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Como time gay de futebol quebrou preconceitos ao jogar 'torneio hétero'

Brasão do Diversus carrega imagem de cavalo-marinho - Lucas Faraldo/UOL
Brasão do Diversus carrega imagem de cavalo-marinho Imagem: Lucas Faraldo/UOL

Lucas Faraldo

Colaboração para o UOL, em São Paulo

23/06/2019 04h00

Portas.

Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e simpatizantes festejam hoje (23), livremente Avenida Paulista adentro, a 23ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. A principal rua da capital não tem mais portas. Simbolicamente, tinha até pouco tempo atrás: a primeira edição da hoje tradicional manifestação contra a discriminação e o preconceito sexuais data apenas de 1997 - mesma década em que a Organização Mundial da Saúde tirou a homossexualidade da lista de doenças mentais do Código Internacional de Doenças.

Estádios de futebol Brasil e boa parte do mundo afora ainda têm portas. Portões emperrados, simbólica e profissionalmente, para LGBTs no mundo da bola. Aos poucos porém vão sendo abertos por times amadores como o Diversus FC, recém-fundado em 2017, e o Real Central FC, de já respeitáveis (e põe respeito nisso) 29 anos de história.

Abrindo as portas

"Quem sabe agora, depois da nossa participação nesse festival, outras portas se abrem?"

A questão acima foi lançada por Evair Silva, 32, jogador do Diversus, na última quinta-feira, logo após participação inédita de sua equipe num torneio de futebol que não fosse exclusivo para a comunidade LGBT. Por treinar nas mesmas quadras onde aconteceria a 33ª edição do Bola Show Festival, o time que carrega no escudo um cavalo-marinho (espécie animal em que o macho engravida) recebeu convite. Foi também a primeira vez de uma equipe gay num campeonato organizado pela empresa que faz eventos esportivos desde 2000.

"Não temos preconceito. É importante mostrar que no esporte podem todos ter participação, com respeito ao próximo", diz Sidnei Agrasso, 43, responsável pela organização do festival que contou com 135 jogos num único dia na zona oeste de São Paulo. "Todos têm de ser tratados igualmente. A sociedade tem de entender que Deus ama a todos sem distinção. Só isso basta. E o preconceito está diminuindo, não há mais espaço para isso na sociedade."

O Diversus até já havia jogado contra times não-gays, mas formados por amigos e/ou conhecidos. Não existia portanto receio de discriminação partindo dessas equipes heterossexuais. Era de conhecimento de Evair e seus colegas, porém, que o ambiente onde aconteceria o festival neste feriado de Corpus Christi é heteronormativo. "Treinamos ali toda semana, né? São 90% de times héteros treinando ali também. E aí acontecem piadinhas com certa frequência, mas não há intimidade entre as pessoas então fica por isso mesmo, sem rolar alguma reação ou mesmo discriminação mais pesada", explica Evair.

Numa primeira conversa com a reportagem antes do jogo, foi relatada preparação especial para enfrentar Os Inesquecíveis, adversário no festival. "O Diversus tem jogadores bem maduros, sabem 'se comportar bem'. Temos que manter o foco no futebol e não ligar para piadinhas que com certeza haverá. Não ligar para os machistas, que sempre tem", projetava Evair, sem saber que o UOL Esporte também ouvia o outro lado no pré-jogo.

"Diferente não tem nada. Igual é que os dois times querem ganhar. Uma partida normal, mas ao mesmo tempo legal para mostrar que está acabando o preconceito. Sei que é muito difícil acabar porque tem muita gente cabeça fraca pra isso. Mas é bom isso no combate ao preconceito, né?", já falava Eduardo Quinto, 30, d'Os Inesquecíveis, antes de a bola rolar.

O apito soou. O Diversus abriu o placar. Os Inesquecíveis viraram para 3 a 1. Fotos foram tiradas com jogadores dos dois times juntos. Torcedores adversários aplaudiram e tietaram Evair e seus amigos. No fim, quem ganhou mesmo ali foram todos. Foi a diversidade.

"Foi da hora jogar com os caras, eles são muito gente boa", resume Eduardo. "Nossas torcedoras também gostaram pra caramba, tiraram fotos com eles. O jogo em si foi bom pra caramba, páreo a páreo. Todo mundo respeitou todo mundo, pessoal bem humilde, até nos chamaram para marcar outro jogo aqui na quadra. Curti."

