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Qatar importa jiu-jítsu do Brasil para garantir segurança da próxima Copa

Aula de jiu-jítsu para soldados das Forças Armadas do Qatar, visando a Copa do Mundo de 2022 - @qatarselfdefense
Aula de jiu-jítsu para soldados das Forças Armadas do Qatar, visando a Copa do Mundo de 2022 Imagem: @qatarselfdefense

Natasha Bin

Colaboração especial para o UOL, em Doha (QAT)

24/09/2018 04h00

Classificação e Jogos

A Copa do Mundo de 2022 nem começou e já é considerada a Copa das polêmicas, mas também das oportunidades. Tendo o Qatar como palco, muito se especula sobre clima, cultura e construções faraônicas de um dos países mais ricos do mundo. Para um grupo de 30 atletas brasileiros, porém, é a chance de fazer história que prevalece. E não estamos falando do futebol que abre caminhos no Oriente Médio: o esporte da vez é o jiu-jítsu, que há um ano integra as Forças Armadas do Qatar e emprega brasileiros como instrutores.

O jiu-jítsu no Qatar

Treino das forças armadas do Qatar usa jiu-jítsu com instrutores brasileiros - @qatarselfdefense - @qatarselfdefense
Imagem: @qatarselfdefense
Muito popular nos Emirados Árabes, onde o esporte é obrigatório nas escolas, nas forças armadas e na polícia, no Qatar o jiu-jítsu é novidade: chegou há menos de quatro anos pelas mãos de três xeiques adeptos da arte marcial.

Percebendo o potencial da luta para a formação militar, o xeique Mohammed Al Thani, integrante da família real, iniciou o projeto de implantação do jiu-jítsu nas Forças Armadas. Para tal, contou com a ajuda do brasileiro Fabrício Moreira, dono da primeira (e única) academia da modalidade no país, que pediu indicações no Brasil sobre possíveis instrutores para se unirem à empreitada.

“Quando a minha esposa me contou que eu havia sido indicado, eu nem liguei. Achei que era brincadeira”, lembra Wagner Nunes, proprietário de uma unidade da academia Alliance no Rio de Janeiro. O atleta, tricampeão brasileiro No-Gi e bicampeão sul-americano, foi entrevistado pessoalmente pelo xeique, que veio ao Brasil selecionar o time que implantaria a modalidade no país.

Em agosto de 2017, 30 brasileiros embarcaram rumo à capital Doha com a promessa de reconhecimento profissional e financeiro.

Marcelo Bernardo, um dos professores de jiu-jítsu brasileiros que estão treinando as forças armadas do Qatar para a Copa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marcelo Bernardo, um dos professores de jiu-jítsu brasileiros que estão treinando as forças armadas do Qatar
Imagem: Arquivo pessoal
Qatar paga mais

Competitivo, o Qatar superou os Emirados Árabes na proposta financeira para atrair os melhores instrutores brasileiros para o país. O pacote inclui casa, plano de saúde e passagem de ida e volta ao Brasil uma vez por ano para toda a família. Em Abu Dhabi, por exemplo, a remuneração média do professor de jiu-jítsu é equivalente a 16 mil reais, já em Doha, o valor passa facilmente dos 20 mil reais. “Aqui temos a melhor estrutura e suporte para os professores no mundo, sem contar a visibilidade por conta do pioneirismo”, ressalta Wagner, que dobrou seus ganhos em relação ao Brasil.

Para Marcelo Bernardo, atleta sete vezes campeão europeu e que já ensinou o esporte em Portugal e na Rússia, o Qatar virou o sonho de muita gente. “Quando cheguei, recebia dez mensagens por semana de atletas perguntando como mandavam o currículo”. Segundo ele, o esporte tem futuro promissor no país: até dezembro, chegam mais 30 coaches brasileiros. E ainda há espaço para pelo menos mais 200 nos próximos quatro anos.

Reconhecimento profissional

Wagner Nunes foi medalha de bronze no Campeonato Europeu de Jiu-Jítsu representando o Qatar - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Wagner Nunes foi medalha de bronze no Campeonato Europeu de Jiu-Jítsu representando o Qatar
Imagem: Arquivo Pessoal
Não é só a segurança financeira que atrai brasileiros para o Oriente Médio. O prestígio e o reconhecimento somam-se aos benefícios de ensinar a arte marcial aos árabes. Em janeiro deste ano, as Forças Armadas enviaram 22 brasileiros para representar o Qatar no Campeonato Europeu, realizado em Portugal. A participação foi encarada como missão militar e o grupo teve todas as despesas pagas. “Quando voltamos, recebemos uma premiação por honrar o nome do país”, conta Wagner, que trouxe uma medalha de bronze para o quartel. “No Brasil, ganhar competição não tem retorno financeiro. É só a medalha e ainda temos as despesas com a inscrição e viagem”.

