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Lixão financia sonho e drama familiar molda nova promessa da Chape

Primeiro gol de Bruno Silva como profissional saiu em 9 de fevereiro, contra o Tubarão - Sirli Freitas/Chapecoense
Primeiro gol de Bruno Silva como profissional saiu em 9 de fevereiro, contra o Tubarão Imagem: Sirli Freitas/Chapecoense

Gabriel Carneiro

Do UOL, em São Paulo

02/03/2018 04h00

Mara e Givanildo nunca tiveram uma vida fácil em Carazinho, cidade de 60 mil habitantes e distante cerca de 300 km de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. De forma humilde, eles criaram três filhos homens: Alan, Bruno e Matheus, com diferença de dois anos de idade um em relação ao outro. Os olhares mais atentos às revelações do futebol brasileiro já conhecem o filho do meio deste casal: é Bruno Silva, camisa 29 da Chapecoense em 2018. Aos 17 anos, o atacante já entrou em campo nove vezes na temporada, marcou seu primeiro gol em fevereiro e virou a nova sensação do clube. Para orgulho dos pais.

A história da promessa dentro de campo mal começou, mas fora dele já tem capítulos de luta e drama. Além de uma tragédia familiar que ajudou a moldar a personalidade de Bruno Silva, ele também encontra em sua criação os maiores exemplos do que é necessário para atingir cada objetivo. Lá atrás, faltava dinheiro para financiar os sonhos de ser jogador por conta do desemprego de Givanildo. Mara resolveu os problemas no lixão. Literalmente.

"Ele começou jogando nos campinhos onde a gente morava, mas todo mundo dizia que era pouco, que ele tinha que tentar ser jogador mesmo, treinar em algum lugar que pudesse levar ele a isso. Só que a criação do Bruno foi com muita dificuldade. Muita mesmo. De pobreza, humildade da família. Então eu comecei a trabalhar com reciclagem para ajudar, no lixão mesmo. Trabalhava para poder pagar mensalidade em escolinha, comprar roupa, chuteira, às vezes achava roupas também. Foi o lixão que proporcionou tudo isso que está acontecendo", afirmou Mara, ao UOL Esporte.

Bruno Silva, da Chapecoense - Divulgação/Chapecoense - Divulgação/Chapecoense
Camisa 29 atuou em nove partidas de 12 disputadas pela Chape nesta temporada
Imagem: Divulgação/Chapecoense

Mara hoje não trabalha mais com reciclagem. E não tem qualquer vergonha de relembrar o assunto, que faz parte de sua história de vida. A família se mudou de Carazinho para Constantina, que é mais perto da divisa com Santa Catarina. Hoje, as ocupações da mãe de Bruno são a presença nos jogos do filho, a criação de Matheus, de só 15 anos, e os cuidados especiais com Alan. Aos 19, o irmão mais velho do jogador da Chape é cadeirante. A paraplegia não é nenhuma questão de nascença, e sim fruto de um acidente que recentemente completou um ano.

"Foi uma tragédia, um acidente. Ele estava passando numa rua e foi atropelado por uma moto. Isso aconteceu em 14 de janeiro do ano passado e foi um baque muito forte. O Bruno ficou bem triste mesmo. Mas hoje, passado tanto tempo, acaba sendo um motivo a mais para ele jogar. O Bruno sempre foi um piá muito amoroso, apegado à família, e o esforço dele é em retorno de nós", conta a mãe da promessa.

Mara conversou com a reportagem durante uma viagem da família para comprar uma cadeira de rodas com mais sofisticação e recursos para Alan. O talento de Bruno mudou a vida de todos.

Família de Bruno Silva - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Alan e Matheus (irmãos) e Givanildo e Mara (pais) representam a base familiar de Bruno
Imagem: Acervo pessoal

Três renovações em três meses

Bruno Silva se destacou na Chapecoense no ano passado. Ele foi artilheiro do time, semifinalista da Copa do Brasil sub-17, e chamou atenção do mercado. Ele não tinha contrato profissional, mas a partir dali despertou a atenção de clubes e observadores e passou a ser mais valorizado internamente. O imbróglio contratual fez o time catarinense nem inscrever a promessa na Copa São Paulo de Juniores, com medo de que ele se destacasse novamente e saísse de graça. Em compensação, o técnico Gilson Kleina passou a utilizá-lo entre os profissionais.

A estreia foi em 24 de janeiro, por três minutos contra o Criciúma, em jogo que terminou empatado sem gols no Campeonato Catarinense. Depois disso vieram mais oito exibições, inclusive em ida e volta dos jogos da primeira fase da Copa Libertadores contra o Nacional (URU), e dois jogos como titular. Em um deles saiu o gol contra o Atlético Tubarão, seu primeiro como profissional, e que originou a terceira proposta de renovação em três meses. 