Jogadores do Diversus tietados - Lucas Faraldo/UOL - Lucas Faraldo/UOL
Jogadores do Diversus foram tietados por torcedoras rivais
Imagem: Lucas Faraldo/UOL

Presidente do Diversus, Roger Prado se emocionou com o evento: "A gente tinha receio de torcedores serem agressivos com a gente. E foi totalmente o contrário. Eles começaram a seguir a gente no Instagram, convidaram nosso goleiro a jogar com eles nos campeonatos héteros. Eles se mostraram bem mente aberta. Mostra que o futebol realmente é pra todos."

"Foi inacreditável", suspira Evair, ofegante e com sorriso no rosto. "Não esperávamos essa receptividade deles. Eles trataram a gente super bem, super educados, sem nenhum preconceito. Até elogiaram nosso time. Super gostamos de participar desse torneio. E vamos seguir em busca de mais jogos envolvidos com times héteros também."

Vanguarda com portas fechadas

Quem viu o pessoal do Real Central ostentando a bandeira LGBT ao levantar o troféu de campeão da divisão de acesso da Champions Ligay ano passado mal podia imaginar o quão escondido atrás das portas do armário estava esse mesmo time há não muito tempo.

Fundado há 29 anos por um grupo de amigos que jogavam bola no Ibirapuera e tinham em comum, além do apreço pelo futebol, o fato de serem gays, o Real Central é vanguarda no Brasil em termos de luta LGBT por espaço no esporte bretão.

"Estou no Real há 15 anos. Esse boom recente de times gays? A gente fica muito feliz. De uma certa forma, a gente contribuiu para isso. Alguém tinha que dar o pontapé inicial. Começamos lá atrás um trabalho. E esse trabalho nosso foi visto", conta Joseano Alves, 40.

Na época em que o Real foi fundado, não havia outros times e muito menos campeonatos voltados à comunidade LGBT. Justamente no mesmo ano em que a equipe era fundada, a OMS assinava o tal decreto de que a homossexualidade não era doença.

"A gente participava dos campeonatos héteros, mas sempre nos mantivemos dentro do armário. Em 1990, no ambiente do futebol, falar que é um time gay? Você sofreria muito preconceito. Foi muito difícil o início do Real no quesito de expor. Éramos um time comum, mas com todos os jogadores gays", conta Jô, hoje considerado o líder da equipe.

O Real se orgulha de nunca ter sofrido com casos mais graves de discriminação. Mas reconhece que isso não se deu em decorrência da aceitação alheia -- e sim das portas. "Aprendemos a não nos expor. O time era mantido dentro do armário. A gente ia jogar em quebradas muitas vezes, não podia deixar transparecer que era um time LGBT", enfatiza.

Daí a importância histórica de um time como o Diversus, ostentando as cores rosa e da bandeira arco-íris em seu uniforme, jogar num campeonato hétero nesta batalha LGBT contra discriminação que já dura quase três décadas no futebol nacional. E mais (e talvez até o principal): a galera d'Os Inesquecíveis ter recebido a causa tão bem.

"A importância do hétero inserido nisso tudo é que ele leva o respeito nosso lá pra fora, de que não somos um grupo fechado, não tem promiscuidade", analisa Jô. "Quem vê de fora pode imaginar 'ai, time gay, pegação no vestiário'. Quando tem héteros nesse contexto, eles veem que é um ambiente respeitoso. Todo mundo pode participar. É importante a gente participar de campeonato hétero também para haver respeito mútuo."

Por que tem espaços exclusivamente LGBTs no futebol?

A mistura de gays assumidos e héteros no ambiente do futebol e a consequente descoberta da existência desses times e até campeonatos exclusivos da comunidade LGBT incitam questionamentos. E um dos mais ouvidos por jogadores sejam de times recém-fundados como o Diversus ou de vanguarda como o Real Central é: por que essas bolhas coloridas?

