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Bernardo reflete sobre racismo no Brasil: "Me confundiram com flanelinha"

Bernardo chamou a atenção do Brighton ao se destacar pelo Red Bull Leipzig - Reuters/Andrew Boyers
Bernardo chamou a atenção do Brighton ao se destacar pelo Red Bull Leipzig Imagem: Reuters/Andrew Boyers

Caio Carrieri e Thiago Tassi

Colaboração para o UOL, em Manchester e em São Paulo

22/09/2018 04h00

Bastam poucos minutos de conversa para notar algo diferente. A clareza das ideias e a análise crítica de temas variados feitas por Bernardo Júnior, lateral-esquerdo do Brighton, são frutos de uma educação privilegiada, fora dos padrões do futebol no Brasil. Novato na Premier League aos 23 anos de idade, o jogador carrega o nome do pai e empresário, bicampeão brasileiro pelo São Paulo (1986 e 1991) e que proporcionou ao filho parte da formação no Colégio Santa Cruz, tradicional escola paulistana.

Ao mesmo tempo em que estudou com colegas da elite, na formação esportiva Bernardo conviveu com meninos de realidade bem distinta. Uma adolescência de diferenças. "No Brasil, não é novidade que a classe mais alta é composta por pessoas de pele clara, e a mais inferior por pessoas de pele escura. Como estudei em um colégio de alto padrão, com mensalidade alta, não poderia esperar algo diferente do que ser o único negro", conta ao UOL Esporte o quase jornalista, que cursou dois semestres do curso na PUC-Campinas e só trancou a graduação ao se transferir para a Europa.

Com passagens por São Paulo, Audax-SP, Coritiba, Ponte Preta, Red Bull Brasil, Red Bull Salzburg e Red Bull Leipzig, Bernardo encontra no Brighton mais um contraste social: é comandado pelo único técnico negro da Premier League, Chris Hughton, cuja missão é manter o clube do sul do país na liga de futebol mais rica do planeta. Interessado em assuntos além da bola nos países em que morou no exterior, como Áustria e Alemanha, o lateral é enfático ao afirmar que no Brasil foi onde sofreu mais com o racismo. Confira a entrevista a seguir.

Início no Brighton

Fiz uma pré-temporada muito boa, deixei uma impressão positiva, por isso conquistei a oportunidade de estrear logo na primeira rodada. Não fiz um bom jogo, até porque tive de mudar de posição, para zagueiro, no meio da partida, por causa de uma expulsão no nosso time. Não me senti tão confortável, o que talvez tenha prejudicado o meu jogo. A equipe inteira de maneira geral não foi bem. O treinador foi bem justo. Teve uma conversa comigo, explicou que a equipe tem um determinado padrão de jogo alinhado às ambições reais do clube na Premier League. Eu fui o único reforço a começar a temporada como titular, então depois ele deu oportunidade para o lateral que estava na base do time dele do ano passado. Ele foi bem, o time venceu o Manchester United e isso marca, não tem como. Na partida da Copa da Liga atuei como zagueiro e fui bem, mas não tem o mesmo peso da Premier League. Estou tranquilo. Faz parte do processo. Eu não esperava iniciar o ano jogando, o que é um sinal de que meu trabalho vem sendo bem feito e existe confiança em mim.

Treinado pelo único técnico negro da Premier League

Já tinha percebido isso porque me interesso por essa questão. Acho muito legal. Não por ele ser negro, mas por ser muito capacitado para dirigir uma equipe da Premier League, ainda mais sendo em Brighton, uma cidade de mente muito aberta, famosa pela comunidade LGBT e por aceitar pessoas de vários lugares do mundo. Já pensei muitas vezes o porquê de não existirem muitos técnicos negros no futebol. Infelizmente tem preconceito. Talvez nem preconceito, mas uma mítica sem fundamento como a do goleiro negro. É algo importante que tem de ser debatido.

Colégio de elite x realidade da formação no futebol brasileiro

No Brasil, não é novidade que a classe mais alta é composta por pessoas de pele clara, e a mais inferior por pessoas de pele escura. Como estudei em um colégio tradicional, com mensalidade alta, não poderia esperar algo diferente do que ser o único negro. A minha mãe e meu pai sempre foram muito tranquilos comigo em relação às amizades. Muitas vezes dormia na casa dos meus amigos do futebol, e era algo diferente do que eu estava acostumado, em bairros e casas humildes. O importante é que existia uma amizade, todo mundo sempre me tratou muito bem, e tenho esses amigos até hoje. Infelizmente no Brasil o preconceito às vezes vem da pessoa que também é vítima de discriminação. Já aconteceu de eu ir ao shopping com a minha mãe e me sentir vigiado pelo segurança, ou acharem que eu era um flanelinha por estar esperando a minha mãe na frente do carro, simplesmente pela cor da pele.