Bruno Silva, da Chapecoense - Divulgação/JMB - Divulgação/JMB
Embaixador Jakson Follmann participou da renovação da promessa na Chape
Imagem: Divulgação/JMB

O novo contrato foi fechado na semana passada. É válido até 31 de dezembro de 2022 e sob multa rescisória de 30 milhões de euros (R$ 118 milhões, aproximadamente). O salário também foi reajustado e marcou a mudança definitiva na vida da família Silva.

A descoberta da promessa

A trajetória de Bruno Silva conta com vários anjos da guarda. Um dos primeiros é Jane Andreia da Rosa. Ela é mãe do também jogador Gustavo Schuster, nascido em 2000 como Bruno, e indicou o menino de Carazinho para formar um catadão de garotos que representava a cidade de Constantina em uma competição amadora há oito anos. O comandante deste time era Cézar Scolari (sem relação com o Luiz Felipe), que chegou à final contra o time da cidade de Sarandi. O primeiro jogo das finais foi 7 a 0 para o adversário.

"Perguntei a algumas pessoas se elas não conheciam nenhum jogador que se destacasse para eu levar ao segundo jogo da final e a mãe do Gustavo disse que sabia. Era um menino de Carazinho, mas que vivia em uma realidade social muito difícil, família carente e tal. Para chegar na casa do Bruno não foi fácil, mas fui. Hoje posso dizer isso porque a família não tem vergonha da pobreza, mas me deparei com cenas duras naquele primeiro contato. Com dez anos, o Bruno me olhou muito sério e disse que ia para o jogo. Já era senhor de suas próprias razões", conta Scolari anos depois do episódio.

Bruno colocou uma sacola nas costas e saiu com Cézar para o jogo entre Constantina e Sarandi. Quando ele e o treinador chegaram ao ginásio em que seria o confronto os outros meninos já estavam se trocando. E foi quando Cézar teve mais um choque: o menino da Vila Princesa de Carazinho não tinha calção ou tênis adequados para jogar na quadra. De última hora um comerciante de materiais esportivos da cidade levou o que era necessário para Bruno entrar no jogo. E o resto é história...

"Aconteceu que ganhamos o jogo de 9 a 1 e ele fez oito gols. Juro para você (risos)".

Dispensa do Inter e novos rumos

Bruno Silva, da Chapecoense - Divulgação/Chapecoense - Divulgação/Chapecoense
Em 2017, Bruno marcou 48 gols pelos times sub-17 e sub-20 da Chape e foi promovido
Imagem: Divulgação/Chapecoense

O jogo por Constantina foi o primeiro de uma série que Bruno Silva realizaria no Rio Grande do Sul até ser observado pelo departamento de base do Internacional. Entre testes e avaliações, noite passadas em pensões e enfim um contrato de formação. O garoto tinha afeição especial pelos Gre-nais e, mesmo sendo torcedor do Grêmio na infância, decidiu vários jogos a favor do Colorado. Foram quatro anos no clube até que uma dispensa pegou a todos de surpresa.

Não houve um motivo único para o Inter abrir mão de Bruno, mas sim um acumulado de problemas: de acordo com uma pessoa ouvida pelo UOL Esporte, as condições psicológicas impostas por uma realidade social complicada tiveram influência em atos do garoto. No dia a dia, Bruno era uma pessoa retraída, com dificuldade de aceitar opiniões diferentes da sua e de relacionamento ruim com algumas pessoas. Ao mesmo tempo, o acidente com o irmão e as dificuldades familiares atribularam sua cabeça e atrapalharam ainda mais a caminhada. Um empresário da época também abandonou Bruno, que voltou a Carazinho à espera de novas chances.

Foi aí que surgiu a Chapecoense, há dois anos. Mesmo em posse de informações pesadas sobre o histórico disciplinar de Bruno Silva, o time catarinense decidiu fazer a aposta em seu potencial. Uma discussão com um treinador após uma partida ruim quase colocou tudo a perder, mas pessoas próximas do jogador buscaram ajuda psiquiátrica e descobriram uma forte variação hormonal em momentos de tensão. Com este desvio controlado por auxílio de medicamentos, Bruno não registrou mais episódios de indisciplina e abriu caminho para tudo o que está vivendo hoje.

O futuro já começou

Bruno Silva será pai. A namorada Gabriela, com quem vive em Chapecó, está grávida de sete meses e o casal já prepara a chegada de Sophia ao mundo. Em Constantina, Mara, Givanildo, Alan e Matheus estão iniciando planos para a construção da primeira casa própria da família, uma conquista que há três meses era improvável. E há três anos era simplesmente impossível.

"Para mim é muita emoção tudo o que está acontecendo. Só posso pedir a Deus que ele continue no lugar onde está e cada vez conquiste mais coisas na vida dele. É como se fosse a prova de que todo mundo que luta e quer pode conquistar", conta a orgulhosa mãe. Futura vovó.

Família de Bruno Silva e Alan Ruschel - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Pais de Bruno ao lado da nora Gabriela, que está grávida, e do jogador Alan Ruschel
Imagem: Acervo pessoal