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Sobrevivente de tragédia do Liverpool homenageia Chape e idolatra Firmino

Caio Carrieri/Colaboração para o UOL
Imagem: Caio Carrieri/Colaboração para o UOL

Caio Carrieri

Colaboração para o UOL, em Liverpool (ING)

03/04/2018 04h00

Os olhos azul turquesa brilham, e o torcedor da velha guarda do Liverpool, clube inglês com mais títulos (cinco) da Liga dos Campeões, narra com entusiasmo a primeira vez que sentiu a magia do estádio de Anfield, onde os donos da casa começam a decidir, nesta quarta-feira, às 15h45 de Brasília, uma vaga na semifinal do torneio diante do Manchester City.

Era 1966. O pequeno Peter Carney, então com seis anos, saiu de fininho, escondido dos pais, da pelada na rua com os amigos para ver de perto o vermelho vibrante que conquistara seu coração e que tinha vencido a Copa da Inglaterra na temporada anterior.

“Estávamos defendendo o título, e eu aproveitei o dinheiro que a minha tia havia me dado e escapei para uma experiência inesquecível”, conta Carney. “O estádio estava lindo, mas apanhamos do Chelsea por 2 a 1, na terceira fase, e quando voltei para casa fui eu que apanhei da minha mãe, que descobriu que eu tinha escapado da turma perto de casa para me juntar a 55 mil pessoas (risos)”.

O baque da primeira vez não abalou o amor deste torcedor fanático, que fala de futebol com o entusiasmo de um garoto. Parece uma enciclopédia viva, tamanha a desenvoltura, a quantidade de informação e o nível de detalhes que transmite com extrema clareza ao conversar sobre o assunto. Ciente do apelo de Liverpool entre os turistas tanto por ser berço dos Beatles como por abrigar dois dos clubes mais tradicionais do país – o Everton colore de azul a outra metade da cidade – ele organiza tours e abastece os excursionistas com curiosidades sobre futebol em diversos pontos do município.

Durante as duas horas e meia de passeio, apenas um tema joga água no entusiasmo do anfitrião. A chama do fascínio por futebol dá lugar às lembranças do pior – e quase último – dia da sua vida. Os olhos enchem de lágrimas, e a voz embargada rememora a data que mudou para sempre a história dos Reds e do futebol inglês: 15 de abril de 1989, quando 96 torcedores do Liverpool morreram esmagados e pisoteados por superlotação em Hillsborough, estádio do Sheffield Wednesday que sediou a semifinal da Copa da Inglaterra entre o time de Carney e o Nottingham Forest.

Então aos 29 anos, o aficionado ficou frente a frente com a morte. “É uma luta explicar o impacto que isso ainda causa em mim. Tenho viva a imagem de assistir, de fora do meu corpo, o meu esmagamento”, diz. “A minha última memória foi ‘E Tina e o bebê?’", recorda, com os olhos marejados, sobre a mulher grávida de Thomas, que nasceria no fim daquele ano. “Depois de pensar neles, desmaiei e fui carregado inconsciente para fora do estádio”.

Caney também passou o gosto pelo Liverpool para a geração seguinte da família. Há mais de 25 anos, ele e o filho têm o carnê para todos os jogos da temporada. Ao mesmo tempo que o ritual de frequentar o Kop, o setor mais popular de Anfield, dá sentido à vida deles, o trauma que o pai viveu há quase 30 anos ainda determina de onde assistem aos jogos na que consideram a segunda casa.

“Toda vez que entramos em Anfield, vamos direto para as nossas cadeiras, que ficam em uma das primeiras fileiras, perto do portão de saída. A minha primeira atitude é observar a movimentação e planejar uma rota de saída, se acontecer algum imprevisto”, confessa, a despeito da rigorosa remodelação dos estádios ingleses e o alto padrão de segurança impostos pelo governo desde o desastre de Hillsborough.

E foi ali, da fileira 8 do Kop, que Carney prestou a sua homenagem quando soube da tragédia aérea da Chapecoense, que vitimou 71 pessoas entre jogadores, comissão técnica, jornalistas e convidados nas cercanias de Medellin (COL), em novembro de 2016.

Torcedor do Liverpool com bandeira de Firmino - Caio Carrieri/UOL - Caio Carrieri/UOL
Imagem: Caio Carrieri/UOL

No ano anterior, o sobrevivente de Hillsborough havia recriado a bandeira brasileira nas cores do clube de coração para reverenciar Phillipe Coutinho, então nos Reds, e Roberto Firmino, atual vice-artilheiro da equipe, com 23 gols – duas presenças confirmadas na Copa da Rússia por Tite. Dupla-face, a versão inicial da flâmula apresentava o nome de um jogador em cada lado no espaço originalmente destinado ao lema “Ordem e Progresso”, além de cinco estrelas dentro do círculo para remeter aos títulos europeus do Liverpool.

“Fiquei receoso por mudar a coloração original e acabar ofendendo alguém, mas segui meus sentimentos de querer demonstrar a minha admiração por esses grandes jogadores”, explica. “O Barcelona gastou uma fortuna e mesmo assim não comprou o melhor brasileiro do nosso time. O Firmino é fantástico! Ele é o modelo perfeito de quem sabe o que faz no futebol moderno. A dedicação ao time é impressionante. Eu amo esse cara”.

Depois, com a fatalidade da Chape, ele substituiu o nome de Coutinho pela frase “Condolências Chapecoense”. “Quis fazer algo para demonstrar o meu carinho e a minha solidariedade a quem sofre com a perda de tantas pessoas queridas. Liverpool e Chapecoense infelizmente estão conectados pela dor”, sentencia. “O acidente aéreo aconteceu numa terça-feira, o Liverpool jogava na quarta, e a minha reação foi imediata. Lembro de preparar a bandeira poucas horas antes da partida em um café na frente de Anfield”, relata. “Levei a bandeira comigo por um ano, porque na Inglaterra existe a tradição de respeitar 12 meses de luto. Acredito que atitudes como essa ajudam as pessoas a retomar a vida mesmo com tanto sofrimento”.