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País de Gales: Uma amizade que chegou à semifinal da Eurocopa

05/07/2016 08h30

Apesar da dor, Roger Speed atendeu o telefone na tarde de 27 de novembro de 2011. Do outro lado da linha estava Chris, melhor amigo do seu filho. Teve de encontrar forças para dizer que sim, era verdade, Gary Speed, 42 anos, técnico da seleção de País de Gales, estava morto.

- Chris estava confuso. Ele queria, de certa forma, que eu dissesse que eram boatos da imprensa, não a verdade. Por mais que eu quisesse, não podia desmentir - confessa Speed pai ao LANCE!, por telefone.

Conviviam desde os dez anos de idade. Enfrentavam-se em partidas escolares, depois viraram colegas de equipe. Tornaram-se profissionais na Inglaterra. Quando Chris sofreu um grave acidente de carro que acabou precocemente com sua carreira de jogador, a segunda pessoa que viu no hospital, depois da mulher, foi Gary Speed.

Chris é Chris Coleman, o técnico que cinco anos depois da morte do amigo comanda País de Gales na maior partida da história do país: nesta quarta-feira, contra Portugal, pela semifinal da Eurocopa.

- Ele disse algumas vezes que se sentia como se estivesse tirando um lugar que era de Gary. Bobagem. O trabalho dele é brilhante. Tenho certeza que meu filho está vendo tudo e orgulhoso das vitórias. Às vezes. há certa tristeza porque tenho certeza que poderia ser Gary liderando Gales na Euro. Mas Chris faz um trabalho magnífico - completa o pai, Roger.

Gary Speed é o quinto jogador com mais partidas (535) na história da Premier League, a versão moderna do Campeonato Inglês, iniciada em 1992. Assumiu a seleção com pouca experiência anterior. Em má fase, Gales estava em 117o no ranking da Fifa. Aos poucos, o ex-meia reconstruiu o futebol nacional. Fez a Federação investir em ciência do esporte, conversou com os atletas desiludidos com o destino do esporte galês. Fez promessas que não sabia se poderia cumprir.

Ele tinha um histórico de depressão, mas parecia bem em 2011. Naquela manhã de novembro, entrou na garagem e se enforcou. O corpo foi encontrado horas depois pela mulher e deixou o futebol britânico estupefato. Cinco anos depois, nos jogos da seleção, a torcida ainda canta o nome do ex-técnico. O pai confessa que isso aquece o coração da família.

Dois meses depois do suicídio, Chris Coleman foi convidado para assumir o cargo.

- Chris nos telefonou e disse que continuaria o trabalho de Gary. Foi uma escolha correta. Mesmo que no início não tenha dado certo - confirma Roger.

A amigos, como o ex-assistente Steve Kean, Coleman confessou estar se sentindo incomodado. O lugar era de Gary Speed, não dele. Para tentar enfrentar a situação, fez o que havia prometido à família do amigo. Continuou com os mesmos métodos do antecessor. Não funcionou. Gales perdeu os cinco primeiros jogos com o novo treinador. Levou goleada de 6 a 1 para a Sérvia. Coleman chegou a pensar em entregar o cargo.

Conversou com a mulher, a apresentadora de TV Charlotte Jackson. Ela lhe disse que precisava implantar a própria filosofia. Que o melhor jeito de honrar a memória do amigo morto era fazer Gales vencer. Ele era Chris Coleman, não poderia ser Gary Speed.

- Não penso em Gary de vez em quando. Penso em Gary sempre. Temos muitas histórias juntos. Histórias de quando estávamos na Premier League e éramos chamados para a seleção - confessou Coleman já durante a Eurocopa.

A virada começou no empate em Bruxelas contra a Bélgica, nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2014. Na época, Gales não tinha mais chances de classificação.

Desde 1958, quando foi para o Mundial pela primeira e única vez, a seleção sempre teve jogadores importantes na Europa. Mas falhava no momento decisivo. Em 1986, levou gol de pênalti contra a Escócia e não viajou para o México. O mesmo adversário que havia lhe tirado a oportunidade de ir à competição de 1978, na Argentina. Em 1994, esteve a uma partida da vaga para os Estados Unidos. Perdeu para a Romênia. O mesmo aconteceu em 2003, nas eliminatórias para a Eurocopa. Mark Hughes, Ryan Giggs, Ian Rush. Neville Southall jamais conseguiram levar Gales a um torneio de expressão.

Coleman era uma escolha óbvia, não unânime. Mas sua carreira nunca foi óbvia. Aos 31 anos, era zagueiro, capitão e líder do Fulham, então na segunda divisão da Inglaterra, a caminho da primeira. Em 2 de janeiro de 2001, perdeu o controle do seu Jaguar avaliado em R$ 250 mil na estrada em Surrey, no interior da Inglaterra. Atravessou uma cerca de aço e bateu em duas árvores. A equipe de resgate levou uma hora para tirá-lo das ferragens. Ele teve a tíbia esmagada e o tornozelo fraturado. Chegaram a pensar em amputar sua perna ali mesmo, no local do acidente.

Voltou aos gramados no ano seguinte, mas longe de ser o mesmo de antes. Resolveu largar tudo. Meses depois, em 2002, Jean Tigana caiu e ele foi escolhido para técnico da equipe londrina. Aos 32, ainda é o mais jovem treinador da história da Premier League. O primeiro telefonema para parabenizá-lo foi de Gary Speed.

Durou quatro anos no cargo com boas campanhas. Saiu e foi para a Real Sociedad, na Espanha. Meteu-se em confusão. Chegou atrasado a uma entrevista coletiva e alegou que a máquina de lavar de sua casa havia transbordado, alagando tudo. Horas depois, o diário Marca publicou fotos de Coleman em uma boate de San Sebastian, de madrugada. Passou pelo Coventry, da terceira divisão inglesa, e pelo Larissa, na Segundona grega.

Foi na sua seleção, no lugar do grande amigo, que ele conseguiu recolocar a carreira nos trilhos. A base estava lá. Ashley Williams na zaga, Aaron Ramsey no meio-campo. Claro, Gareth Bale em todos os lugares. O que sempre deu muito errado, funcionou nas eliminatórias para a Eurocopa.

Coleman assumiu o lugar do amigo e, por caminhos tortuosos, fez o que prometeu. Deu sequência ao que Gary Speed havia começado.

- Eu não creio que vamos superar o fato de que ele (Speed) não está aqui conosco. Com o passar do tempo, você aprende a viver com isso e lida melhor. Mas nós pensamos nele o tempo todo. Quando nos reunimos e relaxamos, sempre surge uma história sobre Gary. As memórias são muitas - confessou em entrevista ao The Times.

São muito mais para Roger e a mulher, Carol, 71. A família toda esteve na vitória por 3 a 1 sobre a Bélgica, que levou Gales para a semifinal.

- Os jogadores e Chris merecem tudo isso. O país todo está feliz. Nós mas ainda. Porque Gary também merece - conclui o pai.