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Argentino é detido por injúria racial; vítima brasileira vira alvo na web

Anderson Batista foi com a namorada assistir Brasil 2 x 0 Argentina, mas passou quase todo o jogo em delegacia do Mineirão após ser alvo de injúria racial por parte de torcedor argentino - Acervo pessoal
Anderson Batista foi com a namorada assistir Brasil 2 x 0 Argentina, mas passou quase todo o jogo em delegacia do Mineirão após ser alvo de injúria racial por parte de torcedor argentino Imagem: Acervo pessoal

Lucas Faraldo

Colaboração para o UOL

06/07/2019 04h00

Nem só de festa foi a noite dos brasileiros que assistiram no Mineirão à vitória do Brasil sobre a Argentina na última terça-feira, pela semifinal da Copa América. O torcedor mineiro Anderson Batista, de 26 anos, foi vítima de injúria racial nas arquibancadas do estádio enquanto comemorava o gol de Gabriel Jesus. O torcedor argentino Fabrizio Franco, 19, foi preso em flagrante pela Polícia Militar.

Consta no boletim de ocorrência feito por Anderson na própria delegacia do Mineirão que, "no momento do gol do Brasil, (Anderson) comemorava quando percebeu que um torcedor de nacionalidade argentina, o senhor Fabrizio Franco, começou a gritar [sic] movimentos semelhantes aos de um macaco em sua direção. Anderson o repreendeu e o estrangeiro continuou com gestos ofensivos (...). Neste momento o cadete Nogueira presenciou Fabrizio no ato ofensivo e deu voz de prisão".

Em contato com o UOL Esporte, a Polícia Militar de Minas Gerais confirmou que Fabrizio foi detido por injúria com subdescrição de racismo. O argentino foi encaminhado ao Departamento de Operações Especiais (Deoesp) de Belo Horizonte. Até a publicação desta reportagem, a delegacia do Deoesp não atendeu aos telefonemas nem respondeu ao e-mail da reportagem para informar se Fabrizio seguia ou não detido.

Anderson, por sua vez, publicou o ocorrido nas redes sociais no dia seguinte ao jogo. Em uma foto compartilhada em seu perfil no Twitter, o torcedor brasileiro mostra Fabrizio, com camisa do River Plate, sendo conduzido pelos PMs à delegacia do Mineirão. Diversos internautas escrevendo em espanhol comentaram o post com xingamentos e mais ofensas raciais direcionadas tanto a Anderson quanto a outros brasileiros que haviam deixado comentários. Outra boa parte de argentinos, cabe ressaltar, mostrou-se solidária a Anderson e pediu desculpas em nome do país vizinho.

"Eu denunciei alguns tweets e não sei se estão ocultos por causa da denúncia ou se apagaram", diz Anderson, que mostrou alguns prints à reportagem com xingamentos de "macaco" e "negro de merda".

Ofensas racistas após Brasil x Argentina - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução
O prazo para denúncia por injúria é de até seis meses e há possibilidade de pagamento de fiança por parte do acusado que esteja detido. As mesmas regras e possibilidades de pena (um a seis meses de reclusão ou multa) são válidas para os crimes cometidos pela internet.

"Achei que tudo se resolveria ali mesmo quando fiz o boletim de ocorrência, que iria para algum juiz, algo do tipo. Mas aí me surpreendeu os policiais falando que eu que teria de arcar com tudo, de entrar com um processo, dar procedimento a isso. Honestamente, acho que não terei tempo para me dedicar a isso, é um trabalhão, tem de ir atrás de advogado. Fica muito inviável para mim", alega Anderson.

A reportagem do UOL Esporte consultou um promotor e recebeu uma informação diferente. Para ser analisado pela Justiça, o crime de injúria racial depende de representação formal da vítima. O desejo de representar pode ser expresso pela vítima no momento de produção do boletim de ocorrência e precisa estar especificado no documento. Caso a manifestação do desejo de fazer a representação formal não tenha sido expresso no B.O., a vítima tem até seis meses após o fato para fazê-lo. Além disso, para fazer a representação criminal a vítima não precisa de um advogado. Se a representação acontecer, o caso vai automaticamente para a fase de denúncia pelo Ministério Público.

