu estava no banco de reservas de novo, sendo o artilheiro do time com os dois gols marcados contra o Corinthians... Eu cheguei a 18 gols e mesmo assim fiquei na reserva, então a perda do título foi provocada por essa situação”, acrescenta, para depois falar sobre o racha no elenco alviverde.

Kita disputa lance na final do Paulista de 1986 entre Inter de Limeira e Palmeiras - Arquivo/Folha Imagem - Arquivo/Folha Imagem
Imagem: Arquivo/Folha Imagem
O Palmeiras tinha uma divisão: eu cuidava dos garotos que subiam da base, como o Denys, Caçapa, Edu Manga, Ditinho, Martorelli, o Ivan, era o nosso grupo... E tinha o outro grupo que era do Jorginho, do Éder Aleixo, do Márcio Alcântara, e isso rachou, porque o Carbone dava preferência para este grupo, porque faziam pagode juntos, andavam com os batuques dentro do carro, essa coisa toda. Eu cuidava dos meninos, e isso trouxe um certo desgaste, tanto é que, neste jogo contra a Portuguesa, que o Edmar fez o gol, o Jorginho foi lá, abraçou o Edmar, comemorou... Eu fazia gol e ele nem ia comemorar comigo, então isso foi um dos problemas”.

De acordo com Mirandinha, o técnico Carbone ainda errou em outra questão: tática. “A estratégia que o Palmeiras usou foi errada. No primeiro jogo da final ele começou com o Edmar, empatamos 0 a 0, e no segundo jogo ele fez a grande besteira da vida dele para acomodar toda essa situação: colocou eu, Jorginho, Edmar e o Éder Aleixo; perdemos muito com isso no meio-campo e sobrecarregou a defesa. Foi onde nós perdemos o Campeonato Paulista de 86. A Inter de Limeira ganhou o jogo no meio e nós ficamos atacando com um time só de atacantes, praticamente sem ninguém ter características defensivas”, completou.

Virou ‘fominha’ após conselho de Vavá

Ao longo da carreira, Mirandinha muitas vezes foi visto por torcedores e até mesmo pelos companheiros como um jogador ‘fominha’. O ex-atacante prefere não usar esse termo, mas admite que em muitas ocasiões preferia a jogada individual do que servir um companheiro. E explica não só o motivo como também de onde (ou por quem) foi convencido disso.

Mirandinha, ex-atacante do Palmeiras, com o filho e a esposa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
“Eu ouvi de um dos maiores artilheiros da história do Brasil, que foi o Vavá, com quem eu trabalhei no Ferroviário-CE, no início de carreira: ‘Meu filho, você, como atacante, tem que ter duas coisas que são super importantes: primeiro, acreditar que você pode fazer, e segundo, não tirar a responsabilidade em cima de si para passar para um companheiro’, então eu coloquei essa situação na minha cabeça e treinava exaustivamente para fazer gol da linha de fundo, por quê? Como eu era um jogador muito rápido, às vezes eu chegava à linha de fundo e não tinha ninguém, estava eu, o gol e o goleiro, então, para não desperdiçar uma jogada que poderia resultar num gol, eu fazia sozinho, mas isso não era egoísmo, era uma coisa em que eu acreditava e fiz muitos gols da linha de fundo, porque eu treinava esse tipo de jogada”, lembra.

Mirandinha conta ainda que um ex-craque do futebol inglês chegou a elogiá-lo justamente por esta característica em especial: “Um dia eu ouvi de um monstro sagrado do futebol mundial, o George Best, numa matéria dele na Inglaterra, e  estava assim: que eu era um jogador que sempre recebia a bola livre e que eu tinha muito poder de definição, coisa individual, então isso, para mim, soou como uma coisa positiva porque, às vezes, as pessoas falavam que eu era fominha, que eu era egoísta, essas coisas todas, mas não é que eu fosse egoísta ou fominha, é que eu acreditava que eu podia fazer o gol da linha de fundo”, acrescenta.

Chegou à seleção, que já tinha craques como Romário

As boas atuações pelo Palmeiras renderam a Mirandinha uma convocação para a seleção brasileira, em 1987, para uma excursão pela Europa - Carlos Alberto Silva era o técnico. Uma contusão, porém, fez a participação do ex-atacante - que iniciou como titular - acabar mais cedo.

Ex-atacante do Palmeiras, Mirandinha concede coletiva como técnico do Genus-RO - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
“Foi uma situação colocada por Deus, porque a gente tinha no grupo eu, Careca, Muller, Romário e Bebeto, todos atacantes. Porém, na véspera da viagem para a Europa, o Careca foi negociado com o Napoli, da Itália, e teve que pedir dispensa para poder resolver a vida dele. Eu não tinha certeza que ia jogar porque tinha muita gente boa no grupo, mas o seu Carlos, que foi para mim um paizão, que me deu todas as oportunidades em termos de seleção brasileira, fechou comigo e disse: “Você quem vai jogar”. E não era fácil você jogar e olhar para o banco de reservas e ver Romário, Bebeto, essa turma toda te secando [risos]. Mas eu joguei quase todos os jogos, só não concluí a excursão à Europa porque me machuquei no jogo contra a Finlândia... Eu joguei contra a Inglaterra e fiz o gol, Irlanda, Escócia, Finlândia e Israel... No jogo contra a Finlândia eu saí machucado no primeiro tempo ainda e entrou o Romário. Foi quando ele fez dois gols contra a Finlândia, um contra Israel e depois disso eu não tive mais oportunidade na seleção”, lembra.

