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Tragédia do Fla: contêiner é usado em escolas e celas, e nem sempre é vilão

O projeto do estádio Ras Abu Aboud, em Doha, no Qatar - Divulgação
O projeto do estádio Ras Abu Aboud, em Doha, no Qatar Imagem: Divulgação

Karla Torralba

Do UOL, em São Paulo

15/02/2019 04h00

O incêndio no CT do Flamengo há uma semana colocou em discussão a segurança nos alojamentos de clubes no Brasil. Do lado das imagens de destruição, muito ferro retorcido em quartos feitos de contêineres. Pensar em morar dentro de uma caixa feita para transporte de carga pode parecer ruim, mas esse tipo de material, se usado da maneira certa, pode ser uma solução prática e sustentável.

Nos últimos anos, projetos arquitetônicos têm aproveitado o lado bom das grandes caixas de metal. A Copa do Mundo do Qatar, por exemplo, terá o estádio Ras Abu Aboud todo de contêineres, considerado a mais sustentável instalação já projetada para um grande evento esportivo. Serão usados 880 módulos no projeto. 

Outros exemplos estão em Amsterdã, Londres e Las Vegas. Na Holanda, moradias de estudante podem ser feitas de contêiner, formando grandes prédios habitacionais. Na Inglaterra, a 'Container City' (cidade contêiner) foi criada na região do porto, onde foi erguido o Parque Olímpico dos Jogos de 2012. Nos EUA, o Container Park é um shopping aberto com estruturas modulares. No Brasil há também hospitais e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) do mesmo material. 

Cuidados de segurança são essenciais como qualquer outra construção

"No caso do CT do Flamengo, culpar o contêiner é a mesma coisa que falar que toda casa de madeira é irresponsável. Em qualquer construção é preciso planejar rota de fuga e atender normas de bombeiros. Seja a construção de alvenaria, metálica ou de madeira. O tempo de resistência do aço ao fogo é menor que o da alvenaria e esse foi o azar, além do fato de, nesse caso, ter o problema da fumaça tóxica", ressalta o engenheiro civil Baruc Bosso.

A arquiteta Isadora Araújo, do Panapaná Estúdio de Projetos, alerta que um contêiner não é uma estrutura pronta para habitação. "Um contêiner é uma caixa de transporte, não é feito originalmente para morar. O aço só vai substituir os tijolos. É como reciclar algo, mas tem que ter os mesmos cuidados com ventilação, iluminação, coisas mínimas previstas. O contêiner não pode ser pensado como algo que já vem pronto. Não é porque tem quatro paredes, um teto e piso que pode morar". 

Amsterdam - Divulgação - Divulgação
Moradias em Amsterdam feitas de contêiner
Imagem: Divulgação

O uso das caixas metálicas, porém, é prático pela mobilidade e rapidez de implementação. Mas regras para transformar contêineres em habitação envolvem descontaminação e isolamento térmico e acústico. "É preciso fazer tratamento em todo o ferro, porque a tendência é reter calor no verão e perder no inverno. Isso é, vamos dizer assim, um defeito. Mas é facilmente corrigido para que se consiga habitar de forma confortável. Esse contêiner também pode ter transportado material químico e até radioativo, então é preciso de um laudo que confirme a descontaminação para ser possível utilizar", explica Baruc Bosso.

O UOL Esporte entrou em contato com a assessoria de imprensa da NHJ do Brasil, empresa especializada em construção com contêineres que forneceu os módulos habitáveis para o Flamengo, para falar sobre o assunto, mas não teve retorno até a publicação da reportagem.

Mau uso de contêineres em escolas e presídios

Em São Paulo, o caso de uso de contêineres mais famoso foi o das Escolas de Lata, no ano 2000. Os módulos foram usados como escolas municipais, mas não recebram qualquer tratamento térmico ou acústico. Com isso, crianças e professores ocupavam locais abafados e impróprios para as aulas. "As escolas ficaram mal faladas porque foi assim: pegou o contêiner e falou 'vamos fazer escolas', mas não se preocuparam com o conforto acústico. Não foi um projeto responsável", analisa Baruc Bosso. 

Em Florianópolis, contêineres são usados como celas na central de triagem da penitenciária da capital. Abrigam mais de 200 presos. O Ministério Público entrou com ação para pedir que os 25 módulos de aço fossem desativados em 2015, mas a ação ainda corre no Superior Tribunal de Justiça de Santa Catarina. "É uma condição que não é recomendável. Não houve maiores progressos e a coisa está se deteriorando. O laudo do Ministério Público concluiu isso. Para mim, não oferece o mínimo conforto para abrigar pessoas. Tem problema de ventilação. Existe a necessidade de desativar essas celas e construir um presídio de verdade", ressalta o promotor de justiça da comarca de Florianópolis, Raul Rogério Rabello. 

Celas - Divulgação - Divulgação
Celas pré-fabricadas dos presídios do Paraná
Imagem: Divulgação

Estrutura semelhante também vira cela no Paraná

No estado do Paraná, outro tipo de estrutura pré-fabricada, parecida com um contêiner, mas feita de alvenaria, causa preocupação a agentes penitenciários e órgãos públicos. São 57 celas modulares chamadas de "shelters" (abrigo em inglês) e equipadas com camas e banheiros. Cada uma com capacidade para abrigar 12 presos. 

"Foi uma tentativa para desafogar as delegacias com superlotação, mas o número de agentes penitenciários segue o mesmo. No inverno é muito frio. No verão é muito quente. A ventilação é comprometida. Sem contar os riscos. Como vai fazer a evacuação de incêndio com seis agentes? Não tem o que fazer, vai morrer todo mundo. Não tem servidor a mais, não foi feita adaptação de estrutura", comenta a diretora do Sindicato dos Agentes Penitenciários no Paraná, Petruska Sviercoski.  

O diretor de prerrogativas da OAB-PR, Alexandre Salomão, definiu a estrutura como um "puxadinho". "É como uma casa de dois quartos em que fizeram mais cinco depois. A cozinha, o banheiro, tudo continua sendo para dois quartos. É um puxadinho. Foi feita uma compra emergencial para desafogar as delegacias. O problema não é da estrutura do shelter em si, o problema é que não é feito um equipamento complementar. É só a cela. É só um lugar. Uma jaula. Tem a dignidade da pessoa que tem que ser respeitada", comentou.

A Secretaria de Segurança Pública do Paraná disse ao UOL em nota que as celas têm ventilação por abertura na porta da frente e pela janela ao fundo. A Secretaria ainda explicou a situação dos agentes penitenciários: 

"Os shelters foram instalados de tal forma que o agente não mantenha contato físico com o preso. As aberturas são mecanizadas e feitas à distância para que haja segurança e ao mesmo tempo seja executada com o mínimo efetivo. Além disso, foram construídos pátios de sol próprios para as celas modulares, com o objetivo de reduzir também a movimentação do preso e exposição do agente. Sobre a contratação de novos profissionais, o assunto é debatido permanentemente pela Sesp em conjunto com outras secretarias de governo, levando em consideração o respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, que estipula um teto de gastos com pessoal", diz a Secretaria.