"Nesse nível, nunca havia sofrido"

Anderson, diretor de arte em uma agência de publicidade em Belo Horizonte, e sua namorada, Ana Cláudia, haviam pagado R$ 380 em seus ingressos para assistir à semifinal. Não sonhavam que se transformaria em um clássico Brasil x Argentina. O entusiasmo em ver de perto craques brasileiros e argentinos, porém, durou apenas 18 minutos - o tempo de Gabriel Jesus estufar as redes em campo, e Fabrizio iniciar as ofensas racistas nas arquibancadas.

Da voz de prisão a Fabrizio dada pelos policiais militares ao retorno de Anderson e Ana Cláudia a seus assentos, com a passagem pela delegacia do estádio para registro do boletim de ocorrência, foram longos minutos que fizeram o casal perder praticamente todo o restante da partida.

"Voltei para a arquibancada e o jogo já estava nos acréscimos do segundo tempo. Minha namorada me acompanhou e também perdeu o jogo, chorou muito, foi uma confusão. A frustração foi imensa, imensa", relata.

"Ficamos muito empolgados quando descobrimos que seria Brasil x Argentina, um jogo que eu nunca vi, nunca nem tinha visto um jogo da seleção masculina. Estávamos tão felizes antes do jogo lá fora no estádio, até brincando com alguns argentinos, o clima estava muito bom, até que tudo foi pelo ralo nesse episódio. Foi uma grande decepção, tudo muito triste", acrescenta.

Do momento em que flagrou os insultos racistas até o encaminhamento de todos os envolvidos à delegacia, os polícias militares da ocorrência foram os únicos profissionais a prestar auxílio a Anderson durante o episódio, ainda que em um primeiro momento tenha sido Anderson o abordado pelos PMs - por estar discutindo com um grupo de argentinos. Somente após outros brasileiros corroborarem com o relato de Anderson, de que estava sendo vítima de injúria racial, é que os policiais detiveram Fabrizio.

Fabrizio Franco, 19, detido - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Fabrizio Franco, 19, foi detido após gestos imitando macaco no Mineirão
Imagem: Acervo pessoal

"Da Conmebol ou da organização da Copa América, não tive suporte de ninguém. Quem me ajudou ali no fim das contas foi a PM mesmo, o que me surpreendeu até. Não tive nenhum problema", contou. "A julgar pelo cenário que temos no Brasil de negros com a PM, estatisticamente, a gente só se ferra em questões de abordagem da polícia, né?"

A fala de Anderson se baseia naqueles que, até a última terça, haviam sido os episódios mais marcantes em sua vida no tocante à discriminação racial - mesmo que velada. "Nesse nível assim eu nunca havia sofrido com racismo. Mas já houve vezes de eu entrar em loja ou chegar ao ponto de ônibus e as pessoas saírem de perto de mim. Já também aconteceu de a polícia me parar quando eu estava de bicicleta e me pedir a nota fiscal da bicicleta. Quem anda com nota fiscal da bicicleta? É um cenário muito complexo", lamenta.

Questionado se agora, de cabeça mais fria, desculparia Fabrizio, Anderson prefere não falar em perdão. Durante a abordagem policial, ainda nas arquibancadas, Fabrizio teria chorado e se desesperado aos gritos de "me perdoe" ao perceber que estava sendo preso.

"Nesse momento, falar de perdão é bem difícil para mim. Mas o que eu falaria para ele é que eu espero que ele tenha aprendido a lição. É algo muito sério. Ele é uma pessoa jovem, nasceu em 1999, é um moleque que provavelmente não tinha noção da dimensão do que estava fazendo. Mas é um crime. Espero que ele tenha aprendido a lição e nunca mais venha a fazer isso com ninguém", afirma.

Cabe ainda ressaltar que muitos brasileiros e até internautas escrevendo em espanhol relataram, em resposta aos tweets de Anderson, que têm se tornado comum casos de racismo por torcedores argentinos. Clubes tradicionais do país como Racing e Independiente inclusive têm se manifestado oficialmente, por comunicados voltados a seus torcedores, pedindo para não haver comportamento racista nas arquibancadas durante jogos de Copa Libertadores e Copa Sul-Americana.