O prestígio não fica apenas no tatame: os brasileiros são contratados como militares e andam fardados como os demais integrantes do exército. Além disso, possuem um relacionamento bastante próximo com os xeiques que endossam o esporte. “É um tratamento que, no Brasil, nem passa pela cabeça. Aqui somos valorizados e admirados. Pela forma que o xeique nos trata, parece ele nos conhece há anos”.

Treino de soldados do Qatar usa jiu-jítsu - @qatarselfdefense  - @qatarselfdefense
Imagem: @qatarselfdefense
O jiu-jítsu e a Copa do Mundo

O principal papel do jiu-jítsu no Mundial de futebol será garantir a defesa pessoal dos cidadãos do Qatar, principalmente do emir, dos xeiques e das demais autoridades. “É um esporte de imobilização. Não é preciso dar soco ou chute. Você vai usar o jiu-jítsu para imobilizar a pessoa e tirar ela dali”, explica o carioca Marcelo Bernardo.

Em um ano atuando nas Forças Armadas, os 30 coaches brasileiros já formaram mais de mil cadetes em defesa pessoal, incluindo qataris que integrarão a tropa de choque que vai atuar na Copa de 2022. Servir o exército é obrigatório no país por pelo menos um ano e, desde o ano passado, o jiu-jítsu também se tornou mandatório aos cadetes, que treinam três horas por dia, quatro vezes por semana. “O nosso trabalho é focado em defesa pessoal para a Copa, não estamos formando competidores. Isso virá depois de 2022”, ressalta Marcelo.

O fator psicológico do esporte também agrega na formação militar. “O jiu-jítsu traz autoconfiança e vai fazer com que eles estejam aptos para agir em qualquer situação que surgir”, confirma Wagner. O grupo de brasileiros atua junto aos ingleses na formação tática da tropa de choque que vai garantir a segurança no mundial. “Mostramos que o jiu-jítsu é a luta mais eficaz e pode ajudar na contenção de multidões, por exemplo”.

Clima e cultura são adversários

Ao aterrissar no país, já é possível sentir um dos primeiros desafios da experiência no Oriente Médio: o clima desértico. “É um calor intenso. Já cheguei a pegar 55 graus”, lembra Marcelo, que trocou o frio da Rússia pelas altas temperaturas do Qatar. O idioma também é uma dificuldade, já que nem todos os árabes falam inglês.

Mas é o sedentarismo dos alunos que mais surpreende os professores brasileiros. “O maior desafio é vencer a preguiça, tanto pelo horário da aula como pelo fato de eles nunca terem feito atividade esportiva”, conta Wagner. A primeira aula de jiu-jítsu do dia começa às 5h da manhã, antes mesmo de os cadetes tomarem o desjejum. “Eles acordam por volta das 4h para rezar e já seguem para o treino, mas a vontade da maioria é voltar a dormir”.

Além de ensinar defesa pessoal, os coaches tentam mudar o estilo de vida dos jovens árabes, que não costumavam ter educação física na escola. “Estamos tentando tirar aquele vício deles de serem sedentários, de saírem da frente do videogame e do celular”, defende o coach Marcelo.

Outro fator que se soma à preguiça é o desconhecimento, já que o esporte não faz parte da cultura da população. “Você sai do Brasil e vê todo tipo de nacionalidade querendo aprender jiu-jítsu. Aqui é um trabalho avesso. Primeiro, temos que mostrar para eles o que é o esporte para, então, eles quererem treinar. Às vezes, é mais psicológico do que físico”, conclui. E depois de um ano de projeto, o coach já vê resultados. “Muitos saem do exército e querem continuar treinando”.

Instrutores de jiu-jítsu que trabalham com as Forças Armadas do Qatar para a Copa de 2022 - @qatarselfdefense  - @qatarselfdefense
Imagem: @qatarselfdefense

Rotina dos professores

É preciso disposição para encarar a empreitada no Qatar. A rotina é puxada e começa bem cedo. “A gente acorda umas 3h30 da manhã, pois às 4h30 já temos que estar no quartel. O primeiro turno de aula é às 5h e dura 1h30. Depois, tomamos café da manhã e seguimos para o treino dos professores, que vai até 9h30. Aí voltamos para casa, almoçamos e depois retornamos ao quartel para a aula da tarde. À noite, ainda vamos para a academia treinar”, resume Wagner.

Perguntado se vale a pena o esforço, ele não pensa duas vezes: “Vale pelo financeiro, pelo reconhecimento da minha carreira e pelo futuro dos meus filhos, que aqui estudam em uma escola onde aprendem inglês, árabe e francês. Meu contrato é de cinco anos e renovável. Pretendo ficar no mínimo dez”.