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"R. Teixeira só falava com Kaká e tops. Nunca apertou minha mão", diz Gomes

Clive Rose/Getty Images
Imagem: Clive Rose/Getty Images

Caio Carrieri

Colaboração para o UOL, em Londres (ING)

21/11/2017 04h00

Aos 36 anos, Heurelho Gomes desfruta em alto nível da reta final da carreira. Vice-capitão do Watford, o goleiro jogou todas as 88 partidas que o clube do norte de Londres disputou no Campeonato Inglês desde a campanha 2014/15, quando voltou à elite do futebol inglês. Ou seja, são dois campeonatos inteiros em campo desde o acesso somados ao atual início de temporada, que tem Richarlison, ex-Fluminense, como principal destaque do time, oitavo colocado com direito à vitória sobre o Arsenal na caminhada.

Se mantiver o ritmo incessante e seguir como dono da meta do Watford em todo o período do novo contrato, prorrogado até o término da temporada 2018/19, ele igualará Lucas Leiva, ex-Liverpool, como o brasileiro com maior número de jogos na Premier League. A conta aponta 247 exibições para Leiva e 183 para Gomes, que passou também pelo Tottenham.

No cenário brasileiro, o goleiro fez história ao conquistar a Tríplice Coroa com o Cruzeiro em 2003, sob o comando de Vanderlei Luxemburgo. Antes de chegar à Inglaterra, ergueu cinco taças nacionais pelo PSV-HOL. Pela seleção, conquistou as Copas das Confederações de 2005 e 2009, além de compor o grupo no Mundial da África do Sul, em 2010.

As memórias sobre representar o Brasil enchem Gomes de orgulho, apesar do tratamento dado por Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, a atletas menos renomados. Consagrado, o goleiro passa longe do estilo boleiro, como deixa transparecer nesta entrevista concedida ao UOL Esporte na sua casa em Londres, onde costuma se locomover de metrô – o que já rendeu histórias curiosas, como ele revela na conversa a seguir.

Grande sequência na Premier League

Não dou brecha para concorrente e os números significam sucesso no futebol inglês. Já são quase dez anos aqui e é uma marca interessante e difícil de ser quebrada. Quando assinei meu primeiro contrato com o Watford, em 2014, o objetivo era subir para a Primeira Divisão. Conseguimos. Agora, a intenção é estabilizar o clube na Premier League, o que está acontecendo naturalmente. Na temporada passada corremos alguns riscos. Não acredito que o time esteja pronto para eu sair. Não quero olhar de fora e ver o time caindo daqui a dois anos.

Fim da carreira se aproxima

Já estou me preparando em todos os sentidos para encerrar a minha carreira. Talvez não vá continuar dentro de campo porque não tenho muita paciência para lidar com jogadores, mas entendo bem do jogo. Quero estar preparado, por isso vou iniciar um curso de treinador mesmo durante o tempo em que estou jogando. Gostaria de estar envolvido mais na parte fora de campo, quem sabe na área diretiva.

Irritação com jogador deslumbrado

A mentalidade de alguns jogadores está acima do que realmente somos, seres humanos passíveis de erros. Mas tem uns que se sentem acima dos outros. Essa falta de respeito me tira um pouco do sério. Não quero me deparar mais com esse tipo de atitude. Fazem sucesso, estão na mídia, mas e daí? O importante é o ser humano e o legado que vamos deixar, não aquilo que fazemos dentro de campo. Vale ressaltar que tem muitas pessoas boas também no futebol, apesar daquelas que se acham um pouco mais.

A "bolha" da vida de um jogador profissional

As coisas que chegam para o jogador são muito fáceis, mas se você se mantiver dentro disso, estará totalmente fora da realidade. E as pessoas, às vezes, não conseguem se controlar e deixam subir para a cabeça. É muito difícil sair dessa bolha depois de entrar nela. Existem aqueles com dificuldade de entender que ser jogador é apenas uma profissão, não podemos nos portar como se estivéssemos acima dos outros.

Também se deixou seduzir pela “bolha”

Com certeza. No meu caso, vim de uma família pobre, que nunca teve acesso às coisas boas. Depois que vim para a Europa, campeão pelo Cruzeiro, passei a ter condição de comprar um carro melhor, uma roupa cara, e a soberba vem, como se você fosse melhor do que outras pessoas. Já saí para a noite, gastei aquela grana toda, mas pensei: “Para que isso, cara?”. Isso não pode ser a prioridade na vida das pessoas.

