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Técnico brasileiro encara denúncia oculta e luta contra racismo na Ucrânia

Gilmar Tadeu, técnico brasileiro no FC Lviv: primeiro negro, acabou suspenso após denúncia - FC Lviv
Gilmar Tadeu, técnico brasileiro no FC Lviv: primeiro negro, acabou suspenso após denúncia Imagem: FC Lviv

Napoleão de Almeida

Colaboração para o UOL

23/02/2019 04h00

"Boa sorte no cruel mundo da Liga Ucraniana, Gilmar!", foi a frase que encerrou uma matéria do site local "Tribuna" sobre Gilmar Tadeu da Silva, o Gil Paulista, 48 anos e primeiro negro a comandar uma equipe no país do Leste Europeu. Era julho de 2018 e o ex-jogador da Portuguesa e de algumas equipes pequenas no Brasil, já radicado na Ucrânia havia 10 anos, assumia o FC Lviv, da Série A local. Não durou muito.

Na terceira semana de agosto do ano passado, Gilmar foi informado pela Liga Ucraniana de que não poderia mais treinar o Lviv, justo na véspera do duelo contra o Shakhtar Donetsk, atual líder da competição. Segundo ele, foi 'fogo amigo'. "Porque esta notificação não chegou logo quando fui anunciado?", questionou Gil. 

"Todos me conhecem na Ucrânia, eu estudo na federação, ou seja todo sabiam que eu tinha o diploma A da UEFA, mas esta notificação chegou depois de os resultados aparecerem. Aceitei a punição, tive que me ausentar do clube e voltar aos estudos, fiquei sabendo depois que esta denúncia foi feita por um funcionário do clube", contou o brasileiro ao UOL Esporte.

Gilmar voltou ao Brasil enquanto aguarda pela conclusão do certificado: "Vejo a proibição legal, pois para atuar como treinador principal é preciso ter concluído o UEFA PRO. Eu tenho UEFA A e estou cursando o último estágio UEFA PRO. Esse problema aconteceu com Zidane (em 2014, suspenso por três meses pela mesma razão ao trocar o Castilla pelo time principal do Real Madrid). Mas é complexo, por conta da denúncia perdi meu contrato, estou sem clube e tive um trabalho interrompido".

Bananas em campo e "imunidade" na guerra

Casado com uma ucraniana, Gilmar está na Europa há 10 anos, após receber um convite do Metalurh Zaporizhya para trabalhar na base do clube. Ficou, viveu episódios de racismo e as mudanças constantes no país invadido pela Rússia entre resistência e pedidos de reintegração ao vizinho. 

"A guerra trouxe prejuízos enormes, muitas pessoas morreram. Moro em Pokrovsk, fica a 150 quilômetros de Donetsk", relata sobre a terra do Shakhtar, que abrigou vários brasileiros nos últimos anos, e próxima à Criméia, região de maior tensão bélica.

"Por conta disso na minha cidade tem muitos tanques de guerra nas ruas e muitas vezes é até difícil identificar quem é soldado russo ou ucraniano. Inclusive existe um ponto positivo, se assim pode se chamar positivo: por ser negro, o único negro na cidade, não vejo riscos pois os mesmos não me identificam como cidadão ucraniano", comentou.

A cor da pele já o fez ser alvo de preconceito na Ucrânia, ainda que Gilmar faça questão de dizer que o mesmo ocorre no Brasil. "Sofri, sim, com preconceito, verbal, físico... atiraram bananas no campo, insultos... mas isso não é privilegio da Ucrânia. No Brasil mesmo existe racismo no futebol. Preconceito, parece que com jogador é velado, relevam por serem estrelas, mas realmente é muito raro um treinador negro na elite no futebol mundial." Gilmar ainda critica: "Eu também vejo um bloqueio do próprio negro em buscar se capacitar, não se sujeitar (a esse quadro)". 

Antes cercado de brasileiros, o técnico lamenta o êxodo após o início da guerra. "O futebol caiu muito em investimento, no número de equipes. Quando cheguei eram 20, hoje tem 12, duas realmente 'top', três com orçamentos baixos e as demais com muitas dificuldades. Lá atrás muitos brasileiros deixaram o país e se negaram retornar", relembrou. A Ucrânia foi a porta de entrada de jogadores como Jadson, Fernandinho, Willian e Bernard no mercado europeu.

Colega de Neymar e Prass, Gilmar vê desleixo tático nos brasileiros

Como jogador, uma carreira discreta. Foi colega de Neymar (o pai) no Mogi das Cruzes e atuou com Fernando Prass na Francana, ambos clubes do interior de São Paulo. Como técnico, uma visão do que hoje é a uma das grandes discussões do futebol brasileiro: como mudar os rumos deste esporte no país, com equipes que apresentem um desempenho melhor e mais bonito?

"Creio que educação tática, visto que o europeu é mais aplicado. O acúmulo de informações nos cursos além da experiência fora é algo muito valioso. O jogador brasileiro por natureza é muito técnico, é preciso reverter isso tudo para o conjunto. A disciplina também é algo muito importante. É bem verdade que não podemos podar a técnica dos nossos atletas e sim lembrá-los que ele deve usar isso em prol do conjunto".