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Bielsa vira esperança na 2ª divisão e usa lixo do CT por lição de humildade

No Leeds, Marcelo Bielsa mantém hábito de ver jogos sentado à beirada do campo - @LUFC/Twitter
No Leeds, Marcelo Bielsa mantém hábito de ver jogos sentado à beirada do campo Imagem: @LUFC/Twitter

Caio Carrieri

Colaboração para o UOL, em Leeds (ING)

06/08/2018 04h00

Discreto, Marcelo Bielsa foi o último a surgir no gramado pelo túnel dos vestiários do Elland Road. A despeito do céu azul, do dia ensolarado e dos raros 27 graus no norte da Inglaterra, a estrela da tarde vestiu agasalho completo, preto e com mangas compridas, na estreia oficial no futebol inglês, aos 63 anos.

No país que é palco dos treinadores superestrelas como Pep Guardiola, José Mourinho e Jürgen Klopp, o técnico argentino debutou no último domingo (5), cercado por expectativa. O cenário que encontrou e o aguarda na sequência da temporada, no entanto, passa longe da pompa e dos bilhões da Premier League, a liga de futebol mais valiosa do planeta. Na verdade, o sonho de voltar ao campeonato de elite depois de 15 anos fez o Leeds United apostar no personagem de apelido "El Loco", com métodos heterodoxos e muitas manias – algumas delas peculiares.

Um desses hábitos, o de assistir às partidas sentado em um banquinho na área técnica, quase o fez perder a homenagem que o Leeds havia preparado para lembrar, no primeiro jogo da temporada, a morte no último 23 de julho de Paul Madeley, um dos grandes ídolos da história do clube, com 725 partidas e quase 20 anos de serviços prestados. El Loco apareceu no gramado, sentou-se, confirmou com os torcedores das primeiras fileiras que não estava bloqueando a visão deles e pareceu mergulhar em pensamentos profundos, de cabeça baixa. Enquanto isso, os mais de 34 mil presentes, incluindo os 22 jogadores perfilados frente a frente no círculo central, uniram-se, todos de pé, em uma salva de palmas de um minuto em tributo a Madeley. Ao se atentar para o que acontecia à sua volta, Bielsa levantou-se tardiamente e se juntou ao gesto carinhoso.

"A contratação do Bielsa trouxe ao clube uma onda de otimismo", explicou o dinamarquês Morten Guldberg, 53 anos, que viajou à Inglaterra ao lado do filho Jonathan só para assistir à primeira partida da era Bielsa, esperançoso. "Se ele conseguir transmitir aos jogadores o estilo de jogo que ele gosta, o encaixe será perfeito com a torcida. Gostamos de fazer parte de um ambiente de pressão, e as equipes dele costumam tentar sufocar os rivais".

Dito e feito. Com alta intensidade, marcação por pressão e passes verticais, o Leeds estreou bem e venceu por 3 a 1, sem sustos, o Stoke City, rebaixado na última campanha e um dos virtuais candidatos ao acesso pelo maior poder de investimento. Gols de Klich, Hernández e Cooper para os mandantes. Afobe descontou.

Das cinco modestas contratações do Leeds para 2018/19 – Jamal Blackman, Patrick Bamford, Jack Harrison, Lewis Baker e Barry Douglas, todos britânicos – apenas o último foi titular. A equipe variou do esquema 2-3-3-2 com a bola ao 4-2-3-1 no momento da marcação.

Bielsa passou quase todo o jogo sentado, com o corpo curvado para frente e os cotovelos apoiados nas coxas. O único movimento que fazia era o de abrir a garrafinha de água constantemente. No segundo tempo, tomou café enquanto acompanhou a equipe sentir o ritmo intenso. Levantou-se apenas nos instantes finais, irritado com a queda do ímpeto da equipe de roubar a bola no campo do adversário. Sem o domínio da língua inglesa, gesticulou bastante e orientou um auxiliar a instruir o time.

“Foi um jogo de muita intensidade, com bastante ambição e grande esforço físico dos nossos atletas”, disse Bielsa após a vitória, ao evitar qualquer contato visual com os jornalistas durante a entrevista coletiva em que foi acompanhado por um tradutor. “Em alguns momentos cedemos a bola ao adversário e também jogamos muito perto do nosso gol. Isso não nos fez manter a superioridade que tínhamos conseguido construir. Tínhamos a ilusão de vencer, conseguimos, mas ainda é muito precipitado fazer qualquer análise, tanto positiva quanto negativa”, declarou, sem desviar o olhar da mesa que servia de apoio para microfones.

Por lição de humildade, elenco recolhe lixo do CT

A cartilha de Bielsa vai muito além da obsessão tática e a rigidez com o condicionamento físico dos atletas. O técnico preza muito os valores humanos dentro do elenco. Por isso, de acordo com o jornal The Guardian, durante a pré-temporada El Loco perguntou à diretoria do Leeds quanto, em média, os torcedores do clube teriam de trabalhar para conseguir comprar ingresso para um jogo. Apesar do método utilizado de cálculo não ter sido revelado, os dirigentes deram uma resposta ao treinador: cada aficionado precisa de três horas no emprego por uma entrada.

Bielsa em entrevista coletiva no Leeds United - Caio Carrieri/Colaboração para o UOL - Caio Carrieri/Colaboração para o UOL
Imagem: Caio Carrieri/Colaboração para o UOL

Resultado: durante a preparação para temporada, Bielsa reuniu o elenco no centro de treinamento e avisou que nas três horas seguintes eles limpariam e recolheriam lixo do centro de treinamento para entender o esforço dos torcedores pelo clube de coração.

“Foi uma experiência muito positiva, uma aula de humildade, porque nos fez refletir profundamente que para muitas pessoas o esforço para ganhar dinheiro é enorme e, mesmo assim, gastam o que têm com o Leeds”, explicou Hernández, autor do segundo gol na estreia, ao UOL Esporte. “Ele pediu que sentíssemos na pele aquilo que os torcedores passam pelo clube, como viajar horas para nos ver jogar e voltar para casa até de madrugada, mesmo com trabalho no dia seguinte”.

Bielsa tem apenas quatro títulos na carreira, sendo o último deles a medalha de ouro olímpica com a Argentina em 2004, dois anos após ser eliminado ainda na fase de grupos da Copa da Coréia do Sul e do Japão com Batistuta, Verón e cia. Por outro lado, a personalidade autêntica, o apreço pelo jogo ofensivo e a obstinação por variações táticas baseadas em análise de milhares de vídeos de diversos times ao redor do mundo fazem dele uma figura cult, referência até para Pep Guardiola.

Ídolo máximo na metade rubro-negra de Rosário-ARG, sua cidade natal, ele dá nome ao estádio do Newell’s Old Boys, onde atuou como jogador e treinador. Na Europa, nunca foi além de clubes médios. O Leeds aposta em Bielsa e sonha alto.