Primeiro jogador brasileiro a atuar na Inglaterra

Pouco depois de marcar gol pela seleção brasileira na excursão pela Europa (veja vídeo no topo), Mirandinha deixou o Palmeiras para acertar com o Newcastle e assim se tornou o primeiro jogador brasileiro a atuar em um time da Inglaterra.

“Já tinha uma aproximação do Newcastle através do Humberto Silva, que foi a pessoa que me levou para a Inglaterra. Ele era um garoto estudante de universidade que estava fazendo intercâmbio na Inglaterra e muito meu amigo, o pai dele palmeirense roxo, conselheiro e tudo, e aí eles pegaram o meu material e começaram a enviar daqui pra lá, e a pessoa que morava com ele na casa na Inglaterra tinha acesso ao empresário do Nigel Mansell [ex-piloto de Fórmula 1], e esse empresário tinha acesso ao Malcolm Macdonald, que foi um grande atacante na história do Newcastle... E o Malcolm foi me colocando dentro do Newcastle e, quando eu fui para a excursão à Europa em 87 com a seleção brasileira, eu não apenas fiz o gol contra a Inglaterra como também fui escolhido melhor em campo. Depois, contra a Escócia, eu não fiz gol, mas novamente fui escolhido melhor em campo, então com certeza isso contribuiu para a minha ida para o Newcastle. Eu fui vendido pelo Palmeiras por 950 mil dólares na época”, conta Mirandinha, que hoje se diz torcedor alviverde: “sou um palmeirense, com certeza”.

O ‘grande erro’ na carreira: voltar da Inglaterra

A passagem de Mirandinha pela Inglaterra, porém, não durou muito. O ex-atacante preferiu permanecer no Brasil após um empréstimo para o Palmeiras e, até hoje, classifica esta decisão como o ‘grande erro’ em sua carreira.

Mirandinha com a camisa do Newcastle - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images
“No início foi um pouco difícil a questão do frio e da alimentação, mas logo depois eu me adaptei totalmente e foi algo de muita valia na minha carreira, na minha vida pessoal. Eu hoje, graças a minha ida para o Newcastle, falo inglês. Eu fiquei pouco porque eu quis ficar pouco. Não que eu me arrependa disso porque eu voltei para o Palmeiras emprestado, mas foi um dos meus erros. Na minha primeira temporada eu tinha disputado a artilharia da Liga, fiz muitos gols pelo Newcastle, e voltei para o Palmeiras depois que, na segunda temporada, o time tinha sido rebaixado. Eu tinha ainda um ano e meio e contrato com o Newcastle, o Palmeiras me trouxe por empréstimo de seis meses, e aí foi quando aconteceu a grande virada dentro do Newcastle, quando se tornou verdadeiramente um clube empresa, adquirido por um dos caras mais ricos do norte da Inglaterra, o Sir John Hall... Ele era meu fã incondicional e queria que eu retornasse logo quando adquiriu os 51% do clube, mas eu não voltei”, conta Mirandinha.

“Tudo pronto para eu voltar, passagem na mão, casa para eu voltar com a família, e eu acabei dizendo não ao Newcastle para ficar no Palmeiras. Eu aprendi a gostar muito do Palmeiras e, além disso, tinha uma pessoa que era um pai para mim dentro do Palmeiras, que era o Gilberto Fagundes, era conselheiro. Ele me ajudou muito nesse retorno ao Palmeiras e eu, também visando ser convocado para a Copa da Itália de 1990, eu resolvi ficar, disse não ao Newcastle, que estava me propondo uma renovação de contrato por mais quatro, cinco anos. Infelizmente eu não fui para a Copa de  1990, tive uma contusão muito séria, uma fratura no maxilar muito forte que quase me fez perder uma vista, e isso faz parte das nossas vidas. Eu não costumo lamentar muito, não, eu prefiro viver os bons momentos, lembrar os bons momentos... Eu só coloco isso como um grande erro”, acrescenta.

Como treinador, sente-se rejeitado por clubes maiores

Técnico de futebol há 18 anos, Mirandinha acumula passagens por Fortaleza (campeão estadual em 2009), Rio Negro-AM (campeão estadual em 2001) e Ferroviário-CE, entre outros, além de também ter tido experiência fora do Brasil em países como Arábia Saudita, Malásia e Sudão. Prestes a fazer um curso da CBF para ampliar ainda mais seus conhecimentos e sua capacidade, ele sonha em treinar clubes de maior expressão, mas ainda se vê rejeitado no mercado.

“Existe, sim, essa discriminação. Em 2009, por exemplo, eu peguei o Fortaleza como interino, fiz os três primeiros jogos e ganhei os três: ganhei da Desportiva Ferroviária, na primeira fase da Copa do Brasil, 3 a 0 em Fortaleza, tirei o Paraná Clube na segunda fase - ganhamos de 2 a 1 em Fortaleza e empatamos por 1 a 1 em Curitiba, e saímos depois para o Flamengo. Essa, pra mim, é a grande prova que eu tenho capacidade para dirigir qualquer equipe. Essa passagem pelo Fortaleza me qualificou como treinador de futebol”, disse o treinador Mirandinha.

Segundo ele, porém, questões extracampo impedem que ele tenha uma chance em alguma equipe de maior expressão. “Eu tenho essa convicção de que eu posso trabalhar em alto nível, agora eu precisava ter oportunidades... Mas infelizmente existe uma situação dentro do Brasil que, quem está alinhado com determinado empresários, você vai embora, e quem não está, fica para trás. Eu penso que não poderia ser por aí, tem que analisar a capacidade”, finaliza Mirandinha, que nasceu em Fortaleza, registrado em Chaval (CE), hoje está sem clube e morando em São João da Boa Vista (SP).