A nova geração de brasileiros na Premier League

Depois de uma safra ruim, conseguimos ter uma muito boa e talentosa. No caso do Richarlison, ele é completo. Não só pelo que faz em campo, mas fora também. Tem base familiar, a cabeça no lugar, e isso é muito importante para alcançar todo o potencial que ele tem. Muitas vezes o jogador se limita dentro de campo pelo que faz fora dele. Gabriel Jesus chegou já arrebentando também, Ederson já se firmou. Não é porque tem talento que vai dar certo, tem de planejar direito a carreira. Será que se o Richarlison tivesse ido para o Chelsea ele teria as mesmas oportunidades que tem no Watford? De maneira nenhuma. Entre o Watford e o Chelsea o jogador vai querer quem? Claro que o Chelsea. Por isso que digo que o Richarlison é completo, a decisão foi dele.

Pontos fortes de Richarlison

Taticamente ele é excelente e, na Europa, se o jogador não tiver essa aptidão, não vai dar certo. Ele é forte, rápido e tem dribles que desconcertam os adversários. É complicado marcar ele. Falo que ele está jogando muito videogame, porque ele faz todos os movimentos do videogame (risos).

Impacto imediato de Gabriel Jesus

Ele já mostrou que tem personalidade suficiente para chegar na Premier League e fazer a diferença. Jogar no City é fácil (risos), mas isso só acontece porque ele tem o talento. Joga simples, mas sempre muito bem posicionado e com excelente faro de gol.

O dia em que foi parar no Big Ben todo uniformizado

Gomes - Twitter/Reprodução - Twitter/Reprodução
Imagem: Twitter/Reprodução

Na temporada passada, nós tínhamos um jogo contra o Chelsea. Em Londres, ou o elenco treina à tarde e vai direto para o hotel ou o treino é de manhã e todo mundo se encontra às 19h no hotel. Nesse dia, saí de casa 17h. Chamei o Uber. Quando o cara chegou, disse que seriam mais de duas horas de trajeto. Então, ao invés do motorista me levar até o hotel, pedi para ele me deixar no metrô mais próximo daqui de casa. Já estava com o uniforme, de bermuda até. Desci em Westminster, perto do Big Ben, e até ali estava difícil de conseguir táxi. Alguém tirou uma foto, postou no Twitter e viralizou. O que eu estava fazendo ali? Indo para o jogo contra o Chelsea (risos).

O hábito de pegar metrô

Aqui é muito tranquilo, gosto de andar de metrô, principalmente quando estou à paisana. Ninguém vai notar. Se notarem, já passei. A não ser que a minha esposa esteja de salto e estejamos indo para um jantar, sempre vou de metrô. O príncipe do Reino Unido já andou de metrô e eu não vou andar? Aqui a pessoa não olha como você está vestido, qual o seu carro. Se você quiser ter um carro melhor, você vai ter, mas o foco aqui não é esse. No Brasil, se você não tem carro, você não é ninguém. É cultural, de berço.

Goleiros do Brasil para a Copa da Rússia

A seleção está muito bem servida, apesar de nenhum dos três que vêm sendo convocados ter experiência em Copa do Mundo. Sou fã do Alisson, um goleiro que se impõe. Não joga tão bem quanto o Ederson com os pés, mas dá conta se precisar. Cássio está acostumado a atuar no estilo do Tite e tem conquistas importantes com o Corinthians. Mas vejo principalmente o Ederson como o futuro para o gol do Brasil.

Ambiente pesado da cartolagem na seleção

Eu sentia até pela maneira que tratavam os jogadores. Ricardo Teixeira nunca pegou na minha mão. Ele ia nos tops. Dá para ver a índole do cara nesses detalhes. Eles diferenciavam os jogadores. Não eram todos que eles apertavam a mão. Isso é feio. Por ser presidente da CBF na época, ele tinha de ser respeitoso com todo mundo. Via ele por perto, mas se estivéssemos sentados Kaká e eu lado a lado, ele cumprimentaria o Kaká e me ignoraria. Não era só comigo, com outros jogadores também. Tenho pena desse tipo de pessoa. A seleção poderia ser bonita completamente.

Dunga na seleção

Tinha as particularidades dele. A relação (turbulenta) com a imprensa talvez tenha feito com que as pessoas diminuíssem a qualidade dele como treinador.

O fim da carreira de Vanderlei Luxemburgo

O futebol passou muito rápido para ele e muitas vezes a pessoa não está preparada para seguir a evolução do futebol. Hoje qualquer time pode ganhar de qualquer um. Antigamente era mais definido. O Vanderlei estudava muito, dava gosto ver o Vanderlei dando treinamento, o jeito que ele armava a equipe desde a zaga. Sou muito grato a ele, mas talvez o futebol foi muito mais rápido do que ele esperava.