Há dois anos o Brasil vive uma crescente de equipes assumida e exclusivamente gays. O que muitos definem como "febre", no bom sentido da expressão, já engloba mais de cem times em campeonatos cada vez mais espalhados (e divulgados) pelo país. "Mas em relação aos times e campeonatos héteros, até em relação à própria cobertura da mídia, é tudo meio oculto, escondido", argumenta Evair, do Diversus.

Oculto e escondido. Mas em evolução. Acontecerá no próximo semestre a quinta edição da Champions Ligay, torneio a nível nacional da comunidade LGBT criado em 2017 -- aquele cuja divisão de acesso foi vencida pelo Real Central. A inspiração é um campeonato semelhante inaugurado em 1982 na cidade de São Francisco, na estadunidense Califórnia, berço histórico dos protestos mundiais contra a homofobia. Com a crescente recente de times gays no Brasil, já há também competições regionais nos cinco cantos do país. Está sendo finalizada a criação do primeiro Estadual com promessa de sair do papel em São Paulo ainda em 2019. "Está crescendo e avançando", sintetiza Evair.

A situação hoje seria considerada utópica para aqueles que fundaram o Real há quase 30 anos."Não tinha ambiente para eles jogarem se sentindo à vontade. Por isso se juntaram e passaram a alugar uma quadra entre eles, esse grupo de amigos gays", conta Jô, antes de pontuar mais detalhadamente o porquê das "bolhas coloridas".

"Esse 'boom' de times e campeonatos gays é importante porque você gay vai estar num lugar onde vai se sentir bem, onde não haverá discriminação. Se o hétero quiser vir jogar, será muito bem-vindo, mas saberá que o ambiente é de gays. Ele vai chegar ao time, respeitar o convívio, as qualidades, os defeitos, as brincadeiras."

Diversus tirando foto antes do jogo - Lucas Faraldo/UOL - Lucas Faraldo/UOL
Diversus FC posando para sua primeira foto num torneio que não fosse LGBT
Imagem: Lucas Faraldo/UOL

"A formação de um time totalmente LGBT significa que a gente existe e pode ocupar espaço no esporte. Significa que o esporte é para todos, para o gay, para o negro, para a mulher. Historicamente o futebol sempre foi para o homem, hétero e branco. Depois de um tempo isso foi mudando, primeiro com a inclusão dos negros e agora aos poucos da mulher e dos gays", acrescenta o presidente Roger, do Diversus.

Mas engana-se quem veja esses ambientes como clãs ou qualquer tipo de grupo fechado à diversidade -- seria contraditório em relação à luta LGBT, afinal. No próprio Real há héteros que treinam com o time e só não jogam campeonatos gays por conta dos regulamentos.

"E eles gostariam de jogar os campeonatos com a gente. A gente fica muito feliz com essa atitude deles, porque é uma inclusão dos héteros nos times gays também. A partir do momento em que eles respeitam a gente, é uma conquista nossa, porque é a sociedade respeitando a gente, vendo a gente de uma forma diferente", descreve Jô.

A luta de forma geral, a longo prazo, é pelo fim total do preconceito no futebol, num nível em que times profissionais possam ter jogadores assumidamente gays sem que esses sofram qualquer discriminação. Esse é o sonho LGBT: liberdade, felicidade e respeito. Tudo junto.

"Infelizmente o futebol é machista, né? Nos times profissionais, dificilmente um jogador vai se assumir gay, apesar de ele estar lá jogando no seu time hoje. A gente entende que ele sofreria discriminação dos jogadores do próprio time, da própria torcida, da torcida adversária, da imprensa. É algo que gera muita discriminação ainda", sintetiza Roger.

"Enquanto não chegamos nesse cenário ideal, estamos em busca de novos desafios, querendo campeonatos cada vez mais fortes, respeito em todas as modalidades esportivas, inclusive no futebol, que é uma das das mais preconceituosas no Brasil por ser um esporte de massa", diz Jô. "Estamos aí travando essa luta e brigando para uma igualdade em que futuramente seja todo mundo respeitado. Uma luta difícil, mas vamos aos poucos conseguir reverter essa história", finaliza o líder do atual elenco do mais antigo time LGBT do país.

É uma caminhada ainda com muitas portas pela frente. Mas também com muitas outras que já ficaram para trás. No ritmo da Parada Gay, ô abre alas que eles vão passar.