Sem rótulo de playboy

Quando eu era mais novo, na base, os caras pegavam no pé, principalmente pela maneira que eu falo. Em dois minutos você percebe. Mas pela minha personalidade, por não ser aquele playboy arrogante, eu conquistava as pessoas e virava só um motivo para tirar uma onda.

Papel dos pais

Meu pai teve uma boa carreira e conseguiu alcançar um padrão de vida que me proporcionou regalias em relação aos meninos com quem cresci treinando. Noto uma diferença muitas vezes entre a maneira que fui criado e os outros jogadores. Não sou melhor do que ninguém, mas o contraste existe. Para mim sempre foi muito bom poder fazer parte desses dois mundos. Cresci muito como pessoa e conseguia entender desde pequeno o que acontecia na minha cidade e no meu país. Joguei desde o sub-9 com garotos de uma classe mais inferior e estudava em um colégio muito tradicional de São Paulo. Nunca tive nenhum tipo de barreira ou preconceito justamente por isso. Meus amigos de infância são tanto da escola quanto do futebol. Sou muito grato ao meu pai por causa disso, mas não posso me esquecer da minha mãe, Irene. Ela é tão ou até mais responsável por isso. Meu pai tem o fator do futebol e vivenciou muitas coisas pelas quais passo hoje, então ele sempre conseguiu mostrar algo que eu não via. Hoje ele comenta comigo todos os meus jogos e está sempre presente na parte contratual, quando vou assinar algo novo. E a minha mãe segue pegando no pé não importa o assunto (risos).

O país onde sentiu mais preconceito

Por incrível que pareça, o maior foi no Brasil. Na Áustria, existe um fechamento para o estrangeiro em geral, mas não necessariamente por causa da cor da pele. Na Alemanha, um país rotulado pelo nazismo, senti algumas vezes uns olhares estranhos de pessoas mais velhas. Mas penso que a Alemanha fez um trabalho muito legal nas escolas de conscientização sobre o que foi o nazismo. Em Berlim e em outras grandes cidades, existem muitos estrangeiros, o que evidencia essa abertura. Na Inglaterra, a miscigenação é impressionante, com pessoas bem-sucedidas sejam elas negras, árabes, asiáticas.

A busca constante pelo conhecimento

Minha mãe sempre me incentivou a ler livros. Não gosto muito do livro físico, sou da geração da internet. Leio bastante notícia, assisto aos canais de jornalismo e comecei a ouvir bastante podcast sobre esporte, política, jornalismo, entretenimento. Gosto de saber o que está acontecendo no Brasil e no mundo e tento me manter bem informado. Só que sempre quis trabalhar com esporte e sabia que se não fosse jogador, queria ser jornalista basicamente por causa do futebol.

Lembra do pai jogador? Só por DVD

Não lembro do meu pai jogando. Ele atuou até 1998, no Atlético-PR, quando eu tinha três anos. Em casa, algo legal que ele fez foi converter todos os vídeos antigos dos jogos de VHS para DVD. Uma hora ou outra eu assisto, acho interessante. É difícil eu tentar reproduzir algo porque o futebol mudou muito, é praticamente outro esporte. No lado comportamental, pelo que me contam, meu pai tinha uma personalidade muito forte, e se impor é importante no futebol. Cada vez tento trazer isso para o meu jogo. Além disso, eu sempre acompanhei meu pai nos estádios e eu gostava muito de ir ao Morumbi, por ser perto de casa e por eu ter sido são-paulino. Eu notava o assédio e o respeito que as pessoas têm por ele. Me deixa feliz ver esse respeito e a marca que meu pai deixou em um clube tão grande como o São Paulo.

Richarlison como espelho para chegar à seleção

Chegar na seleção é um objetivo, não um sonho, porque não é impossível. A minha vinda à Inglaterra é basicamente por causa disso. Na Alemanha jogava em um clube competitivo, que foi vice-campeão e jogou Liga dos Campeões, mas aqui na Inglaterra acaba tendo mais visibilidade, independentemente do clube em que você está. O caso do Richarlison é um exemplo. Ele estava no Watford, que é um time médio, um degrau acima do Brighton, e tinha o nome comentado para uma possível convocação, que aconteceu com ele no Everton, clube com muitos jogos televisionados, principalmente quando joga contra os grandes.