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Charles, o homem que fez a Bahia queimar ingresso de jogo da seleção

Charles foi campeão brasileiro de 1988 pelo Bahia e defendeu a seleção brasileira - Reprodução
Charles foi campeão brasileiro de 1988 pelo Bahia e defendeu a seleção brasileira Imagem: Reprodução

Diego Salgado e Gabriel Carneiro

Do UOL, em São Paulo e Salvador

16/06/2019 04h00

O povo baiano ainda sentia o frescor do título brasileiro conquistado pelo Bahia em 1988 quando passou a viver um profundo atrito com a seleção brasileira no início da última Copa América disputada no país. A reação dos torcedores tinha explicação: Charles, um dos principais jogadores da campanha vitoriosa do time no campeonato nacional, ficara de fora da lista final do técnico Sebastião Lazaroni.

Charles tinha apenas 20 anos quando ganhou a vaga no time do Bahia. E tudo aconteceu muito rápido: em julho de 1989, cinco meses depois de erguer a taça do Brasileirão, o atacante já estava convocado para a seleção brasileira. Com a camisa amarela, marcou dois gols num amistoso contra o Peru em Fortaleza. Era uma trajetória rumo ao sucesso em ano de Copa América no Brasil e a poucos meses da Copa do Mundo da Itália.

Mas foi justamente no torneio continental que a história mudou. Passados 30 anos da última vez em que a Copa América foi disputada no Brasil, ele hoje é lembrado (também) como o homem que fez Salvador queimar ingressos para os jogos da seleção brasileira. "Não vai ter outro Charles", conta, ao UOL Esporte, o homem que hoje é um fazendeiro do interior da Bahia.

A situação que será descrita a seguir é única e muito provavelmente não vai se repetir no futebol brasileiro. É uma das histórias de maior rejeição que a seleção pentacampeã já viveu. E Charles é protagonista. Trinta anos depois, todas essas reações ainda estão vivas na mente. "Fui um pivô involuntário de toda aquela situação", disse.

Da esperança ao corte

Lazaroni assumiu como técnico da seleção brasileira em janeiro de 1989. Até o início da Copa América, em julho, ele disputou 11 amistosos. Charles, então destaque do Bahia campeão nacional, esteve em seis e marcou três gols. Apesar da grande concorrência pela camisa 9 do Brasil, ele estava bem no páreo junto com Careca, Renato Gaúcho, Romário...

"Estreei na seleção contra o Peru, um amistoso em Fortaleza que fiz dois gols. Depois teve um jogo no Maracanã contra Portugal em que fiz mais um gol. Então teve uma excursão à Europa em que não tivemos bons resultados e isso fez com que alguns jogadores entrassem em baixa na seleção. Logo depois teve a convocação para a Copa América, a princípio eu não estava na relação. Foi num segundo momento, quando o Careca se machucou, que eu fui fazer parte do grupo", relembra o atacante.

Bebeto - Vidal Cavalcante/Folhapress - Vidal Cavalcante/Folhapress
Bebeto, concorrente de Charles, em ação pelo Brasil na Copa América de 1989
Imagem: Vidal Cavalcante/Folhapress

O técnico brasileiro havia divulgado uma lista com 23 nomes, mas três atletas seriam cortados da relação final da primeira fase. E Charles foi um deles. "Eu estava no grupo, mas só poderia ser inscrito se passássemos da primeira fase. Foi quando houve a revolta do torcedor baiano por saber que eu não poderia jogar em Salvador diante deles", explicou.

A revolta de Salvador

Todos os jogos do Brasil na primeira fase da Copa América de 1989 estavam programados para a Fonte Nova, estádio onde o Bahia manda seus jogos. Até o corte, Charles era um dos poucos jogadores da seleção nascidos na Bahia - Bebeto é soteropolitano, mas surgiu no Vitória e já jogava no futebol do Rio de Janeiro havia cinco anos.

Ademais, Charles jogava no time mais popular da Bahia em uma de suas melhores fases na história. O problema é que Lazaroni tirou o atacante dos jogos na Bahia por opção técnica.

A reação ao corte foi absurda. Por parte de torcedores e da opinião pública. Um influente comentarista esportivo incitou que as pessoas que passavam em frente ao local onde a seleção treinava, em Salvador, xingassem o técnico da seleção.

A tensão era tão grande na capital baiana que dirigentes da CBF tentaram convencer Lazaroni a convocar Charles. O governador da Bahia na época, Nilo Coelho, ofendeu publicamente o técnico da seleção. Tentaram de tudo, mas nada feito. Aí a reação foi para as arquibancadas.

Para a torcida baiana, a não-convocação de Charles foi como se dissessem que jogar na seleção era um privilégio de jogadores do Sul/Sudeste.

Charles - Divulgação/Bahia - Divulgação/Bahia
Ídolo do Bahia, ex-atacante Charles treinou a equipe nos anos 2000 e 2010
Imagem: Divulgação/Bahia

"Quando houve o corte teve torcedor devolvendo ingresso, queimando ingresso, queimando bandeira. Fiquei feliz por um lado, mas por outro triste por ver tudo isso, como o Hino Nacional sendo vaiado, jogadores sendo vaiados, isso me deixou triste. Ninguém quer ver o Hino do seu país sendo vaiado, ninguém gosta de ver isso, eu não gostei. Acho que o protesto é válido, mas não daquela forma", relembra Charles.

Para completar, as atuações da seleção ajudavam a agravar a situação. Na estreia, nem mesmo uma vitória por 3 a 1 - e pouco convincente - sobre a Venezuela amenizou o clima bélico. A inoperância do ataque brasileiro nos empates sem gols com Peru e Colômbia completaram o enredo.

A vida continuou

Charles também não entrou em campo no quadrangular da Copa América. O Brasil, fora de Salvador, enfrentou o Paraguai no Recife na última partida da primeira fase. Depois da vitória por 2 a 0, a equipe decolou na reta final, toda disputada no Maracanã. A seleção derrotou Argentina (2 a 0), Paraguai (3 a 0) e Uruguai (1 a 0) para ser campeão da Copa América depois de 40 anos.

O atacante do Bahia assistiu ao título de perto e não foi mais convocado por Lazaroni, que acabou demitido do cargo depois do fracasso na Copa do Mundo de 1990. Ainda no Bahia, Charles foi chamado por Paulo Roberto Falcão entre o segundo semestre de 1990 e o começo de 1991. Como atleta do Cruzeiro, atuou pelo Brasil sob o comando de Carlos Alberto Parreira, em dezembro de 1991.

Charles ainda vestiu por seis meses a camisa do Boca Juniors, onde conviveu com Diego Maradona. Problemas de lesão e adaptação abreviaram a passagem, e o atacante voltou ao futebol brasileiro para defender Grêmio e Flamengo, onde foi artilheiro do Carioca de 1994, entre outros.

Na noite da próxima terça-feira (18), a Fonte Nova voltará a receber a seleção brasileira em uma partida de Copa América. O duelo será com a Venezuela, na segunda partida do time na competição. Dessa vez, sem desavenças.

"Fico feliz de a seleção retornar a Salvador e jogar uma Copa América numa situação totalmente diferente daquela. Hoje tem apelo popular, apoio do torcedor, estrutura totalmente distinta daquela época. A seleção hoje está sendo recepcionada com muita alegria e espero que seja sempre assim", destacou.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferente do informado anteriormente nesta notícia, o jogo Brasil x Paraguai pela primeira fase da Copa América de 1989 foi realizada no Recife, e não em Fortaleza. O erro foi corrigido.